terça-feira, 1 de julho de 2008

António Vieira (VI)

Manhã com Aves



MADRUGAR

Torpe coisa é, e verdadeiramente vergonhosa para um cristão, se o primeiro raio do sol o achar na cama, e não prostrado aos pés de Cristo, seu criador e redentor. As primeiras criaturas que com suas vozes nos injuriam e envergonham, entre aquelas que o mesmo Senhor criou, mas não remiu, são as aves. Que avezinha há, ou tão pintada como o pintassilgo, ou tão mal vestida como o rouxinol, que não rompa o silêncio da noite, com dar, ou cantar, as graças a seu criador, festejando a boa vinda da primeira luz, ou chamando por ela? As flores que anoiteceram secas e murchas, porque carecem de vozes, posto que lhe não falte melodia para louvar a quem as fez tão formosas, ao descante[1] mudo dos cravos e das violas, como são as Madalenas do prado, também declaram os seus afectos com lágrimas. As nuvens bordadas de encarnado e ouro, os mares com as ondas crespas em azul e prata, as árvores com as folhas voltadas ao céu, e com a variedade do seu verde natural então mais vivo, as fontes com os passos de garganta mais cheios, e a cadência mais sonora, as ovelhinhas saindo do aprisco, e os outros gados mansos à liberdade do campo, os lobos e as feras silvestres recolhendo-se aos bosques, e as serpentes metendo-se nas suas covas, todos, ou temendo a luz ou alegrando-se com sua vista, como à primeira obra de Deus, lhe tributam naquela hora os primeiros aplausos (...).
Desperta, ó homem indigno, aos brados de todas as criaturas; abre os olhos e vê a que madrugas e a que não madrugas. Deixadas as madrugadas mecânicas, como as do oficial vigilante que madruga para bater e malhar o ferro, obrigando também a madrugar o ar e o fogo, os que professam vida e acções mais nobres para que madrugam? Madruga o Matemático, para observar as estrelas, antes que lhas esconda o sol; madruga o soldado para vigiar o seu quarto[2], ou na muralha ou na campanha, ou no bordo da nau; madruga o estudante sobre o livro que tantas madrugadas custou ao seu autor quantas são as letras, muitas vezes riscadas, de que está composto; madruga o requerente, madruga o caminhante, madruga cercado de galgos o caçador (...). Quanto corta pelo sono o adúltero? Quanto corta pelo sono o vingativo? Quanto corta pelo sono o ladrão? Quanto corta pelo sono o taful[3]? Quanto corta pelo sono o invejoso, o ambicioso e, mais vigilante que todos, o avarento e cobiçoso? Os Judeus adoraram o bezerro de ouro, os cristãos adoram o ouro ainda que não pese tanto como o bezerro. Do ouro tomou nome a aurora, e esta é a despertadora que os não deixa dormir e faz vigiar, maquinando subtilezas, traças, enganos, traições, e sacrificando ao torpe, vergonhoso e brutal ídolo do interesse, o descanso, a razão, a vida, a honra, a consciência, a alma.
António Vieira, Sermão da Ressurreição de Cristo Senhor Nosso.

[1] Canto ao desafio ou em dueto.
[2] Período de tempo em que uma sentinela está de vigia. Já os Romanos dividiam as vigias da noite em quatro quartos, cada um com três horas.
[3] Viciado no jogo.

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