sábado, 28 de junho de 2008

S. Paulo e os estrangeiros

O comércio sanjoanino à porta de minha casa era, este ano, menos qualificado. Em vez de objectos de artesanato, como no ano passado, havia produtos industriais. Os vendedores, esses, eram, no ano transacto e este ano, de origem senegalesa. E, em ambos os anos, não tiveram sorte. O negócio correu mal pelas mesmas razões: o preço do aluguer do espaço é elevado; as vendas, reduzidas. Enquanto desmontava a improvisada loja destes dias que, a seguir, instalará em Vila Real, Mamadou lamentava-se. Mas isso não o impediu de, na despedida, me oferecer uma das carteiras que não conseguiu vender.

É nele e nos que, como ele, vêm de longe para tentar que a vida seja um pouco melhor que penso neste sábado em que, com o propósito de celebrar os dois mil anos do nascimento do apóstolo Paulo, se inicia o Ano Paulino e no mesmo dia em que se ficou a saber, através do Diário do Minho, que o Fórum de Organizações Católicas para a Imigração, reunido no dia anterior, condenou uma directiva que o Parlamento Europeu aprovou recentemente relativa à deportação de imigrantes em situação ilegal. Os imigrantes pobres (porque é sempre desses que se trata) que estejam à espera de expulsão, com a nova legislação, podem ficar detidos durante um período de um ano e meio e, mesmo que não sejam criminosos, podem ser enviados para estabelecimentos prisionais comuns.

Defendendo que as medidas de controlo dos fluxos migratórios devem levar em conta o apoio e o compromisso dos países europeus em relação ao desenvolvimento dos países de origem dos imigrantes, o Fórum, que reúne mais de uma dezena de organismos católicos, garante que a directiva não protege os direitos fundamentais dos imigrantes – “pessoas que se deslocam para construir ou reconstruir um projecto de vida” – e ignora os dramas humanos que tantas vezes os acompanham.

É na primeira carta que S. Paulo endereça à comunidade cristã da próspera cidade de Corinto, escrita durante a terceira viagem missionária do apóstolo, que se encontra aquele que será, talvez, um dos mais citados e comentados extractos dos seus escritos.

É nessa passagem que Paulo se afirma ao serviço de todos: “De facto, embora livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, para ganhar o maior número. Fiz-me judeu com os judeus, para ganhar os judeus; com os que estão sujeitos à Lei, comportei-me como se estivesse sujeito à Lei – embora não estivesse sob a Lei – para ganhar os que estão sujeitos à Lei; com os que vivem sem a Lei, fiz-me como um sem Lei – embora eu não viva sem a Lei de Deus porque tenho a lei de Cristo – para ganhar os que vivem sem a Lei. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo”.

A linguista, psicanalista e escritora Julia Kristeva recorda este escrito “cosmopolita” do apóstolo Paulo em Étrangers à nous-mêmes (Paris: Fayard, 1988). Observa esta mulher, que se assume como cidadã europeia, de nacionalidade francesa, de origem búlgara e de adopção americana, que “Paulo adopta, desenvolvendo-o ao máximo, um traço essencial da espiritualidade própria deste mundo de estrangeiros: a hospitalidade. Facto notável: pratica-a gratuitamente – o clérigo não mendiga nem faz carreira na religião, mas trabalha com as suas próprias mãos. Mais ainda: o estrangeiro sendo o Cristo ele mesmo, recebê-lo é ser recebido em Deus”.

Julia Kristeva afirma que o que conta para Paulo é o povo renovado para formar uma entidade original, a Igreja. “O messianismo dos judeus transforma-se em messianismo incluindo toda a humanidade: a Ecclesia será a universalidade do ‘povo’ para além dos povos, recolhidos ao isolamento e à solidão do deserto para receber a palavra de uma nova Aliança”.

“Arrancar o corpo ao coração e o abatimento ao entusiasmo é uma verdadeira transubstanciação, que Santo Agostinho chama precisamente peregrinação”, nota Julia Kristeva no ensaio referido, acrescentando que, embora o estrangeiro, transformado em peregrino, não resolva os seus problemas sociais e jurídicos, encontra, na civitas peregrina do cristianismo, ao mesmo tempo um élan psíquico e uma comunidade de entreajuda que parecem ser a única saída para o seu desenraizamento, sem rejeição, nem assimilação nacional.

O estrangeiro, sublinha Julia Kristeva, “começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros”. Peregrinos, portanto, e hóspedes sobre a terra.


[Eduardo Jorge Madureira Lopes,
texto a publicar amanhã no Diário do Minho]

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