sábado, 31 de maio de 2008

António Vieira II

Púlpito onde o Pe. António Vieira pregava, em S. Salvador da Baía
AMOR E ÓDIO

As paixões do coração humano, como as divide e numera Aristóteles, são onze, mas todas elas se reduzem a duas capitais: amor e ódio. E estes dois afectos cegos são os dois pólos em que se resolve o mundo, por isso tão mal governado. Eles são os que pesam os merecimentos, eles os que qualificam as acções, eles os que avaliam as prendas, eles os que repartem as fortunas. Eles são os que enfeitam ou descompõem, eles os que fazem ou aniquilam, eles os que pintam ou despintam os objectos, dando e tirando a seu arbítrio a cor, a figura, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem outra distinção ou juízo que aborrecer e amar.
Se os olhos vêem com amor, o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro; se com amor, o demónio é formoso; se com ódio, o anjo é feio; se com amor, o pigmeu é gigante; se com ódio, o gigante é pigmeu; se com amor, o que não é tem ser; se com ódio, o que tem ser, e é bem que seja, não é nem será jamais. Por isso se vêem, com perpétuo clamor da justiça, os indignos levantados e as dignidades abatidas; os talentos ociosos, e as incapacidades com mando; a ignorância graduada, e a ciência sem honra; a fraqueza com o bastão, e o valor posto a um canto; o vício sobre os altares, e a virtude sem culto; os milagres acusados, e os milagrosos réus. Pode haver maior violência da razão? Pode haver maior escândalo da natureza? Pode haver maior perdição da república? Pois tudo isto é o que faz e desfaz a paixão dos olhos humanos, cegos quando se fecham, e cegos quando se abrem; cegos quando amam, e cegos quando aborrecem; cegos quando aprovam, e cegos quando condenam; cegos quando não vêem, e quando vêem muito mais cegos.
António Vieira

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O miolo das coisas


Estranha sociedade esta, a dos números. Gasta-se o tempo fazendo estudos para serem traduzidos em números, estatísticas para conferir números, previsões para antecipar números…
Mas, como diz Teixeira de Pascoais, a realidade (…) “Foge a todos os cálculos/ e a todos os olhos de vidro/ por mais longe que eles vejam, / quer se trate dum núcleo atómico/perdido no infinitamente pequeno/ou da nebulosa Andrómeda/ a seiscentos mil anos de luz da minha aldeia!

A essência das coisas,
essa verdade oculta na mentira,
é de natureza poética
e não científica.

Aparece ao luar da inspiração
e não à claridade fria da razão.
Esta apenas descobre
um simples jogo de forças
repetido ou modificado lentamente,
gestos insubstanciais,
formas ocas,
a casca dum fruto pribido.

Mas o miolo é do poeta.

Só ele saboreia a vida
até ao mais íntimo
do seu gosto amargoso,
e se embrenha nela
até ao mais profundo
das suas sensações e sentimentos.

É o ser interior a tudo.

Para ele, a realidade
não é um conceito abstracto,
ideia pura, imagem linear;

é uma concepção essencial,
imagem hipostasiada,
possuída em alma e corpo,
nupcialmente,
dramaticamente…”



(Carminda Marques)

domingo, 25 de maio de 2008

A propósito da bênção das pastas e de outras considerações menos indulgentes sobre os universitários


Parecem-me oportunas as palavras de D. Manuel Clemente, bispo do Porto, na bênção das pastas, em 4 de Maio:

«Fala-se hoje de algum desencanto juvenil, em relação à vida social e cívica. Desencanto e indiferença que justamente preocupam altos responsáveis e muitos observadores. Mas eu entrevejo nisso uma dupla reacção, de sinal diverso. Por um lado, é verdade que muitos jovens caem no imediatismo de consumos vários, infelizmente suscitados por más publicidades e péssimos negócios. Mas, por outro lado, tal alheamento referir-se-á ainda mais à inconsistência das práticas pessoais e públicas dalguns mais velhos, que não são de molde a cativar os mais novos. Por outro lado, são muitos os jovens que hoje aderem de alma e coração a iniciativas concretas e válidas de voluntariado e solidariedade, no país e além dele. Mais do que acusar os jovens de alheamento e descaso, devemos ser nós, os adultos, a testemunhar-lhes um real compromisso com a sociedade e o desenvolvimento. A isto, decerto, aderirão. Não desistamos nós da juventude, e ela se tornará em bênção, como Deus a oferece ao mundo em cada geração que chega»

(Carlos Nuno Vaz)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Fé e sentimento estético


Hermann Nitsch

“O cuidado da qualidade espiritual do sensível é produzida nos lugares da experiência daquilo que é importante, não nos tempos destinados ao que é acessório: esta é a tarefa da educação estética que hoje se exige. Porque o decifrar dos sentimentos e das emoções, da sensibilidade e da interioridade tornou-se difícil e complexo. A experiência estética, quando não for reduzida ao elemento puramente lúdico e hedonista que ocupa o tempo livre (mesmo que esse elemento seja enobrecido com a retórica do evento cultural), é o lugar próprio da formação da consciência para a espiritualidade do sensível. Através dela, de facto, os símbolos vitais das emoções, que interpelam quanto à justiça última das coisas, tornam-se objecto de interrogação, de reflexão e de assimilação. Sem a mediação do imaginário e fora de toda a energia activada pelos símbolos do modo como o mundo ressoa em nós, o espírito é cego e mudo, mesmo relativamente às grandes questões do sentido. A interioridade não ganha forma, para o ser humano, nem se torna saber de si, sem a mediação simbólica do sensível… O dualismo da alma e do corpo instaura, em primeira instância, a antropologia do pecado, não a teologia da graça.”

Pierangelo Sequeri, L’estro di Dio, Milano 2000, 12.16.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Casamento Gay


Num momento em que várias individualidades, forças políticas e organizações favoráveis ao chamado “casamento gay” pretendem lançar, ou relançar, a discussão sobre essa tema, parece oportuno conhecer o contributo para o debate trazido por Roque Cabral, professor catedrático da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa, em artigo publicado na revista Brotéria e aqui parcialmente transcrito. (Silva Pereira)




A apologia dos casamentos gay insiste recorrentemente em dois argumentos: a liberdade das pessoas que assim pretendem viver e a igualdade de direitos de todos os cidadãos, igualdade que exclui qualquer discriminação. O significado destes argumentos é fácil de compreender. O que importa verificar é a sua solidez argumentativa.
Para começar, não parece contestável que duas pessoas do mesmo sexo, que pretendem partilhar as suas vidas numa união duradoura, o possam fazer e que o legislador deva ter em conta esse facto. Se há pessoas que querem unir-se assim, por que não respeitar essa vontade? No actual debate nos Estados Unidos, têm sido aplicadas ao nosso tema as palavras da histórica sentença do Supremo Tribunal (12.06.67) que aboliu a proibição de casamentos inter-raciais: "Casar, com quem, de que modo dar expressão à intimidade sexual, e como constituir família - são dos mais básicos direitos individuais”. Por respeito à livre decisão das pessoas, deveria consequentemente acolher-se a vontade de casamento de pessoas do mesmo sexo. Embora a "orientação sexual" homossexual seja, segundo os especialistas, quantitativamente minoritária, numerosos são os homens e as mulheres que se sentem afectivamente atraídos por pessoas do mesmo sexo, pelas quais são correspondidos e com as quais desejam partilhar a vida. Se assim o desejam, não serão livres de o realizar? Em nome de quê se pode opor uma negativa a esta vontade? Donde e com que fundamento impor uma tão sensível limitação à liberdade de cada um?
Falando em liberdade, recordo que no debate conciliar que levou à publicação do documento sobre a liberdade religiosa do Vaticano II, foi dito - e aceite pela maioria - que, sendo a liberdade algo tão essencial à pessoa humana e à sua dignidade, quem pretenda introduzir limitações à mesma é que tem o ónus de prova e não quem a afirma. Por outras palavras, tanta liberdade quanto possível, as limitações é que têm de ser demonstradas. Quem esteja de acordo com esta opinião, mas não reconheça direito de cidade aos casamentos homossexuais deverá, logicamente, estar disposto a apresentar razões para essa restrição da liberdade. Sendo este o meu caso, tentarei fundamentar racionalmente a limitação à liberdade dos homossexuais e lésbicas no que diz respeito à legalização das suas uniões sob a forma de casamento.
Não será demais lembrar que é isto que está em jogo: não se trata de negar todo e qualquer direito às uniões homossexuais e lésbicas, mas apenas a sua pretensão a serem consideradas "casamentos". Não só não se negam outros direitos, como parece de elementar justiça que o legislador tenha em conta a realidade constituída pelos pares de pessoas do mesmo sexo que pretendem partilhar vida, bens e outros direitos reconhecidos aos casados.
Mas os grupos de homossexuais e de lésbicas não pretendem apenas isso. Requerem a possibilidade de celebrar casamentos em igualdade de condições com os pares heterossexuais. O que nos leva a considerar mais detidamente este aspecto da questão, o da igualdade, e, na falta desta, o de uma eventual discriminação. Homossexuais e lésbicas pretendem poder ter um casamento igual ao dos casais heterossexuais, exigem um tratamento igual e idêntica designação para todos os casamentos. Invocam o artigo 36.º da Constituição - "todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de igualdade" - e exigem que seja alterada a definição de casamento do artigo 1577.º do Código Civil, segundo o qual "casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do Código" Aos olhos dos homossexuais e lésbicas, esta alteração constitui um óbvio imperativo da igualdade com que a lei deve tratar todos os cidadãos.
Falando de igualdade, o que é indiscutível imperativo é que receba o mesmo tratamento o que for igual, e diferente tratamento o que for diferente. Esta tão óbvia exigência da justiça parece escapar àqueles que lutam pelo casamento para os pares de pessoas do mesmo sexo. Querem para si o mesmo tratamento, embora a relação que constituem seja profundamente diferente da que existe nos casais heterossexuais. Querem igual tratamento, mas esta sua vontade não torna iguais as situações, que são diferentes - e o legislador fará bem em não as tratar da mesma maneira.
Que as pessoas não sejam discriminadas - com base na religião, sexo, cor da pele, etc. - parece-nos, a quantos vivemos hoje, uma elementar justiça. Longos séculos levou a humanidade a reconhecer essa exigência, com inúmeras lutas e debates pelo meio, e ela está, infelizmente, muito longe de ser universal e plenamente cumprida. Sabemos que esta afirmação universal dos direitos de qualquer ser humano - que se deseja efectivamente reconhecida em toda a terra - não impede que se admitam universalmente imensas diferenças de tratamento, desigualdades que não suscitam protestos porque são obviamente razoáveis e justas. Os casos que poderiam invocar-se não teriam fim, mas o facto é tão conhecido que podemos dispensar-nos de aduzir alguns exemplos confirmativos. Parece pois claro, e é geralmente aceite, que em muitos casos desigualdade não é sinónimo de reprovável discriminação. Tanto assim é que em diversos contextos se fala de "discriminação positiva".
Não se trata de negar o casamento aos homossexuais ou às lésbicas por serem tais - o que, além de inconstitucional seria uma discriminação, inaceitável como todas as discriminações. Do que se trata é de não considerar como casamento a união de pessoas do mesmo sexo. Não se fecha a porta do casamento aos homossexuais e lésbicas, o que não se admite é o casamento homossexual, o casamento de pessoas do mesmo sexo. Porque o "direito de casar" é o direito de aderir a uma instituição com determinadas características - que eles não estão em condições de assegurar.
E é importante sublinhar, como já acima foi dito, que isso não significa não reconhecer a tais uniões nenhuns efeitos jurídicos. Não parece, com efeito, difícil perceber que o ordenamento jurídico pode atribuir muitos dos benefícios de que desfrutam os casados a pessoas do mesmo sexo que pretendem viver juntas: no âmbito da Segurança Social, do Direito do Trabalho, do Direito Fiscal, do Direito Administrativo, da protecção da casa de morada, etc. Mais ainda: tendo em conta a analogia das situações, parece que tal atribuição será justa e, portanto, devida. Na realidade, entre nós a Lei 7/2001, de 11 de Maio, alargou às uniões homossexuais o âmbito de protecção que a Lei 135/99, de 25 de Agosto, conferia às Uniões de Facto. Caberá ao legislador ampliar o reconhecimento jurídico dos pares de homossexuais e lésbicas naquilo que, sendo justo, ainda não esteja atendido pela lei.
Mas deverão esses pares ter exactamente os mesmos direitos que os casais heterossexuais, como parece claramente ser a pretensão do lobby homossexual? Uma vez que só os casais heterossexuais podem ser férteis, contribuindo assim para a propagação da humanidade, não constituirá nenhuma condenável discriminação o facto de o Estado tratar de modo diferente estes casais. Por razões óbvias. Poderá alguém objectar - e já aconteceu - dizendo que as modernas técnicas de procriação medicamente assistida tornam possível que uma das mulheres de um par de lésbicas seja artificialmente fecundada e procrie. Sem dúvida: só que a criança assim gerada não será filha desse par lésbico, mas apenas de uma das mulheres, fecundada pelo esperma de um dador exterior. Mas, insistir-se-á, duas lésbicas ou dois homossexuais podem criar uma família, não obviamente com filhos do par, mas criando para eles um bom ambiente familiar. Não se nega essa possibilidade; nem se nega que essa "família" pode, em alguns casos, criar um ambiente muito mais favorável do que algumas famílias juridicamente reconhecidas. Mas não seria honesto deduzir daí uma preferência geral pelas "famílias" criadas por pares de homossexuais ou lésbicas.
Seja como for, é fora de dúvida que os casais heterossexuais contribuem para o bem da sociedade civil de modo diferente do que o fazem os pares homossexuais e que, por esta razão, não podem os legisladores e governantes, sem grande injustiça, para com esses casais e sem prejuízo para o país - para cujo bem devem legislar -, tratar de igual maneira casais que tão diferentemente contribuem para o bem comum. A igualdade de tratamento de realidades tão profundamente diferentes é que seria uma grave injustiça e manifesta discriminação. Paradoxalmente, o argumento da não discriminação, frequentemente brandido pelos defensores do casamento homossexual, joga precisamente contra a sua pretensão. Paradoxal é também - até certo ponto - esta pretensão, num tempo em que a instituição casamento é acometida por tantos ventos contrários, num tempo em que se acentua o aspecto das relações afectivas, independentemente do estatuto jurídico.

Pretensão a adoptar

Consideração especial merece a pretensão, por parte dos pares homossexuais, a adoptar. O desejo de adoptar é facilmente compreensível. Mas importa ter presente a profunda mudança que o tema da adopção vem introduzir no debate acerca do casamento. É que, neste caso, o que se torna necessário assegurar não é já o que mais convém ao par homossexual, mas sim o que será mais conveniente à criança a adoptar. O bem do adoptando e não a conveniência ou o direito do par adoptante - seja ele, aliás, homossexual ou heterossexual. Ora bem: nos debates acerca da adopção de crianças por pares homossexuais, é frequente invocarem-se uns "estudos americanos" que demonstrariam que as crianças educadas por pares homossexuais não sofriam nada com isso. Nesses estudos, condensados por Charlotte J. Patterson, verificamos o seguinte: os questionários são poucos numerosos; claramente comportamentalistas e funcionalistas; relativos a crianças e não a adolescentes, sendo que estes é que mais são afectados pelos problemas parentais; todas as crianças estudadas nasceram no quadro de um par heterossexual; as respostas são dadas pelos "pais" heterossexuais, e não pelas crianças; a comparação faz-se com crianças de pais divorciados; por último, pormenor muito significativo: 41% destas crianças beneficiaram de acompanhamento especializado. Conclusão: os famosos estudos não reforçam a pretensão adoptante por parte de pares homossexuais, antes pelo contrário. Charlotte J. Patterson, por alguns considerada grande especialista em assuntos de homossexualidade, foi desautorizada por um tribunal da Florida, que não aceitou atender às suas opiniões, por ela se ter recusado a apresentar os dados em que as fundamentava.
Mais: admitir a adopção por parte de um par homossexual seria uma discriminação relativamente aos adoptados - por não ser assegurado a estes o que deveriam normalmente receber do par adoptante heterossexual. Em palavras de Juan López Ibor, presidente da Associação Mundial de Psiquiatria:"Um núcleo familiar com dois pais ou duas mães é claramente prejudicial ao desenvolvimento harmonioso da personalidade e à adaptação social da criança". O par adoptante deve, por isso, ser um casal heterossexual; se o não for, verificar-se-á, para a criança adoptada, uma dificuldade suplementar, a somar à dificuldade que qualquer adopção já representa. É pois a fortiori que a adopção postula um casal heterossexual.
A este respeito, poderia a alguém ocorrer a seguinte objecção: como em cada pessoa há algo de masculino e algo de feminino (animus e anima), a criança adoptada por um par homossexual poderia encontrar nesse par o "paternal" e o "maternal" de um autêntico "casal". Mas a objecção, tendo algo de válido, não o é inteiramente, uma vez que ser pai ou mãe não se reduz a ter características masculinas ou femininas - mesmo que fossem todas, o que não acontece no par homossexual. Aliás, e mais uma vez: o que é importante, quando se trata de adopções, não é saber se as crianças são capazes de se adaptar aos desejos e invenções dos adultos, mas sim quais são as melhores condições para o seu desenvolvimento.
Não se vêem razões válidas para reconhecer aos pares de homossexuais e de lésbicas o mesmo acesso ao estatuto jurídico e idêntica designação que aos casais heterossexuais, menos ainda se com a possibilidade de adopção. Mas os lobbies que lutam por conseguir esses objectivos são muito poderosos. Talvez venham a alcançar entre nós o que já conseguiram noutros países.
Lamentavelmente.

P. Roque Cabral S. J., Brotéria 165 (2007)111-118

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Proposta de vida para a Serenidade - João XXIII




1. Só por hoje, cuidarei de viver este dia, sem querer resolver todos os problemas da minha vida de uma só vez.

2. Só por hoje, porei o máximo cuidado nos meus modos, sendo agradável no trato, não criticando ninguém, não tentando corrigir ou melhorar seja quem for - excepto a mim próprio.

3. Só por hoje, viverei feliz a certeza de ter sido criado para a Felicidade - não apenas no outro mundo mas também neste.

4. Só por hoje, adaptar-me-ei às circunstâncias sem pretender que as circunstâncias se adaptem aos meus desejos.

5. Só por hoje, dedicarei pelo menos dez minutos do meu tempo a uma boa leitura; tal como é necessário comer para sustentar o corpo, assim também a leitura é necessária para alimentar a vida da minha alma.

6. Só por hoje, praticarei uma boa acção sem contar a ninguém.

7. Só por hoje, farei algo de que não gosto: se me sentir ofendido, terei o cuidado de fazer com que ninguém o note.

8. Só por hoje, serei firme na minha fé - mesmo se as circunstâncias apontarem o contrário - de que a Divina Providência se ocupa de mim como se só eu existisse no mundo.

9. Só por hoje, não terei medo de nada. Em particular, não terei medo de apreciar tudo o que é belo - e não terei medo de crer na Bondade.

10. Só para hoje, farei um programa concreto. Talvez não o execute perfeitamente mas, em todo caso, vou fazê-lo. E guardar-me-ei de dois males - a pressa e a indecisão.

(Helena Gonçalves)

domingo, 18 de maio de 2008

Maria: um modelo educativo


É com grande entusiasmo que o Seminário Conciliar S. Pedro e S. Paulo (equipa formadora e equipa de Comunicação Social) colaborará no blog o Bom Pastor. Será certamente uma oportunidade para partilharmos neste espaço as nossas reflexões, crítica e pensamentos sobre a teologia, a vida da Igreja, a liturgia, a sociedade, a cultura, livros, música, cinema, entre outros. Para iniciar, e porque estamos no mês de Maria, apresentamos um olhar diferente sobre a figura de Maria, na sua dimensão educativa, a partir de Augusto Cury.

Maria: um modelo educativo


Tem surgido na actualidade uma preocupação crescente com a educação dos mais novos. Procuram-se modelos, pedagogias, debates para resolver casos que começam a ser bem preocupantes nas sociedades modernas. Sintomático disso é o conjunto de manuais e livros que têm saído sobre a educação e a necessidade urgente de mudança de paradigmas. Andamos à procura das melhores formas, ou como diz Augusto Cury “no tempo actual em que a educação mundial, do ensino básico à universidade, está a formar uma massa de jovens que não pensam criticamente nem sabem lidar com os desafios existenciais, estudar a mulher que foi incumbida de educar o Menino Jesus oxigena a nossa inteligência” (A. Cury, Maria, a maior educadora da história, pg.12).
Este autor, psicanalista, pensador e escritor muito conhecido, aborda a educação de uma forma invulgar. No seu livro “Maria, a maior educadora da História”, a temática da educação é analisada a partir de Maria. Trata-se de uma educação feita a partir de uma história concreta, de uma pessoa particular, acima de qualquer suspeita, a não partir de um sistema teórico. A grande crise da educação é que raramente se pensa nas pessoas, partimos sempre de constructos e de sistemas mais ou menos complexos. Facilmente esquecemos os rostos que estão por detrás dos sistemas. Perdemos em certa medida referências, exemplos concretos com os quais nos possamos identificar e moldar estruturalmente.
O autor apresenta dez princípios que Maria usou para educar Jesus. São, sem dúvida, princípios bem humanos a partir dos quais podemos construir a personalidade e a identidade. Mas que princípios são esses que o autor vê em Maria como algo de sublime e único? Nas suas próprias palavras, “se fosse uma mulher frágil, assaltada pelo medo e pelo stress, teria condições de educar o filho de Deus, cuja história foi pautada por frustrações e rejeições? Se fosse insegura e superprotectora, não teria ela afectado o território da emoção do menino? Se amasse o exibicionismo e não a descrição, o seu processo educacional não seria um desastre?” (Ibidem, 12). Pensemos um pouco neles:
1. A história humana de Maria é pautada por contrato de risco, onde soube lidar com as turbulências imprevisíveis e com a novidade que iam surgindo na sua vida. Aceitou ser mãe de Jesus “começou a andar no fio da navalha entre a aceitação e a rejeição, os aplausos e o vexame social” (Ibidem, 15).
2. Maria era rápida a agradecer e corajosa no agir. Isto é, Maria não era “especial porque foi escolhida, ela foi escolhida porque era especial” (Ibidem, 34).
3. Maria usava a intuição e não um manual de instruções para educar o Menino Jesus. “A mãe do menino Jesus via com os olhos do coração…, ela foi escolhida não porque sabia muito, mas porque era uma especialista em aprender” (Ibidem, 43.46). Educar na intuição ajuda a ver muito mais que os simples erros, estimula a ver o invisível, a não sermos servis.
4. Maria educava o seu filho para servir e a sociedade e não para ser servido por ela. “De todos os compromissos sociais de Jesus, o do amor é o mais solene. O seu discurso sobre o amor não tem precedentes na História. Ninguém disse palavras semelhantes. Ele difundiu amplamente: «Amai o próximo como a vós mesmos»” (Ibidem, 66). Este é o maior tesouro que podemos professar: Deus é amor. Uma educação assim seria revolucionária…!
5. Maria tinha uma espiritualidade inteligente, transformava informações em sabedoria. “Maria viveu a Resolução 181 da ONU quase dois milénios antes dessa instituição existir. Tolerância e generosidade eram as suas marcas” (Ibidem, 81).
6. Maria estimulava a protecção da emoção. “Maria teve de sofrer com maturidade para educar com profundidade” (Ibidem, 90).
7. Maria estimulava a ambição interior. “Milhões de pais estão a criar os seus filhos e não a educá-los, para consumir produtos e não ideais para libertar a criatividade, ousadia, para lidar com perdas e frustrações” (Ibidem, 107).
8. Maria vivia e ensina a arte da contemplação da natureza. “Os pais que educam os seus para terem um contacto com a natureza não apenas enriquecem a emoção, como impulsionam a expansão das estruturas cognitivas” (Ibidem, 119).
9. Maria estimulava a inteligência para construir um projecto de vida e a disciplina para executar. “Os projectos não nos tornam heróis, mas dão-nos condições para sobreviver quando não há chão para caminhar e um ombro para nos apoiar (Ibidem, 129).
10. Maria contava a sua história de vida como o melhor presente na educação do seu filho. “O educador de excelência é o que abraça quando todos rejeitam. Educar é transportar-nos para o mundo do outro sem penetrar nas suas entranhas… é caminhar sem ter certeza de onde se vai chegar” (Ibidem 142.15).
Sentimo-nos tão modernos e tão pouco abertos á história, à memória e à herança que ao longo dos séculos fomos recebendo. Buscamos incessantemente novas verdades e ideias e esquecemos que outros já passaram o mesmo por nós. Se os homens acreditassem que a Palavra de Deus tem uma pedagogia realizada e aceite por pessoas concretas (Maria, por exemplo), talvez percebamos que o ser humano tem futuro somente numa pedagogia do amor.

Literatura e Sagrado (1)


1. Depois de ter apelado à necessidade de uma infoética para os media que dominam a actual sociedade globalizada, o Papa Bento XVI pede aos católicos que revalorizem a arte e a literatura: “Que os cristãos valorizem mais a literatura, a arte e os meios de comunicação social, para favorecer uma cultura que defenda e promova os valores da pessoa humana” (intenção do Apostolado da Oração para o mês de Maio).

Durante séculos, a literatura e a arte em geral foram profundamente influenciadas pelo cristianismo. A pintura, a escultura, a música ou a literatura, desempenharam uma nobre e dupla função, estética e pedagógica. Ao mesmo tempo que enriqueciam um inestimável património cultural, também ajudaram cristãos (e não cristãos) a sentirem o mistério envolvente da beleza e o permanente apelo do transcendente.

2. Ora, esta oportuna intenção papal recorda-nos a memorável Carta do Papa João Paulo II aos Artistas (1999), entusiasmando-os e interpelando-os como “construtores geniais de beleza”. A beleza artística é, em certo sentido, uma epifania do mistério e da maravilha da Criação original. E a beleza constitui uma experiência de entusiasmo, de alegria e de contacto com o Absoluto.

A literatura em particular sempre foi uma arte através da qual o homem procura conhecer-se e dar um sentido à sua existência. O mundo tem necessidade da beleza; através da experiência estética o homem para dá expressão à sua natureza e supera o sem sentido e o desespero da existência. Por isso, o Papa João Paulo II recordava a famosa afirmação do escritor russo Dostoievsky: “a beleza salvará o mundo”. E deixava um apelo final: “A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente. É convite a saborear a vida e a sonhar o futuro”.

3. É verdade que, modernamente, esse multissecular e fecundo diálogo entre a experiência da fé e a criação artística sofreu afastamentos e rupturas consideráveis. Isso não significa, porém, que a arte e a literatura contemporâneas, ao falar do homem e da sua existência, não recorram a temas e questões de fundo religioso. Há divórcios e antagonismos conhecidos; mas também interrogações e diálogos expressivos.

No limiar do terceiro milénio, é justamente sobre este tópico que nos propomos falar periodicamente, norteados por um mote desafiador: continua a literatura contemporânea a problematizar o sagrado? Como é que arte da palavra pensa aquilo que transcende o homem? Será que hoje a literatura está totalmente divorciada da fé cristã e da experiência do sagrado? Aqui fica o convite inicial para uma breve viagem indagadora e ilustrativa. | Cândido Oliveira Martins

sábado, 17 de maio de 2008

Por uma Europa com Anquises, Eneas, Iulo e Cristo

LOO, Carle van, Eneias carregando Anquises (1729)

1. A Europa foi durante muito tempo um conceito vago. Nas suas famosas Histórias, o historiador grego Heródoto (484-425 a.C.) refere que a Europa e a terra dos gregos era o que ficava para cá das fronteiras dos Persas, que consideravam a Ásia como a sua terra.

2. Eneias, o herói virgiliano que, no Livro Segundo da Eneida, parte de Tróia em direcção ao Lácio carregando aos ombros o velho pai Anquises e apertando a mão do seu pequeno filho Iulo, pode constituir o arquétipo literário, universalmente reconhecido, que serve para dar corpo plástico ao tema: «Os fundamentos de uma Europa em construção».

3. Com a formação dos Estados Helénicos e do Império Romano construiu-se um continente, que veio mais tarde a ser a Europa, mas com fronteiras muito diferentes. Começou por integrar as terras à volta do Mediterrâneo, que se sentiam unidas por laços culturais, comunicações e trocas comerciais, idêntico sistema político. Em termos religiosos, foi o Cristianismo que desde cedo veio dar uma maior consistência a esta bacia do Mediterrâneo.

4. Todavia, com a marcha triunfal do Islão no séc. VII e princípios do séc. VIII, o Mediterrâneo foi cortado ao meio, de tal modo que aquilo que até aí era um continente, fica então dividido em três: Ásia, África e Europa. Por volta do ano 700, este espaço cultural e religioso perde definitivamente a zona meridional do Mediterrâneo, mas estende-se para Norte, incluindo as Gálias, a Bretanha e a Germânia, até à Escandinávia. E em finais do séc. VIII, princípios do IX, com Carlos Magno (742-814), para alguns historiadores o verdadeiro fundador da Europa, consolida-se esta nova Europa, herdeira cultural do antigo Império Romano, que agora se vê como que renascido e fortemente impregnado pelo Cristianismo. Carlos Magno foi coroado em Roma, no Natal de 800, pelo Papa Leão III.

5. Entretanto, com o fim do Império Carolíngio, esta ideia de Europa desvanece-se, para voltar a aparecer de novo no início dos tempos modernos, em 1493, por causa do perigo turco. Mas só no séc. XVIII se afirmará de forma universal.

6. Se o Império Romano teve no Ocidente uma história atribulada, no Oriente, com centro em Constantinopla, resistiu até ao séc. XV, irradiando o lume Cristão pelo mundo eslavo. Quando, em 1493, Constantinopla é tomada pelos turcos, a herança bizantina transfere-se para Moscovo, deslocando-se então as fronteiras da Europa para Norte e para Oriente, até aos Urais. Mas enquanto a Oriente a Europa se expande para a Ásia, a Ocidente expande-se para fora das suas fronteiras geográficas e chega ao Novo Mundo, do outro lado do Atlântico, que então recebe o nome de América. Esta é também a altura em que a própria Europa se divide em duas metades: uma latino-católica, e outra germânico-protestante.

7. O espaço Europeu foi, no decurso do século XX, sacudido por duas guerras. Após a devastação da Segunda Guerra Mundial, os pais da União Europeia – Adenauer, Schumann, De Gasperi – vêem com clareza que esta nova Europa tem de procurar os seus fundamentos na herança Cristã que a foi moldando ao longo dos séculos. Todavia, com o tempo, foram os aspectos económicos que foram privilegiados, esquecendo-se cada vez mais os fundamentos espirituais. Pouco a pouco eclipsaram-se os valores cristãos, desapareceu o sagrado, a família entrou em declínio, hipotecou-se o futuro por falta de nascimentos.

8. Ensina a demografia que, para a simples manutenção da população de um determinado território, é requerida uma média de nascimentos de 2,1 filhos por mulher. Ora, neste começo do século XXI, Portugal decresce à média de 1,3 filhos por mulher, a Espanha à média de 1,1, a Itália e a Alemanha à média de 1,3, a França à média de 1,7. E é sabido que estes índices, sobretudo na França, Itália e Alemanha ainda se ficam a dever muito à presença árabe e africana. E os demógrafos vão avisando que, se nada for alterado, no final deste século XXI, já não haverá Europa, mas Eurábia ou Eurásia.

9. Assistimos hoje a uma Europa velha, doente, esquecida e triste, que já não gosta de si mesma nem da sua própria história, que já não luta nem sonha, mas que ainda pensa que se pode voltar a reunir à volta de uma lareira sem lume, de uma mesa sem pão ou de uma Constituição sem conteúdos, inspirada, dizem, em «heranças culturais, religiosas e humanistas» mais ou menos virtuais, de que ninguém diz nem sabe nem quer saber o nome. Mas eu digo que é cada vez mais uma Europa sem Cristo, sem Eneias e sem Iulo. E só com Anquises não vamos longe.

António Couto

terça-feira, 13 de maio de 2008

programa

[Georges Rouault – Cristo e os discípulos]


Se apenas uma coisa pudesse aqui deixar escrito sobre o que julgo que, de facto, é necessário, isso seria: importa que, como os pagãos afirmavam sobre os primeiros cristãos, de novo, se possa, hoje, dizer: “Vede como eles se amam”. Cinco palavras, um vasto programa.
[EJML]

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Etty Hillesum, Diário


Oração de Domingo de manhã (12 de Julho de 1942)



Vou prometer-te uma coisa, Deus, só uma ninharia: não irei sobrecarregar o dia de hoje com igual número de preocupações em relação ao futuro, mas isso custa um certo exercício. Cada dia já tem a sua conta. Vou ajudar-te, Deus, a não me abandonares, apesar de eu não poder garantir nada com antecedência. Mas torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, nós é que temos de te ajudar, e, ajudanto-te, ajudamo-nos a nós próprios. E este é a única coisa que podemos preservar nestes tempos, e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. E talvez possamos ajudar a pôr-te a descoberto nos corações atormentados de outros...

Do Diário de Hetty Hilesum (1941-1943) traduzido para português e editado pela editora Assírio e Alvim, na colecção "Teofanias".
Dela diz Tolentino Mendonça, no prefácio desta tradução: "A 9 de Março de 1941, quando Etty Hillesum começou a escrever, no primeiro dos oito cadernos de papel quadriculado, o texto que viria a ser o seu Diário, estava-se longe de pensar que começava aí uma das aventuras literárias e espirituais mais significativas do século. Ela tinha vinte e sete anos de idade e morreria sem ter feito trinta".



(Luís Marinho)

domingo, 11 de maio de 2008

Esperança


Assumo a minha predilecção pela poesia. Saboreei - e continuo a saborear - este delicioso poema de Miguel Torga com tamanho gosto que não resisto a partilhá-lo. É bom sentir a nossa alma impregnada da força de uma esperança assim. Não há inércia que lhe resista, nem "combate" que não valha a pena! (Carminda Marques)

Esperança
quero que sejas
a última palavra
da minha boca.
A mortalha de sol
que me cubra e resuma.
Mas como à despedida só há bruma
no entendimento,
e o próprio alento
atraiçoa a vontade,
grito agora o teu nome aos quatro ventos.
Juro-te, enquanto posso, lealdade
por toda a vida e em todos os momentos.

Miguel Torga

sábado, 10 de maio de 2008

Anunciar e testemunhar a alegria


«O sorriso custa menos que a electricidade; e dá mais luz» -Arturo Merayo


Na véspera de Pentecostes e depois da 42ª Jornada das Comunicações Sociais, achamos oportunas estas palavras de Olegário Cardedal em «ABC» de 3 de Abril: «Os humanos não nos sentimos consolados ou fortalecidos pelas demonstrações, que apenas geram claridade, mas não fortaleza de alma. Ajuda-nos mais a exortação que a demonstração; a esperança que a evidência; as palavras que nos abrem um futuro com largueza de horizontes que as que nos mostram o evidente.…Nós aderimos, não a quem nos vence, humilhando-nos, mas a quem nos convence como pessoas; seguimos quem nos oferece confiança pessoal; imitamos quem nos parece admirável e que, com gratuidade e humildade, nos leva a pensar, a esperar e a amar.»
Bento XVI, na ordenação de 29 sacerdotes, no dia 27 de Abril, perguntava: «Que é que pode ser maior, mais entusiasmante, do que cooperar na difusão da Palavra de vida no mundo e comunicar a água viva do Espírito Santo? Anunciar e testemunhar a alegria é o núcleo central da vossa missão» . Acrescentou ainda: «Para serdes colaboradores da alegria dos outros, num mundo que, com frequência, é triste e negativo, é necessário que o fogo do Evangelho arda dentro de vós e que more em vós a alegria do Senhor. É vossa missão serdes mensageiros e multiplicadores desta alegria a todos, especialmente aos que andam tristes e estão decepcionados». Carlos Nuno Vaz

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Ainda sobre o “comunicar com eficácia no séc. XXI”


Comecei por referenciar brevemente a “minha identidade”. Penso que (tenho a certeza!) nenhuma pessoa pode dizer que se conhece totalmente. Ainda existe em nós muitos «Eu’s desconhecidos» ou até mesmo «Eu’s cegos»!

Um dos livros que nos últimos anos tem contribuído para o meu viver e agir, tal como a muitos jovens estudantes do secundário a quem lhes tento passar a mensagem, é: «Saber lidar com as pessoas!», de António Estanqueiro, da Editorial Presença (pode ser consultado em http://www.webboom.pt/ficha.asp?id=37168).

A vida do sacerdote é uma contínua relação com os outros que, só é possível, num conhecimento de si. Sabemos da importância disso! Contudo, nem sempre conseguimos lidar da melhor forma perante os problemas complexos que o dia-a-dia nos impõe. Como auxílio a esta aventureira missão proponho o recordar de ideias e conselhos práticos que o autor nos indica, para que o estar com os outros seja uma verdadeira “obra de arte”. (Francisco Marcelino Esteves)

A minha Identidade

Pois bem!

Não sei precisamente por onde começar, mas … tentarei por um princípio: a minha identidade. Sou um simples Cura da aldeia nas terras montanhosas dos confins da Diocese de Braga, que se deixou tocar pelo encanto da natureza e a simplicidade do seu povo. Aprendi, de forma especial, a dialogar com o silêncio, a fortalecer a paciência, como a do semeador que não sabe se colhe o que cuida, e o valor do acolhimento e generosidade, tal como a da porta de casa (e do coração) que sempre está aberta, para mais dar, do que receber!

Gostava de delinear um caminho do meu contributo para este blog, para assim saberem com o que contam! Mas … também com a gente simples compreendi que temos de estar mais disponíveis para o que o imprevisto nos pede, do que para o cumprimento de programações.

Assim sendo, tentarei que seja um pouco de tudo e que ajude à formação de todos nós! (Francisco Marcelino Esteves)

Maio e amor de mãe

Alfredo Cunha, olhares.com


1. No dizer do n.º 6 da Constituição Dogmática A Revelação Divina, do Concílio Vaticano II, a Revelação de Deus ao homem não consiste, da parte de Deus, numa coisa que ele entrega, num ditado que dita, numa lição que dá; nem, da parte do homem, numa coisa que recebe, num ditado que escreve, numa lição que aprende. Muito mais do que isso, a Revelação é Deus que a si mesmo se entrega ao homem em dádiva total.

2. Nesse sentido, e segundo a mesma Constituição Dogmática, n.º 5, a resposta correcta por parte do homem a esta entrega pessoal de Deus, não pode consistir, antes de mais, em aprender o que quer que seja, mas em acolher este Deus que a ele se entrega, e em entregar-se, por sua vez, livremente a Deus. E esta atitude de entrega pessoal, total, psicobiológica, do homem a Deus, que já antes se tinha entregado ao homem, chama-se Fé.

3. Fé ou fidelidade diz-se em hebraico emunah. Emunah deriva do verbo aman, cujo significado primeiro é segurar, firmar, mas também significa fiar-se, confiar, ser fiel. É, de resto, fácil entender que a confiança ou a fidelidade entre amigos, namorados ou esposos, e de nós mesmos uns com os outros, gera segurança e firmeza, enquanto que a desconfiança gera insegurança. Andamos mais seguros quando confiamos uns nos outros. Quando desconfiamos, instala-se a insegurança.

4. Indo um pouco mais fundo, podemos ainda verificar que o verbo aman pode assentar numa etimologia tipicamente maternal: pode derivar de omen, que significa mãe ou ama, e de amûn, que significa bebé. É sabido que o bebé se agarra [= segura-se] com todas as suas forças à sua mãe, sendo o colo da mãe o lugar mais seguro do mundo para o bebé. E o mesmo se passa do lado da mãe, que por nada deste mundo abandona o seu bebé.

5. Significativamente foi a esta relação pessoal fortíssima entre a mãe e o bebé, traduzida em confiança e segurança e felicidade, que a Bíblia foi buscar o termo para dizer fé. Isto é, a relação feliz, segura e de radical confiança que nós vemos existir entre a mãe e o seu bebé é, para a Bíblia, a melhor analogia para traduzir a relação, igualmente feliz, segura e de pessoalíssima confiança que deve existir entre nós e Deus. Esta relação seguríssima chama-se fé.

6. Eis um belíssimo solilóquio em que Deus se expressa com traços maternos e paternos, mais maternos que paternos: «Fui eu que ensinei a andar Efraim,/ que os ergui nos meus braços,/ mas não conheceram que era eu que cuidava deles!/ Com vínculos humanos eu os atraía./ Com laços de amor,/ eu era para eles como os que erguem uma criancinha de peito contra a sua face,/ e me debruçava sobre ela para a alimentar» (Oseias 11,3-4).

7. Até Deus se revê no amor de mãe. Maio pode ser mais belo, se os nossos gestos forem um pouco mais maternos.

António Couto

quinta-feira, 8 de maio de 2008

A crise de Deus

O meu contributo para este blogue será, predominantemente, fruto das minhas leituras teológicas, seja de livros seja dos fenómenos mais diversificados. Nesse sentido, é uma proposta a que os leitores possam continuar essa actividade, pelos caminhos que considerarem mais adequados (João Duque)

“A crise que atravessa o cristianismo europeu não é principalmente nem exclusivamente uma crise eclesial… A crise converteu-se numa crise de Deus. E, enquanto tal, deixa de ser provincial ou confessional. Não afecta apenas as igrejas, não afecta só os cristãos, nem sequer apenas os europeus. Trata-se de uma crise da humanidade, pois Deus, ou é um tema que afecta a humanidade inteira ou carece, por completo, de interesse…

Esta crise de Deus não é fácil de diagnosticar, porque na actualidade, tanto dentro como fora do cristianismo, encontra-se envolvida numa atmosfera de positiva predisposição para a religião. Vivemos numa espécie de crise de Deus com cores religiosas. O slogan reza: «religião sim; Deus não!», ainda que este «não» não possua o carácter categórico próprio dos grandes ateísmos. Já não existem grandes ateísmos. Na época da crise de Deus, até o ateísmo se tornou banal. A disputa sobre a transcendência parece concluída; e o além, está definitivamente dissipado. E assim, o ateísmo de hoje pode voltar a falar de Deus – de forma distraída e informal – sem em realidade se referir a Ele: como metáfora flutuante, que se usa nas conversas das festas, no sofá do psicanalista, no discurso estético, ou como código para a legitimação da comunidade jurídica civil, etc.

A religião como nome para o sonho de felicidade sem sofrimento, como encantamento mítico da alma, como presunção psicológico-estética de inocência para o ser humano: sim. Mas Deus, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus de Jesus?...

Até que ponto é compatível com a modernidade o discurso bíblico sobre Deus? Em que condições sobreviveu a todas a privatizações e funcionalizações da modernidade? E à transformação da metafísica em psicologia e estética? Como se adaptou ao petulante pluralismo das nossas sociedades liberais e ao turbilhão das suas extremas individualizações? Que aconteceu? Desapareceu definitivamente o inteligível, comunicativo e promissor poder da palavra de Deus? Que aconteceu com Deus?”

(Johann Baptist Metz, Memoria passionis. Una evocación provocadora en una sociedad pluralista, Santander: Sal Terrae, 2007)

quarta-feira, 7 de maio de 2008


Julgo oportuno, ao iniciar o meu contributo neste espaço, apresentar o caminho que penso percorrer, esperando, desta forma, corresponder aos objectivos deste blog. A minha participação será o reflexo das minhas leituras em várias áreas de interesse pessoal e, sobretudo, pastoral. Tenho centrado a minha atenção nesta área da teologia pastoral. Por isso, espero aqui apresentar breves reflexões, textos, bibliografia que possam motivar-nos para a reflexão e o diálogo: o que vem ao virar da esquina? que novos caminhos se apresentam? que propostas têm surgido? Apesar de algum discurso insistente sobre a «crise», vivemos tempos de esperança. Precisamos descobrir aquilo que de novo e de inédito Deus continua a realizar no mundo de hoje. [Sérgio Torres]


Começo por um livro que tem hoje a sua apresentação. «A Leitura Infinita», de José Tolentino Mendonça.

«Cipriano (200-258) dizia: “Se, na oração, falamos com Deus, na leitura da Bíblia Deus fala connosco.” Jerónimo (347-420), escrevendo a um discípulo recomendava: “Não separes nunca a tua mão do Livro, nem distancies dele os teus olhos.” Cassiodoro (490-583) referia-se à farmácia da lectio: “Como um campo fecundo produz ervas odorosas, úteis para a nossa saúde, assim a lectio divina oferece sempre cura para a alma ferida.” E é ainda a imagem campestre que serve a João Damasceno (675-750): “Batamos à porta desse belíssimo jardim das Escrituras.” Poderíamos multiplicar por mil os aforismos deste tipo, que mostram como a tradição cristã se pensou, desde o princípio, como uma prática de leitura. Uma infinita leitura.

O presente volume reúne textos de teologia e exegese bíblicas. A maioria deles conheceu publicação em revistas desse âmbito ou circulou em edições muito restritas, e foi agora revisto a pensar neste livro. Agradeço às pessoas e entidades que primeiro os acolheram. E agradeço aos leitores que os acolhem agora.» [José Tolentino Mendonça]

terça-feira, 6 de maio de 2008

Pai Nosso


Pai-Nosso, que estais nos céus

É o nosso Pai; não há nada de real em nós que não proceda dele.
Pertencemos-lhe. Ele ama-nos, visto que se ama e nós lhe pertencemos.
Mas é o Pai que está nos céus. não em qualquer outro lugar.
Se cremos ter um Pai neste mundo não é ele, é um falso Deus.
Não podemos dar único passo na sua direcção. Não se caminha verticalmente.
Não podemos dirigir para ele senão o nosso olhar.
Não há que procurá-lo, é necessário apenas mudar a direcção do olhar. É a ele que pertence procurar-nos.
Há que estar feliz por saber que ele se encontra finalmente fora do nosso alcance.
Temos assim a certeza de que o mal em nós, mesmo se submerge todo o nosso ser, não macula minimamente a pureza, a felicidade, a perfeição divinas.



Simone Weil (Espera de Deus. Assírio e Alvim)

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Padre António Vieira


Uma boa maneira de celebrar os 400 anos do nascimento do P. António Vieira, vulto cimeiro da cultura portuguesa, será ler mais alguns dos seus sermões ou, pelo menos, trechos deles que ficaram famosos. Por isso propomos hoje este texto absolutamente brilhante.
(Silva Pereira)

A ALMA

Quereis ver o que é uma alma? Olhai (diz S. Agostinho) para um corpo sem alma.
Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, as matemáticas, a teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos, aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos humanos e divinos que admiramos, e excedem a admiração - tudo isso era a alma.
Se o corpo é de um artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores? Quem amolecia o ferro, quem derretia os bronzes, quem dava nova forma e novo ser à mesma natureza? Quem ensinou naquele corpo regras ao fogo, fecundidade à terra, caminhos ao mar, obediência aos ventos, e a unir as distâncias do universo e meter todo o mundo venal em uma praça? A alma.
Se o corpo morto é de um soldado, a ordem dos exércitos, a disposição dos arraiais, a fábrica dos muros, os engenhos e as máquinas bélicas, o valor, a bizarria, a audácia, a constância, a honra, a vitória, o levar na lâmina de uma espada a vida própria e a morte alheia, quem fazia tudo isto? A alma.
Se o corpo é de um príncipe, a majestade, o domínio, a soberania, a moderação no próspero, a serenidade no adverso, a vigilância, a prudência, a justiça, todas as outras virtudes políticas com que o mundo se governa, de quem eram governadas e de quem eram? Da alma.
Se o corpo é de um santo, a humildade, a paciência, a temperança, a caridade, o zelo, a contemplação altíssima das coisas divinas, os êxtases, os raptos, subindo o mesmo peso do corpo, e suspenso no ar - que maravilha! Mas isso é a alma.
Finalmente, os mesmos vícios nossos nos dizem o que ela é. Uma cobiça que nunca se farta; uma soberba que sempre sobe; uma ambição que sempre aspira; um desejo que nunca aquieta; uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a de Alexandre; uma altiveza como a de Adão, que não se contenta menos que com ser Deus: tudo isto, que vemos com os nosso olhos é aquele espírito sublime, ardente, grande, imenso - a alma.
Até a mesma formosura, que parece dote próprio do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos: aquela graça, aquela proporção, aquela suavidade de cor, aquele ar, aquele brio, aquela vida, que é tudo senão a alma?
E senão, vede o corpo sem ela, insta Agostinho. Aquilo que amáveis e admiráveis, não era o corpo, era a alma. Apartou-se o que se não via, ficou o que se não pode ver.
A alma levou tudo o que havia de beleza, como de ciência, de arte, de valor, de majestade, de virtude; porque tudo, ainda que a alma se não via, era a alma.

António Vieira

domingo, 4 de maio de 2008

O Bom Pastor: Formação do Clero da Arquidiocese de Braga




...e porque esta mudança é na continuidade, sem rupturas, para aceder ao antigo blogue basta clicar aqui

Ascensão do Senhor: partir ficando



(Ascensao, Bill Viola)

"Toda a descida em nós mesmos é simultaneamente uma ascensão, uma assumpção, uma vista do verdadeiro exterior", escreveu Novalis. Depois de um tempo de deserto, tempo de descida em nós, eis que o blogue da formação do clero da Arquidiocese de Braga ressurge com novo vigor, novas aventuras, novos rostos e novas propostas, sempre em comunhão eclesial. A Solenidade da Ascensão é um óptimo ponto de partida: com os pés bem assentes na terra, erguemos o olhos para o alto de onde nos vem toda a consolação e toda a espécie de bençãos. Duc in altum!