sábado, 28 de junho de 2008

S. Paulo e os estrangeiros

O comércio sanjoanino à porta de minha casa era, este ano, menos qualificado. Em vez de objectos de artesanato, como no ano passado, havia produtos industriais. Os vendedores, esses, eram, no ano transacto e este ano, de origem senegalesa. E, em ambos os anos, não tiveram sorte. O negócio correu mal pelas mesmas razões: o preço do aluguer do espaço é elevado; as vendas, reduzidas. Enquanto desmontava a improvisada loja destes dias que, a seguir, instalará em Vila Real, Mamadou lamentava-se. Mas isso não o impediu de, na despedida, me oferecer uma das carteiras que não conseguiu vender.

É nele e nos que, como ele, vêm de longe para tentar que a vida seja um pouco melhor que penso neste sábado em que, com o propósito de celebrar os dois mil anos do nascimento do apóstolo Paulo, se inicia o Ano Paulino e no mesmo dia em que se ficou a saber, através do Diário do Minho, que o Fórum de Organizações Católicas para a Imigração, reunido no dia anterior, condenou uma directiva que o Parlamento Europeu aprovou recentemente relativa à deportação de imigrantes em situação ilegal. Os imigrantes pobres (porque é sempre desses que se trata) que estejam à espera de expulsão, com a nova legislação, podem ficar detidos durante um período de um ano e meio e, mesmo que não sejam criminosos, podem ser enviados para estabelecimentos prisionais comuns.

Defendendo que as medidas de controlo dos fluxos migratórios devem levar em conta o apoio e o compromisso dos países europeus em relação ao desenvolvimento dos países de origem dos imigrantes, o Fórum, que reúne mais de uma dezena de organismos católicos, garante que a directiva não protege os direitos fundamentais dos imigrantes – “pessoas que se deslocam para construir ou reconstruir um projecto de vida” – e ignora os dramas humanos que tantas vezes os acompanham.

É na primeira carta que S. Paulo endereça à comunidade cristã da próspera cidade de Corinto, escrita durante a terceira viagem missionária do apóstolo, que se encontra aquele que será, talvez, um dos mais citados e comentados extractos dos seus escritos.

É nessa passagem que Paulo se afirma ao serviço de todos: “De facto, embora livre em relação a todos, fiz-me servo de todos, para ganhar o maior número. Fiz-me judeu com os judeus, para ganhar os judeus; com os que estão sujeitos à Lei, comportei-me como se estivesse sujeito à Lei – embora não estivesse sob a Lei – para ganhar os que estão sujeitos à Lei; com os que vivem sem a Lei, fiz-me como um sem Lei – embora eu não viva sem a Lei de Deus porque tenho a lei de Cristo – para ganhar os que vivem sem a Lei. Fiz-me fraco com os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para salvar alguns a qualquer custo”.

A linguista, psicanalista e escritora Julia Kristeva recorda este escrito “cosmopolita” do apóstolo Paulo em Étrangers à nous-mêmes (Paris: Fayard, 1988). Observa esta mulher, que se assume como cidadã europeia, de nacionalidade francesa, de origem búlgara e de adopção americana, que “Paulo adopta, desenvolvendo-o ao máximo, um traço essencial da espiritualidade própria deste mundo de estrangeiros: a hospitalidade. Facto notável: pratica-a gratuitamente – o clérigo não mendiga nem faz carreira na religião, mas trabalha com as suas próprias mãos. Mais ainda: o estrangeiro sendo o Cristo ele mesmo, recebê-lo é ser recebido em Deus”.

Julia Kristeva afirma que o que conta para Paulo é o povo renovado para formar uma entidade original, a Igreja. “O messianismo dos judeus transforma-se em messianismo incluindo toda a humanidade: a Ecclesia será a universalidade do ‘povo’ para além dos povos, recolhidos ao isolamento e à solidão do deserto para receber a palavra de uma nova Aliança”.

“Arrancar o corpo ao coração e o abatimento ao entusiasmo é uma verdadeira transubstanciação, que Santo Agostinho chama precisamente peregrinação”, nota Julia Kristeva no ensaio referido, acrescentando que, embora o estrangeiro, transformado em peregrino, não resolva os seus problemas sociais e jurídicos, encontra, na civitas peregrina do cristianismo, ao mesmo tempo um élan psíquico e uma comunidade de entreajuda que parecem ser a única saída para o seu desenraizamento, sem rejeição, nem assimilação nacional.

O estrangeiro, sublinha Julia Kristeva, “começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros”. Peregrinos, portanto, e hóspedes sobre a terra.


[Eduardo Jorge Madureira Lopes,
texto a publicar amanhã no Diário do Minho]

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Como as estrelas



No texto colocado neste Blog, no passado dia 19, incitava-nos o P. António Vieira: “Aprendamos do céu o estilo da disposição (das palavras) e também as palavras.
Como hão-de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e claras”, como queríamos também as almas. Como são as vidas daqueles que encontram verdadeiro sentido para o seu viver e conseguem ser luz, sem nunca terem desejado brilhar. Aqueles para quem, como diz Teixeira de Pascoaes:

“Viver é queimar a vida,
transformá-la em calor
e claridade.

Viver e arder
é o mesmo fenómeno.

Como distinguir as almas
das estrelas?

Brilham no mesmo céu
anoitecido,
no mesmo fundo
tenebroso,
impenetrável ao pensamento
dos filósofos.”

[Carminda Sousa Marques]

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Eucaristia, dom de Deus para a vida do mundo


É pertinente este tema?, perguntaram ao cardeal Marc Ouellet. E a sua resposta foi:
«Temos necessidade de tomar consciência que o mistério eucarístico é o dom que Deus faz dele mesmo para alimentar o coração do homem. Esta relação com Deus é-nos dada para ser partilhada. Daí vem o cuidado dos cristãos por todas as fomes humanas. Não somente a fome ligada à crise alimentar do momento presente, mas também a fome da Palavra de Deus, a fome de justiça, de afecto, de respeito por todas as vidas.
Os cristãos que experimentam o encontro com o Ressuscitado na Eucaristia são portadores de uma missão que consiste em colaborar com Deus para socorrer os seus irmãos e irmãs. São convidados a fazê-lo na comunhão que Deus quer realizar com toda a humanidade.
A mensagem do congresso é pertinente, quer a nível local, quer mundial.
O Congresso [Eucarístico do Québec] vai contribuir para aprofundar a ligação entre compromisso e oração. O compromisso social não é mais que uma consequência da Eucaristia: é o sinal de uma coerência com o próprio compromisso de Deus. É Deus que se dá e nos insere no seu dom. A acção junto dos mais desfavorecidos faz, pois, parte da relação que Deus quer ter com a humanidade».

Carlos Nuno Vaz

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Da beleza da morte à morte da beleza…


Klimt - Morte e Vida

“O mito moderno do progresso, tão grato aos «grandes relatos» ideológicos, tende a fazer da morte uma etapa marginal na história do indivíduo totalmente assimilado à causa, sacrificado ao triunfo da ideia: a morte é ignorada, camuflada, escondida, fátua «flor negra» sobre os prados do absoluto…

Este «declinar da morte» conjuga-se também com o «declinar da beleza»: o belo é transformado em espectáculo, reduzido a bem de consumo, de modo a que dele seja exorcizado o desafio doloroso e os humanos sejam ajudados a já não pensar, a evitar a fadiga e a paixão do verdadeiro, para se abandonarem ao imediatamente desfrutável, calculado com o único interesse do consumo imediato. É o triunfo da máscara, em detrimento da verdade; é o nihilismo da renúncia a amar, onde se busca fugir da dor infinita da evidência do nada, fabricando máscaras tranquilizadoras, por detrás das quais se oculta o carácter trágico do vazio. No grande mercado da «aldeia global», parecem desaparecer os sinais da beleza: a máscara da propaganda parece triunfar em todas as frentes, a respeito da seriedade trágica da interrupção sem defesa da verdade e da beleza últimas. O «eclipse da morte» revela-se inseparável da «morte da beleza»: a fragilidade do fragmento não parece aguentar o peso do Todo que aí irrompe…”

Bruno Forte, En el umbral de la Belleza, 2004, 158.

domingo, 22 de junho de 2008

Ode ao pão


Pão,
com farinha
água
e fogo
te levantas.
Espesso e leve,
reclinado e redondo,
repetes
o ventre
da mãe,
equinocial
germinação
terrestre.
Pão,
que fácil
e que profundo tu és:
no tabuleiro branco
da padaria
estendem-se as tuas filas
como utensílios, pratos
ou papéis,
e de súbito a onda
da vida,
a conjunção do germe
e do fogo,
cresces, cresces
de súbito
como
cintura, boca, seios,
colinas da terra,
vidas,
sobre o calor, inunda-te
a plenitude, o vento
da fecundidade,
e então
imobiliza-se a tua cor de oiro,
e quando já estão prenhes
os teus pequenos ventres
a cicatriz escura
deixou sinal de fogo
em todo o teu doirado
sistema de hemisférios.
Agora,
intacto,
és
acção de homem,
milagre repetido,
vontade da vida.
Ó pão de cada boca
não
te imploraremos,
nós, os homens,
não somos
mendigos
de vagos deuses
ou de anjos obscuros:
do mar e da terra
faremos pão,
plantaremos de trigo
a terra e os planetas,
o pão de cada boca
de cada homem,
em cada dia
chegará porque fomos
semeá-lo
e fazê-lo,
não para um homem, mas
para todos,
o pão, o pão
para todos os povos
e com ele o que possui
forma e sabor de pão
repartiremos:
a terra,
a beleza,
o amor,
tudo isso
tem sabor de pão,
forma de pão,
germinação de farinha,
tudo
nasceu para ser compartilhado,
para ser entregue,
para se multiplicar.

Por isso, Pão,
se foges
da casa do homem,
se te escondem,
se te negam,
se o avarento
te prostitui,
se o rico
te armazena,
se o trigo
não procura sulco e terra,
pão,
não rezaremos
pão,
não mendigaremos,
lutaremos por ti com outros homens,
com todos os famintos,
por todos os rios, pelo ar
iremos procurar-te,
a terra toda repartiremos
para que tu germines,
e connosco
avançará a terra:
a água, o fogo, o homem
lutarão junto a nós.
Iremos coroados
de espigas,
conquistando
terra e pão para todos,
e então
também a vida
terá forma de pão,
será simples e profunda,
inumerável e pura.
Todos os seres
terão direito
à terra e à vida,
e assim será o pão de amanhã,
o pão de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será o produto
da mais longa e dura
luta humana.
Não tem asas
a vitória terrestre:
tem pão sobre os seus ombros,
e voa corajosa
libertando a terra
como uma padeira
levada pelo vento.
Pablo Neruda

quinta-feira, 19 de junho de 2008

António Vieira (V)


PALAVRAS COMO ESTRELAS

O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu. Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum eius annuntiat firmamentum, diz David.[1] Suposto que o Céu é pregador, deve de ter sermões, e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David: tem palavras e tem sermões, e mais muito bem ouvidos: Non sunt loquellae, neque sermones, quorum non audiantur voces eorum[2]. E quais são estes sermões e estas palavras do Céu? As palavras são as estrelas: os sermões são a composição, a ordem, a harmonia, e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do Céu com o estilo de pregar que Cristo ensinou na terra! Um e outro é semear: a terra semeada de trigo; o Céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia[3], e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem[4]; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, de outra há-de estar Negro; se de uma parte está Dia, da outra há-de estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão-de dizer Subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário?[5] Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão-de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação, muito distinto, e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo: as estrelas são muito distintas, e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto: tão claro que o entendam os que não sabem; e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico, e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem.

António Vieira, Sermão da Sexagésima

[1] Os Céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos(Sl 18,2).
[2] Não são palavras nem discursos cuja voz não se ouça (Sl 18,4)
[3] Todo o sermão se baseia na parábola do pregador como semeador, e da palavra como semente. Um pouco antes dissera Vieira que “o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte”.
[4]Juízes 5,20.
[5] Crítica ao estilo culto da pregação barroca.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Literatura e Sagrado (3)

DÜRER, Albrecht: Hand Study with Bible

1. O sagrado manifesta-se literariamente na linguagem metafórica, bem como na referência a certos mitos e símbolos. E não necessariamente na presença de elementos dogmáticos, de textos ou de doutrina teológica, pertencentes às várias religiões institucionalizadas.

O ser humano é um animal simbólico por natureza. E a própria expressão artística não é inteligível fora do contínuo recurso a um certo imaginário – conjunto de mitos, imagens e modelos de representação humana e cultural do mundo. Essas estruturas antropológicas do imaginário impregnam todas as criações e as interpretações humanas. E nem certos racionalismos mais estreitos conseguiram diminuir a importância desse imaginário enformador de sentido.

Ora, no âmbito desse imaginário colectivo, a linguagem humana, sobretudo na sua dimensão artística, está repleta de referências e manifestações hierofânicas, de ressonância transcendental. É, pois, neste sentido (acentuado por Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano) que devemos falar no princípio de sacralidade aplicado à literatura:

“A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo (...) exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Pode dizer-se que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo”.

Ao longo da história, o ser humano procura atribuir um sentido à vida e aos seus tempos cíclicos, sentindo-se atraído pelo transcendental. A esperança de encontro com o transcendente após a morte redime o homem do sentimento de efemeridade.

2. A presença do sagrado na escrita literária contemporânea pode revestir-se de uma enorme variedade de registos – adesão total e manifesta; presença débil ou disfarçada; havendo também lugar para a tentativa de esvaziamento ou mesmo de negação.

Genericamente, nas várias tendências enunciadas, predomina uma atitude de inquietação; muitas vezes sobrevém uma postura inquiridora e dubitativa; enfim quase sempre se desenrola um diálogo (implícito ou visível) com uma riquíssima tradição aberta ao sagrado.

Por mais generalizadas que sejam as ofensivas de um positivismo estreito, ou do laicismo e da anti-religiosidade militantes de hoje, é quase impossível a erosão de séculos de história: um imenso legado artístico-cultural sempre aproximou o homem do transcendente; e confrontou-o reiteradamente com o mistério da vida e da morte. É através dessa linguagem artística, grávida de sentidos, que o homem se pensou; se relacionou com o sagrado e projectou outras dimensões; enfim, se redimiu do agudo sentimento de efemeridade.

Por tudo isto, a leitura do sagrado nos textos literários – de ontem ou de hoje – mostra-se um caminho hermenêutico bastante fecundo, revelador de temáticas centrais e riquezas semânticas insuspeitadas. Sobretudo quando a leitura crítica se detém na interpretação de determinadas ocorrências simbólicas, metafóricas e imagéticas. É justamente essa linguagem mais densa e carregada de significados que estabelece a ponte com a dimensão do sagrado.
| Cândido Oliveira Martins

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Adónis ou João Baptista?

Caravaggio, S. João Baptista


1. De um modo ou de outro, os nomes dos dias da semana das principais línguas vivas europeias (com excepção da portuguesa) estão marcados pelos astros: sol, lua, marte, mercúrio, júpiter, vénus, saturno. Esta maneira de dizer salienta a nossa dependência dos astros, que o mesmo é dizer, das forças da natureza que representam. Exceptuam-se, nalguns casos, o sábado e o domingo, que trazem a marca das tradições hebraica e cristã.

2. Nalguns casos, o nosso paganismo convive amenamente com o nosso cristianismo. É o caso, nesta época do ano (solstício de verão), das festas dos santos populares. Detenhamo-nos na festa de S. João, por ser uma das mais significativas. A tradição bíblica faz de João Baptista um homem austero, que anda pelo silêncio do deserto para melhor escutar a Palavra de Deus, e que, a quantos o procuram, prega penitência e conversão. Mas nós festejamo-lo com esfuziante folia, no meio de barulho e muita música, abundância de vinho e danças...
2.1. Entre os anos 117 e 135, o imperador Adriano, com o intuito de paganizar a Palestina, deitou por terra todos os lugares de culto cristão que lá havia, entre os quais se contava a «casa-igreja» de Ain Karem [= nascente do jardim], lugar do nascimento de João Baptista, a uns 8 Km a SO de Jerusalém, extinguindo assim o nascente culto cristão a João Baptista, e implantando no seu lugar o culto pagão de Adónis. O culto de Adónis é o culto da natureza. Filho do incesto de Ciniras com Esmirna ou Mirra, a beleza de Adónis seduziu a deusa Afrodite ou Vénus, deusa do amor, da beleza, da vegetação e da fertilidade. Ciúmes de outras deusas, entre as quais Perséfone, deusa da morte, fizeram que Adónis fosse morto por um javali, indo assim parar aos braços de Perséfone. O facto deu origem a intrigas entre as duas deusas (Afrodite e Perséfone), só sanadas pelo decreto de Júpiter, que decidiu que Adónis ficasse com Perséfone um terço do ano, com Afrodite outro terço, e que ficasse livre no último terço do ano. Mas Adónis ofereceu este último terço também a Afrodite. O tempo que passa com Perséfone é o Inverno, o tempo triste em que a natureza parece que morre. O tempo que passa com Afrodite é o tempo da Primavera e do Verão, o tempo da explosão da vida e da alegria. As festas em honra de Adónis têm assim um tempo de choro e de lágrimas, que equivale à morte de Adónis e ao tempo que passa com Perséfone, e um tempo mais intenso de folia, que equivale como que à «ressurreição» de Adónis e ao tempo que passa com Afrodite. Como se vê, Adónis não é mais do que natureza, e aquilo que nós festejamos no solstício de verão não é mais do que a exuberância da natureza.
2.2. É esta paganização de João Baptista por Adónis que permanece ainda hoje nas nossas festas populares do solstício de verão.

3. A língua latina fornece-nos duas palavras para dizer «astro»: aster (plural astra) e sidus (plural sidera). Na sua brilhante L’Écriture du désastre (Gallimard, 1980), Maurice Blanchot, desaparecido em 2003, mostrou magistralmente que se as pessoas vivem ligadas aos astros e se o seu comportamento depende deles sem qualquer possibilidade de liberdade, então a vida é com certeza um «des-astre»! E é esta a compreensão que expressamos do «desastre», quando lemos num acontecimento dramático da nossa vida ou da vida dos outros, não o resultado da nossa vontade, mas a influência perniciosa de qualquer astro, o velho destino. Do mesmo modo, dizemos hoje vulgarmente que alguém está siderado, quando está de tal modo fascinado por um objecto ou por um acontecimento, que já não consegue dar um passo por conta própria.

4. Viver ligado aos astros e ao que eles dizem é, portanto, um desastre: se não nos conseguimos libertar deles, ficamos como que siderados, prisioneiros nas mãos de um destino qualquer. Mas se nos separarmos deles, então ficamos de-siderados, do latim desiderare, que deu o nosso desejar. É, portanto, a libertação dos astros, a saída da sideração, que dá acesso ao desejo, que nasce da separação do astral e do regresso à vida e ao movimento, à liberdade e à história, a um tempo que seja nosso.

5. Mas será ainda necessário quebrar este arco desiderativo que molda um «eu» identitário e patronal sempre em expansão, e que apenas sabe negar ou absorver o outro, num processo cego de auto-realização ou auto-satisfação. É necessário abrir-se ao extra, ao sentido objectivo, ao éschaton, ao dom que vem de fora, e que eu não posso produzir por mim mesmo. Tenho de aprender a recebê-lo, abrindo as mãos e o coração.

António Couto

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Certos "confrades"

João XXIII, como se sabe, não apreciava “a tacanhez, a vaidade e a míngua de espírito sobrenatural de certos ‘confrades’”. Conta-se, no livro Fioretti do Bom Papa João (Lisboa: Morais, 1964), que atribuía a estes defeitos a responsabilidade de bom número de males e de revezes que afectam a Igreja.
Falando ao clero italiano, no dia 19 de Fevereiro de 1963, o Bom Papa João afirmou: “Oh, como é por vezes penoso viver com certos confrades, sempre dispostos a não falar senão na forma externa da actividade sacerdotal; dificilmente capazes de recalcar em seu coração uma sede e uma avidez, nem sempre escondidas ou modestas, de promoções, de ascensões, de distinções; habituados a interpretar tudo num tom menor, preparando, assim, precocemente, uma velhice baça e fastidiosa”.

[Eduardo Jorge Madureira Lopes]

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Domínio próprio

Rui Pedro Santos Duarte, olhares.com

“A razão que é uma força do pensamento
não pode nada contra a paixão
que é uma força da natureza”

Quem disse esta frase
De que hoje me lembro?

Não há força humana
contra a paixão.

Há Deus…

Mas não um Deus fechado no oratório.
Deus que na sua infinita inteligência
Sabe da alma, sabe do corpo,
Sabe do homem, sabe da mulher,
Sabe da carne e do sangue…

Deus cuja Ordem
mantém inviolável distância
entre os astros que se atraem.

As forças da natureza
- a paixão é uma delas –
não são na criação
mais que forças dominadas.

Toda a harmonia do mundo
Está nesta vitória:
Um caos que encontra o seu senhor.

E disse Deus ao mar:
- Não irás mais longe.
A harmonia do homem é a mesma vitória
A mesma dominação do mesmo caos.

E também não há obra de arte
Sem domínio do espírito.

No princípio é o caos,
mistura sombria das riquezas infusas.

Depois o vento sopra sobre o abismo,
ressuscita os pensamentos,
agita as emoções,
dá ritmo às palavras interiores,
é a inspiração.

Sobrevém a inteligência,
aparta, escolhe, separa, ordena.
marca a cada elemento
o seu nome, o seu lugar,
os seus limites:

- Aqui a água, aqui a terra…
Tu não passarás além.
Aqui o dia, aqui a noite…
Não durarás mais tempo.

Aqui tal pensamento, tal episódio,
tal palavra, tal som.

Tu, que estás a mais, desaparece.
Tu, que, demasiado pronta,
foste a primeira a apresentar-te
ficas para o fim.

E tu, enfeitada demais,
Despoja-te, deixa isso,
Entra na ordem…”

Marie Noel

terça-feira, 10 de junho de 2008

Fazer da vida a ternura


Para este Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, mas também do Anjo da Guarda de Portugal, e dois dias apenas após a Homenagem da terra natal, Lijó – Barcelos, a João do Vale Ferreira, pareceu-me que teria cabimento ofertar a todos o Ramo de Rosas que ele queria que fosse a sua vida e a de todos os que aspiram a viver com alegria e na alegria de ser portugueses e católicos. Tal ramo é feito de:

Verdade/ pureza de sentimentos/ amor/ ternura/ naturalidade/ humanidade

Para este antigo aluno dos seminários, professor do ensino secundário, jornalista e poeta, enamorado do nosso Vate, a palavra ternura, obsessivamente presente na maioria dos seus poemas, exprime o que Tolentino Mendonça afirma da providência segundo a fé de Israel, citando Jer 31, 20: «A fé de Israel descreve o omnipotente Senhor do Mundo, na Sua Providência, com entranhas maternas, seduzido pelas manifestações do amor filial, profundamente enternecido…. É por isso que minhas entranhas se comovem por ele e, por ele, transborda a minha ternura». (A Leitura Infinita, p. 69).
Tal como, citando Ravasi, afirma do autor do salmo 65, também eu diria que Vale Ferreira: «o poeta se deixou contagiar pela ternura de Deus». (O. C. p. 71)
Sirva de aperitivo aos seus muitos, belos e bons poemas, o refrão do Hino à Senhora da Abadia de Lijó:

Ó Senhora da Abadia,
Minha Ternura em Poema,
Quero amar-vos, noite e dia,
No fascínio e no dilema

(Carlos Nuno Vaz)

segunda-feira, 9 de junho de 2008

O fundamento da pessoa




“A teologia defende a pessoalidade de Deus, em primeiro lugar, porque Deus não pode ser – por amor do ser humano, a quem interpela pessoalmente – menos do que pessoal, em sentido analógico, caso tenha algo a dizer aos humanos – pessoal, mas não uma pessoa, ou mesmo personalidade, no sentido unívoco em que isso se aplica ao ser humano. Um Deus que fosse simplesmente um «princípio» impessoal, ou apenas uma «essência», não poderia chamar o ser humano ao ser, pela palavra (Criação) ou vir ao seu encontro na palavra (história da salvação), enquanto precisamente ser humano e ser de liberdade. Em segundo lugar, a personalidade de Deus deve ser pensada, por amor de si mesmo, de tal modo que Deus não perca a sua divindade, quando se compromete, como criador e como participante no jogo da história. Isso significa: a criação do mundo não é um processo necessário, que se segue da «natureza» de Deus, ou da sua essência, pois Ele está, de modo livre, perante a sua criação e a respectiva história”.

P. Hofmann, Die Bibel ist die erste Theologie, Paderborn, 2006, 362-363.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sarça ardente, António Vieira (IV)

Nicolas Froment, Sarça ardente, 1476

Vê Moisés no deserto uma sarça, que ardia em fogo e não se queimava. Pasma da visão, parte a vê-la de mais perto; e quanto mais caminha, e vê, tanto mais pasma. Ser fogo, o que estou vendo, não há dúvida: aquela luz intensa, aquelas chamas vivas, aquelas lavaredas ardentes, de fogo são; mas a sarça não se consome; a sarça está inteira; a sarça está verde. Que maravilha é esta? Grande maravilha para quem não conhecia o fogo, nem a sarça; mas para quem sabe que o fogo era Deus, e a sarça Maria, ainda era maravilha maior, ou não era maravilha. O fogo era Deus, que vinha libertar o povo. Assim o diz o Texto. A sarça era Maria, em quem Deus tomou forma visível, quando veio libertar o género humano. Assim o diz S. Jerónimo, Santo Atanásio, S. Basílio, e a mesma Igreja. Como o fogo estava na sarça como Deus estava em Maria, já o seu fogo não tinha actividades para queimar; luzir sim, resplandecer sim, que são efeitos de luz; mas queimar, abrasar, consumir, que são efeitos de fogo, isso não, que já lhos tirou Maria. Já Maria despontou os raios ao Sol; por isso luzem, e não ferem; ardem, e não queimam; resplandecem, e não abrasam. Parece-vos maravilha, que assim abrandasse aquela benigna Luz os rigores do Sol? Parece-vos grande maravilha que assim lhe apagasse o fogoso e abrasado, e lhe deixasse só o resplandecente e luminoso? Pois ainda fez mais.
Não só abrandou, ou apagou no Sol os rigores do do fogo, senão também os rigores da luz. O Sol não é só rigoroso, e terrível no fogo com que abrasa, senão também na luz com que alumia. Em aparecendo no Oriente os primeiros raios do Sol, como se foram archeiros da guarda do grande Rei dos Planetas, vereis como vão diante fazendo praça, e como em um momento alimpam o campo do Céu, sem guardar respeito, nem perdoar a cousa luzente. O vulgo de Estrelas que andavam como espalhadas na confiança da noite, as pequeninas somem-se, as maiores retiram-se, todas fogem, todas se escondem, sem haver nenhuma (por maior luzeiro que seja) que se atreva a parar, nem a aparecer diante do Sol descoberto. Vedes esta majestade severa? Vedes este rigor da luz do Sol, com que nada lhe pára, com que tudo escurece em sua presença? Ora deixai-o vir ao signo de Virgem, e vereis como essa mesma luz fica benigna e tratável.
António Vieira, Sermão do Nascimento da Virgem Maria

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A loja de Deus

Nuno Sampaio, olhares.com


Entrei e vi um anjo no balcão. Maravilhado, eu lhe disse:
"Santo Anjo do Senhor, o que vendes?
Ele me respondeu: "Todos os dons de Deus".
Perguntei: "Custa muito?"
Respondeu-me: "Não, tudo é de graça".
Contemplei a loja e vi jarros com compaixão, vidros com fé,
Pacotes com esperança, caixinhas com salvação,
Potes com sabedoria...
Tomei coragem e pedi:
"Por favor, Santo Anjo, quero muito amor,
Todo o perdão, um vidro de fé, bastante felicidade
E salvação eterna para mim e minha família também.
Então o Anjo do Senhor preparou um pequeno embrulho,
Tão pequeno que cabia na palma da minha mão.
Maravilhado mais uma vez, eu lhe disse:
"É possível tudo estar aqui?"
O Anjo me respondeu sorrindo:
"Meu querido irmão, na Loja de Deus não vendemos frutos.
Apenas sementes".

SEMENTE
“Sempre me perguntei: por que Jesus gostava tanto de usar o exemplo da semente para oferecer os seus ensinamentos? É o semeador que sai para semear. É o grão de mostarda que, embora muito pequeno, se transformará numa árvore. É o grão de trigo que, caído na terra, deve morrer para produzir frutos.Até a fé, suficiente para arrancar uma amoreira e plantá-la no mar, é comparada, novamente, à pequena semente de mostarda. O que tem de tão extraordinário em uma semente? Esconde um segredo: o segredo da vida. Não é algo que vem pronto, nas suas dimensões e nas suas cores. Não é um produto acabado que se pode, ou não, comprar.Uma semente é um projecto. Um projecto escondido. Precisa que alguém acredite, confie, tome cuidado, gaste tempo e carinho. Pode dar muito fruto, como pode não dar em nada. Mas a semente, plantada em terra boa, com a chuva no tempo certo, não vai falhar.Tenho a impressão de que, hoje, estejamos correndo o perigo de esquecer o segredo da semente. Temos pressa demais.Por que cozinhar, se já vendem comida pronta? Por que esperar se, correndo, chego antes? Por que perder tempo para pensar, se já me oferecem a resposta antes mesmo que eu formule a pergunta? É verdade que algumas coisas facilitam o nosso dia-a-dia, porém muitas vezes perdemos a poesia do crescimento.Custa e traz angústia a lenta aprendizagem. Todos precisamos de tempo para aprender. Se a semente desenvolve e ganha em solidez, nós, os humanos, ganhamos em segurança, auto-estima, carácter. É verdadeiramente nosso, somente aquilo que aprendemos aos poucos, caindo e levantando, errando e acertando, como quando começamos a andar e a falar.A pressa nunca foi boa conselheira e nem boa professora. Hoje, por culpa de nós adultos e da sociedade stressada que criamos, as crianças querem queimar etapas. Vestem-se como jovens e acham que podem agir como adultos. Poderiam curtir mais a infância. No entanto, nós, adultos, não deixamos. Nós temos pressa.O segredo da semente está, portanto, no facto de ser um projecto que está sendo construído. Aos poucos, vai se formando, tomando corpo, está sempre em movimento. Um pequeno passo de cada vez, com mais uma meta à sua frente para alcançar.Também projectos não faltam na nossa sociedade. Mas, às vezes, chegam grandes demais. Começam de cima para baixo. Querem que as pessoas corram, quando mal sabem engatinhar.Conheço um homem que vendia espetinhos na rua. Demorou anos, e hoje é dono de bom um restaurante. Outro fez um grande empréstimo no banco e abriu logo uma pizzaria. Rapidamente teve que vender até a casa para pagar a dívida. Quis logo a árvore, em vez de plantar uma semente e acreditar que ia crescer. Não deu certo.Por isso Jesus ensinou que o seu Reino é como uma semente. É bom, é necessário, que comece pequeno. Porque começa lá, no fundo do coração de cada um. Começa com um bom sentimento, depois com uma certeza. A certeza se transforma em decisão; e a decisão muda a nossa vida. A decisão é um exemplo de coragem e o exemplo é sempre contagiante.Assim, o Reino cresce e ninguém consegue contê-lo. Não vem para dominar, mas para libertar. Não cresce para sufocar. Espalha os seus ramos para acolher a todos com a sua sombra, como uma árvore frondosa, cheia de folhas, flores e frutos, tudo no tempo certo. Quem teria pensado? A semente era tão pequena! A fé não precisa ser grande, basta que seja verdadeira.”





D. Pedro José Conti Bispo de Macapá
Fonte: CNBB

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O axioma de Amos Oz!

“Faz a paz e não o amor”. É este o axioma proposto pelo conhecido escritor Amos Oz, no seu livro Contra o Fanatismo1, para que se estabeleça uma verdadeira comunidade humana. Esta aparente inofensiva expressão coloca-nos perante dois conceitos chave relativos ao comportamento do ser humano na sua relacionalidade com a alteridade.
Esta posição entendida no seu todo coloca uma série de interrogações que cada um poderá responder interiormente. Será possível a paz sem a lógica do amor? Não será ela uma atitude convertida do amor? Como estar em paz sem amar? Será a paz algo abstracto e conceptual ou será feita com e para pessoas que em si mesmas já são manifestação do amor? Ao ceder aos nossos clichés sociais habituámo-nos a compartimentar tudo em sistemas estanques e isolados que não raramente resultaram e resultam em sistemas totalitários e totalizantes. Será que basta haver paz mesmo quando ser humano entre si não se ame? O conceito de amor é bastante amplo e complexo porque implica sempre um jogo de relações. Amar não é estar subvertido ao outro. O amor diz a relação com a alteridade e permite que o outro se torne transcendente a todos particularismos manipuladores. Amar é estar já em situação de paz. Sem amor, como é que se pode realizar a paz sem sentir ódio pelo outro (uma vez que não se ama)? Pior de tudo é a indiferença, porque uma relação feita sem olhares e sem amor, ainda que incómoda, perturbante, leva ao caos, a uma vida excessivamente melodramática.
Perante isto, não seria melhor dizer ‘faz a paz no amor’, ainda que se tenha de viver muitas vezes sob o signo do paradoxo? Aliás, não será o paradoxo aquilo que dá sentido à nossa existência? Amar significa estar em paz, em diálogo, em relação edificante, e paz significa promover o amor em situações humanamente incompreensíveis. Mas de que paz se trata? Meramente humana? Se sim, ela é tão débil quanto é a força e a vontade humanas. O amor é, por isso, aquela possibilidade que nos faz transcender a nós mesmos, que está para além das nossas vontades e desejos, é possibilidade de afrontar e confrontar dignamente determinados contextos (é o que algumas vezes nos faz fugir indignamente da terra para subir à dignidade do alto dos céus!). A partir da lógica do amor lutamos pelo outro contra todas as formas de injustiça e rejeição (de uma pátria, de uma terra, de uma dignidade, de um nome, de uma identidade…), sacrificamo-nos pelo outro, morremos pelo outro… e será isto um “amor altruisticamente fanático”? O que fazemos pelo amor do outro fazemo-lo também por amor a nós mesmos porque acreditamos que isso é verdade e possível. O amor é um pleroma concreto onde a diferença de cada um e de todos é respeitada numa diferença substancial e pluricultural.
A paz não se faz apenas com ausência de guerra; faz-se por aquilo que se pode ir construindo, pelo que se pode “salvar salvando”, e isso dá-se na sublimidade do amor como acto de entrega profunda acima de todos os interesses e utilitarismos individuais. Um amor que nos interpela face ao rosto do humano comum, que por vezes é sofrimento e que exige sacrifícios, não por cada homem concebido singularmente, mas pelo amor universal que contém cada ser humano na sua particularidade. Assim, o amor torna-se uma interessante luta pela paz. Se esta não for consequência do amor, simplesmente se converte numa guerra silenciosa, de bastidores, de aniquiladores cirúrgicos, de franco-atiradores, pronta a rebentar ao mínimo impasse dissonante (vejamos a barbárie que assistimos nos confrontos actuais no panorama mundial). Uma paz sem os fundamentos do coração seria gélida, fria e demasiadamente débil, e até desumaizante, porque consagrada a todo o custo, em virtude da morte física do outro.
Com esta proposta de Amos Oz seria o mesmo que dizer: a partir da agora haverá paz para sempre, mas teremos de deixar de nos amar, o importante é a boa vizinhança, ou nas suas próprias palavras “se vier a haver o Estado de Israel e o Estado da Palestina a viverem lado a lado como vizinhos honestos, sem opressão, sem exploração, sem derramamento de sangue, sem terror, sem violência, ficarei satisfeito mesmo que não prevaleça o amor”. O que é que aconteceria caso isto se sucedesse…? Uma revolução silenciosa em que os fracos (universalmente considerados) jamais teriam voz. Seriam aniquilados, não teriam lugar neste mundo… Padeceriam por serem fracos! Este estar em paz não faria sentido, porque ao mínimo abalo ruiria, e então nesse caso seria melhor uma “guerra declarada”, de rostos visíveis. Assim, pelo menos, saberíamos quem era o atirador, daríamos conta que existe mais alguém para além de nós mesmos e que na vida há muita coisa pela qual vale a pena lutar.
O desejo da paz é já um desejo impulsionado pelo amor que une o género humano ao resto da criação. A paz só surge quanto brota do amor profundo que a todos nos une. Mas de que amor falámos? Egoísta, “fanático altruísta”? Certamente que não. É um amor total que com-partilha amores diferentes e é capaz de unir o género humano à grande causa da vida que, ao fim e ao cabo, é a sua própria causa.
Sem amor, ilusão das ilusões, a paz é ilusão!
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1 Amos Oz, Contra o Fanatismo, Asa, 2007,44.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Literatura e Sagrado (2)


1. Desde tempos imemoriais que a literatura e o sagrado surgem intimamente associados. O sagrado e a transcendência transformaram-se mesmo em temas centrais das artes e em particular da literatura como arte da palavra. Entre múltiplas aproximações e resistências, literatura e sagrado são constantes intemporais, que atravessam toda a cultura humana através dos séculos, sendo incompreensíveis uma sem a outra.

Toma-se aqui sagrado na ampla acepção das investigações transdisciplinares de Mircea Eliade e Rudolf Otto, na conhecida oposição sagrado/profano. Neste sentido, a presença sagrado para o homem não é automaticamente identificável com o “religioso”; e ainda menos com a realidade histórica da religião ou religiões institucionalizadas.

2. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer um dado histórico fundamental, em que radica a mais antiga relação de proximidade entre literatura e sagrado: nas diversas e influentes civilizações, os mais remotos textos literários conhecidos, como o “Poema da Criação” babilónica, são textos eminentemente tocados pelo sagrado.

Na sua origem, aliás, a poesia era indissociável do sagrado. Ao longo dos tempos, a palavra literária sempre sentiu ou expressou o apelo íntimo por algo que transcende o próprio homem: “L’homme dépasse infiniment l’homme” (Pascal). Consciente da sua efemeridade, o homem sente em cada tempo a existência de algo que o ultrapassa. Acreditar num transcendente é uma forma de buscar um sentido para a existência.

Esta constatação é talvez mais agudamente sentida nas chamadas “religiões do Livro” (judaísmo, cristianismo, islão), religiões reveladas e históricas onde o Livro ocupa um lugar central. O próprio uso literário enforma muitos dos textos (em sucessivas versões e traduções) foi abrindo caminho a técnicas de leitura e níveis de interpretação que tenham em conta “a letra” e “o espírito”.

3. Estamos a comemorar o IV Centenário do Nascimento do Padre António Vieira (1608-2008), figura absolutamente singular da história, da cultura e da literatura portuguesas. No próximo dia 7 de Junho, sábado, a Faculdade de Filosofia dedica um Colóquio evocativo a esta figura multifacetada de jesuíta e missionário, de diplomata e de político, de visionário e de utópico, de orador e de escritor genial.

Ora, vários escritores contemporâneos – como Fernando Luso Soares, José Saramago, Luísa Costa Gomes, Seomara da Veiga Ferreira, Maria João Martins, Inês Pedrosa, Miguel Real, bem como os brasileiros Ana Miranda ou Moacyr Scliar, entre outros, evocam a figura de Vieira nas suas obras actuais (teatro, romance, poesia), citando abundantemente os seus escritos, realçando a actualidade deste assombroso homem da palavra e da acção. A título de exemplo, num destes romances pode ler-se: “A espiritualidade e a poesia andam de mãos dadas”.

A título de exemplo, fiquemos com uma passagem do romance histórico de Seomara da Veiga Ferreira, em António Vieira, o Fogo e a Rosa [2002], onde a escritora coloca o idoso Vieira a evocar o seu passado diante de Bento de Castro, médico da rainha Cristina da Suécia, nestes termos reflexivos:

A arte é um dom de Deus e o artista, o seu mediador, aquele que cumpre os Seus desígnios pela Sua vontade e para o serviço dos homens. O Criador tudo concebeu, mas deu-nos a liberdade de escolha, essa santa liberdade pela qual tudo merece ser sacrificado. Até a vida. Eu já falei algumas vezes da arte, da arte que pode transformar o informe num ser vivo, criatura de Deus, na arte que molda a pedra bruta para lhe criar o sopro do espírito. Disse-o e escrevi-o no Sermão em que falei da forma e da matéria e dei como exemplo o estatuário...

Andava na minha peregrinação, percorrendo os inóspitos caminhos, suado, sujo, às vezes a veste rota, as botinas esfrangalhadas, topando com desconhecidos animais de um bestiário fabuloso que a Europa nunca viu. Depois, a substituição da liberdade dos trilhos da selva pela meditativa paz dos cubículos, onde cada um se refugia no silêncio da sua alma, só tocado pela palavra também silenciosa, imerso no silêncio profundo de diamante e fogo, de Deus, que reveste as nuas paredes de frases e que faz folhear os livros e embeber de paz a alma dos ascetas. E todo o pensador é um asceta porque é na solidão, no confronto comigo próprio, mas tocado sempre pelo dedo da divindade, que se enforma o seu pensamento, se afeiçoa o seu espírito à Ideia, se eleva a sua mente ao Conhecimento, à Arte, à Perfeição, à nossa peculiar perfeição que, como humanos, apesar das nossas limitações, podemos alcançar e usufruir.

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Cândido Oliveira Martins

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Olhemos um pouco à nossa volta

Jorge Alfar, olhares.com

1. Atravessamos hoje um mundo complexo, em que é bem notório o espectáculo triste das desigualdades, discriminação de raça, sexo, idade e condição social. Mas impõe-se-nos igualmente o espectáculo da pobreza, da miséria e da fome, ao ponto de um cão do primeiro mundo ter à disposição dezassete vezes mais bens do que uma criança do terceiro mundo! E também o espectáculo do crescimento em flecha da criminalidade organizada, do narcotráfico, redes de prostituição e de pedofilia, comércio ilegal de armas, tráfico de órgãos, etc. E não podemos ignorar o espectáculo do regresso de velhas epidemias e pandemias, como a tuberculose, a varíola e outras doenças que há muito tempo estavam erradicadas. E, como se não bastasse, vemos ainda surgir novas pandemias, como a Sida (AIDS) e a chamada «síndrome respiratória aguda» (SRA), vulgo «pneumonia atípica».

2. Acresce ainda o espectáculo do desrespeito pela natureza, com o aumento incontrolável da poluição, a proliferação de lixeiras de produtos tóxicos, o buraco do ozono sempre a aumentar, o sobreaquecimento do planeta, graves atentados contra os oceanos.

3. Não podemos também deixar de assistir à transformação da natureza do capitalismo, que já quase nada tem a ver com a produção de riqueza através do desenvolvimento da indústria, da agricultura ou do comércio. As grandes fortunas fazem-se hoje, não com base no trabalho e na produção de riqueza, mas com base na especulação bolsista, através da transacção de acções de Bolsa em Bolsa, de Londres para Nova Iorque, de Tóquio para S. Francisco… E fazem-se assim, num só dia, fortunas maiores do que as que qualquer grande industrial pode fazer durante toda uma vida de trabalho honesto numa empresa com milhares de trabalhadores.

4. Neste mundo complexo em que vivemos, também não podemos ainda ignorar que o dinheiro que resulta do narcotráfico, do tráfico da prostituição e da pedofilia, do tráfico de armas e de órgãos, atinge hoje valores da ordem dos 40 % do fluxo de capitais que circulam pelo mundo. Ao ponto de já ninguém conseguir saber bem o que é dinheiro sujo e dinheiro limpo.

5. Em suma, atravessamos hoje um mundo em saldo. Sem instituições credíveis, quer a nível mundial, nacional ou local. Veja-se a própria ONU, a UNESCO, a NATO, mas também a família, a escola, a política, a polícia, os tribunais, a saúde. Sem instituições e sem princípios ou valores. De facto, vivemos num mundo esvaziado de valores, em que dá a impressão que vale tudo e que tudo vale o mesmo, tudo é equivalente. A confusão é total. O que é normal? Ser corrupto ou ser honesto? Ser fiel aos compromissos assumidos, sobretudo na família, ou ter isso como comportamento antiquado? Andar metido na droga, ou fugir dela? Meter cunhas para conseguir facilmente certos objectivos, ou lutar por eles com esforço e determinação? Passar a noite à entrada do posto de saúde para poder ser atendido, ou comparecer à hora de abertura? Que mundo é este, senhores?! Não tarda nada, começaremos a andar de gatas ou de pernas para o ar. E acharemos isso normalíssimo.

6. Num mundo como este, importa que cultivemos a vontade e a inteligência. E que tenhamos a peito a dignidade da pessoa humana, a justiça e a prática do bem, que implicam a aceitação do outro e o respeito pelas suas diferenças, mas também a compaixão, o perdão, a tolerância, a generosidade. Tudo isto modelado ainda pelo mistério que envolve a nossa vida e a nossa morte.

António Couto