segunda-feira, 28 de julho de 2008

Pausa

Durante o Verão, o jornal La Croix oferece, todos os dias, aos leitores, uma selecção de canções francesas. Algumas podem ser escutadas no site deste diário católico. As sugestões incluem músicas antigas e recentes de autores pouco ou muito conhecidos. Na lista, encontram-se, por exemplo, Le petit âne gris, de Hugues Aufray; La valse à mille temps, de Jacques Brel; Le jour se lève, de Grand Corps Malade; Le Métèque, de Georges Moustaki. Pause, de Anne Sylvestre, é uma das propostas que vale a pena ouvir.


PAUSE

Ça serait une pause
Entre deux sonneries
Quand le bruit se repose
Un soupçon d'accalmie
Ça serait un silence
Au milieu du fracas
La minute d'absence
Où on ne répond pas

Un petit temps d'arrêt
Siou plait
Je crois qu'il me faudrait
Juste un peu de secret
Juste un peu de secret

{Refrain:}
Faire un palier
Rien qu'un petit palier
Grappiller cet instant
Pour mettre innocemment
Pour mettre impunément
Un peu de flou dans mon emploi du temps

Ça serait un mensonge
Entre deux vérités
Une question qui plonge
Avant d'être posée
Ça serait une fable
Au milieu des discours
Une fuite improbable
Un ultime recours

Même si ça dépayse
Oh please
Il faudrait que je dise
Juste quelques bêtises
Juste quelques bêtises

{au Refrain}

Ça serait un scaphandre
Au milieu des requins
Quand la chair est si tendre
Et l'habit si mesquin
Ça serait une esquive
A ce monde voyeur
La défense passive
Armure du rêveur

Sans beaucoup d'exigence
Je pense
Qu'il me faudra d'urgence
Juste un peu de silence
Juste un peu de silence

{au Refrain}


Eduardo Jorge Madureira Lopes

terça-feira, 15 de julho de 2008

Canto litúrgico




Não sabemos como há-de ser feita nem quem deverá tomar a iniciativa de fazê-la, mas é urgente uma revisão do canto litúrgico. É necessário reflectir sobre o que de bom e de menos bom se foi fazendo, para melhorarmos o que houver a melhorar.
Antes de mais, convém deixar claro que podemos estar profundamente unidos com Deus enquanto cantamos um cântico sem qualidade. Deus não é propriamente um crítico musical ou literário. Ele olha, antes de mais, para o amor com que fazemos as coisas. Sabemos, porém, que um belo canto ajuda o homem a elevar-se para Deus. Pelo contrário, a má qualidade, com muita frequência, não só distrai as pessoas da oração como até as pode deixar à beira de um ataque de nervos. Se Deus é beleza, as nossas linguagens da beleza, que são as linguagens artísticas, serão até as mais adequadas para falarmos com Ele. Sempre assim o entenderam os homens de todos os tempos e de todas as culturas. Por isso nos devemos esforçar por cantar belas melodias, belos textos, e cantá-los o melhor que soubermos.
1. Temos encontrado muita diversidade de estilos nas celebrações: música country, música pop, música rock, gospells, bossa nova, samba, música de westerns, com banjo em fundo e harmónica de boca fazendo solos, o que nos faz lembrar cow-boys afastando-se a cavalo nas imensas pradarias americanas. Já encontrámos interpretações muito próximas do heavy metal, assim como coisas que podiam ser cantadas pelo Marco Paulo ou pelo Tony Carreira. Já ouvimos meninas a cantar ao estilo da Ágata e dos outros cantores de música pimba. Já ouvimos cantar em italiano. Ainda não encontrámos nenhum exemplo de rap, mas não tardará muito. Frequentes vezes, demasiadas vezes, o estilo dos cânticos e da música que os acompanha leva-nos para um ambiente de discoteca ou de festa de cerveja. Não pode ser.
A justificação que vulgarmente se dá é a de que tal género de música atrai mais os jovens. Poderá ser verdade. No entanto, convém recordar que os jovens não são os únicos que participam na liturgia. Participam pessoas de todas as idades, crianças, pessoas menos jovens, pessoas de idade mais avançada. E muitas das coisas que se cantam são inquestionavelmente inadequadas para uma assembleia numerosa e heterogénea. Não me refiro apenas às melodias, frequentemente afectadas, mas também ao andamento, por exemplo. Os cânticos litúrgicos não podem ter um andamento demasiado rápido nem sincopado. São inadequados para uma assembleia onde podem estar centenas de pessoas e que, por natureza, é mais lenta a cantar. Pode haver momentos em que o coro ou o solista a represente, sem dúvida. Acontece, porém, demasiadas vezes, que a assembleia permanece muda durante toda a celebração.
2. Parece-nos inconveniente o lançamento constante de cânticos novos. É óptimo que haja variedade. No entanto, o excesso faz com que as pessoas tenham dificuldade em fixar tudo o que de novo vai aparecendo.
3. Se vamos, por acaso, a outra igreja que não a da nossa paróquia; se participarmos na eucaristia numa outra cidade, corremos o risco de ficar calados porque os cânticos são quase sempre diferentes dos que sabemos. Devia haver um reportório que toda a gente conhecesse. Não sabemos como se há-de resolver a situação, mas, ao fim de todos estes anos, já deve haver um numeroso grupo de melodias, de reconhecida qualidade, que pudesse ser adoptado por toda a igreja portuguesa. E, já agora, nele deveriam figurar cânticos mais antigos, alguns belíssimos, que deixaram de se ouvir. Foi uma pena.
4. Nenhum cântico deveria ser cantado sem a aprovação de uma comissão que, aliás, julgo existir, e sob cuja responsabilidade se publica uma revista de música sacra. A justificação é simples: teríamos a garantia de um mínimo de qualidade.
5. Nenhum dos textos litúrgicos fixos– não sei se é assim que se diz - que são cantados durante a Eucaristia deveria poder ser substituído por outros. Por exemplo: não se deveria substituir nunca o texto do “Cordeiro de Deus” ou do “Santo”. A razão é simples: são de uma beleza e de uma profundidade espiritual de tal maneira grandes, que dificilmente poderão encontar-se outros equivalentes.
7. Deveriam ser banidos da liturgia cantos em tom menor. Bem sabemos que há momentos - os cânticos penitenciais, por exemplo – em que o tom menor parece o mais adequado. Contudo, mesmo nesses casos, deveriam evitar-se melodias que mais parecem convidar-nos à depressão ou ao desespero suicida do que à sentida penitência. A liturgia é alegria íntima e serena, não tristeza melancólica.
8. Deveriam escolher-se cânticos que não façam subir a voz a notas muito agudas. Brincando um pouco, alguns nem o Pavarotti seria capaz de cantar. É problema nem sempre de fácil resolução porque a maior parte dos acompanhantes no órgão não são capazes de fazer a transposição para um tom mais baixo. Havia em tempos harmónios em que era possível movimentar o teclado para a esquerda ou para direita, precisamente para se poder descer ou subir o tom. Não sei se ainda existem.
9. E já que falámos do acompanhamento dos cânticos no órgão, gostaríamos de deixar aqui algumas observações:
- Por favor, não se utilize o registo “Trémulo”. Não sabemos por que razão, em quase todas as igrejas, põem o órgão a tremelicar, como se estivesse com problemas de corrente eléctrica ou atacado de delirium tremens. Revela um péssimo gosto. Ficamos imediatamente com a sensação de estar num salão de dança.
- Parece mil vezes preferível cantar sem acompanhamento do que ouvir um organista impreparado. Ora põe o órgão num volume que abafa a voz dos solistas e da assembleia, o que ainda é o menos, ora não acerta nas notas nem tem a mínima noção de harmonia nem de tonalidade. O canto está construído num tom e ele acompanha noutro ou até em nenhum. Tudo isto se faz com a maior das boas intenções, certamente, mas não deve haver maneira mais eficaz de afastar pessoas da missa do que a inépcia de alguns acompanhantes.
- Quem diz órgão diz outros instrumentos. Não nos custa nada admitir que se utilizem na liturgia outros instrumentos, embora alguns nos pareçam completamente inadequados. No entanto, o mínimo que se exige é que sejam bem tocados e não abafem a voz da assembleia. A voz humana é o mais importante de todos os instrumentos. Quando ela intervém, todos os outros devem baixar o volume.
- Dispensaríamos perfeitamente a bateria em cerimónias litúrgicas. Não acrescenta absolutamente nada nem ao canto nem à música. Pelo contrário, só atrapalha, impondo uma rigidez de compasso e um ruído de fundo incompatíveis quer com a maleabilidade expressiva dos cânticos, quer com a natureza de uma assembleia numerosa e heterogénea que tende a cantar lentamente. Além disso, é perfeitamente erróneo pensar que um cântico tem mais ritmo só porque é acompanhado por uma bateria.
- Já ouvimos, em algumas cerimónias, batuques discretamente percutidos, aliás. Não custa nada admitir que se utilizem, mas parece-nos que ficariam muito melhor numa celebração litúrgica africana, por exemplo.

São estas as observações que hoje temos para apresentar. Oxalá possam contribuir para a solução de um problema que necessita de solução urgente.


Silva Pereira

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Literatura e Sagrado (4)


1. Vergílio Ferreira defendeu em diversos escritos que a Arte ocupa em grande medida, contemporaneamente, o vazio de uma sociedade pós-secular e agonicamente racional. Numa cultura que abandonou Deus e os valores cristãos, mas que continua a ser confrontada com as limitações e angústias da condição humana, a Arte e a sua funda expressão simbólica preenchem o lugar do sagrado.

Tal como outras artes, a literatura actual dá voz à plangente interrogação existencialista do homem, desamparado na sua incomunicabilidade e solidão, bem como na irredutibilidade de ser confrontado perante a inexorabilidade da morte. Através da expressão artística, reencontram-se o sagrado e o estético: o ser humano eleva-se de forma transcendente; e recupera as marcas perdidas do homem religioso. A noite do mundo é iluminada pelo brilho inquietante e eterno da palavra inspirada.

2. A título de breve ilustração dos pensamentos anteriores neste blog – sobre as manifestações de sacralidade contidas na expressão literária – e sem desnecessários comentários críticos, leiam-se dois poemas de Ana Luísa Amaral*, retirados do seu mais recente livro de poesia:


VISITAÇÃO

Um anjo aqui desceu (terá descido?),
dizendo que o silêncio humano outrora
fazia agora parte do divino,
e o que o templo maior, rasgado o pano,
tinha passado a ser culto de nós.

Do éter rarefeito veio a voz,
queixando-se das sombras da cidade:
que o mundo era só verde, e que o azul
só o azul do céu, com letra humana
gravada numa mesa de madeira.

Um anjo desceu (há provas mais)
e aqui ficou, exausto das canseiras
de ser mediador entre dois mundos,
de ter em dois segundos que voar
e mergulhar depois em três segundos.

E aqui ficado, o anjo adormeceu,
sonhando com estações e com instantes,
aos poucos esquecendo tempos dantes
e a água densa do eterno mar.

E quando se rasgou o tempo outro
e ele acordou, refeito e bocejante,
viu que era bom ter nome, e sede, e fome,
cinco dedos nas mãos – algum olhar.



OS TEARES DA MEMÓRIA:
MNEMÓSINE E SUAS FILHAS

Desejava esquecer, mas elas não me deixam:
chegam com seu tear e sua mão cruel,

e sobre mim ensaiam um cansaço
que há séculos lhes tem sido alimento

Têm dentes ferozes e poderosas unhas
com que tocam a flauta e festejam o fuso,

e uns olhos muitos belos, com íris poderosas,
de sobressair ondas, de desesperar ventos.

E as fontes enganosas onde encontram guarida
tingem-se com as cores da sombria memória

Não me deixam esquecer: só me trazem
a história dentro da própria história,

desejo incontrolável de contra mim ficar,
a horas muito breves, de desespero fundo,

a falar nem de nada, desejando por dentro
deixar de me sentir, ou então sentir tudo.

Não me deixam esquecer, e o seu tear agudo:
herança dessa mãe que sobre elas pousou,

que as fadou frias, belas, e ao gerá-las assim,
lançou no meu olhar a memória do mundo.

Pertencem-lhes as fontes, tão falsas e funestas
como funestos são os seus gritos sem som,

delas fazem brotar as águas mais avessas
com algas que me entrançam palavras e cabelos.

E eu que queria esquecer, viver num outro mar,
atravessar a nado os pinheiros mais altos,

sou condenada a dar-lhes o alimento azul
de que elas se alimentam: um cansaço de séculos.

Sou condenada a ver para além deste tempo,
através dos seus olhos de poderosa luz,

e as flautas que elas tocam e o fuso que festejam
não são flautas só fusos, mas lanças e muralhas.

Com elas me recordo, por elas me relembro
e invade-me a lembrança, exasperada, impura.

Desejava esquecer, mas elas não me deixam,
e a memória do mundo: uma pesada herança,

legado que não devo deixar a mais ninguém,
que não posso gastar conforme me apetece,

porque elas o governam em mil sabedoria:
obrigam-me a usá-lo contrário ao meu desejo,

e se o desejo às vezes, desviam-no de mim.
É sua mãe cruel que as governa e a mim.

E todas enredadas nesta teia de espelhos
sofremos igual sorte, temos o mesmo fim,
partilhamos da mesma vontade de esquecer.

Mas não o deixa ela, nem o permite a morte –

* Breve nota informativa:
Ana Luísa Amaral (n. 1956, Lisboa) é autora de nove livros de poesia e de dois livros infantis. É também professora da Faculdade de Letras do Porto. Representada em inúmeras antologias portuguesas e estrangeiras, a sua poesia encontra-se traduzida para várias línguas. Em 2007, obteve o Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d’Escritas. Também foi distinguida em Itália, com o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi.

Em Junho de 2008, a autora foi galardoada com o Grande Prémio de Poesia APE/CTT, distinguindo por unanimidade o melhor livro publicado no ano de 2007: Entre Dois Rios e Outras Noites (Porto, Campo das Letras). Foram membros do júri: Ana Paula Arnaut, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Nuno Júdice, professor da Universidade Nova de Lisboa, e também ele escritor; e Cândido Oliveira Martins, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (UCP).

Na acta da reunião, o júri deixou resumida a justificação da sua escolha nestes termos: “De entre um conjunto de obras poéticas de qualidade indiscutível a concurso, a escolha do júri recaiu por unanimidade sobre o livro Entre Dois Rios e Outras Noites, de Ana Luísa Amaral. Destaca-se pela coerência temática e pela capacidade de encontrar uma forma precisa para tratar o mundo pessoal e a realidade contemporânea sem abdicar da justeza de expressão e da qualidade poética que caracterizam uma obra que se tem vindo a afirmar com uma das mais significativas da nossa actual poesia”.
| Cândido Oliveira Martins

terça-feira, 1 de julho de 2008

António Vieira (VI)

Manhã com Aves



MADRUGAR

Torpe coisa é, e verdadeiramente vergonhosa para um cristão, se o primeiro raio do sol o achar na cama, e não prostrado aos pés de Cristo, seu criador e redentor. As primeiras criaturas que com suas vozes nos injuriam e envergonham, entre aquelas que o mesmo Senhor criou, mas não remiu, são as aves. Que avezinha há, ou tão pintada como o pintassilgo, ou tão mal vestida como o rouxinol, que não rompa o silêncio da noite, com dar, ou cantar, as graças a seu criador, festejando a boa vinda da primeira luz, ou chamando por ela? As flores que anoiteceram secas e murchas, porque carecem de vozes, posto que lhe não falte melodia para louvar a quem as fez tão formosas, ao descante[1] mudo dos cravos e das violas, como são as Madalenas do prado, também declaram os seus afectos com lágrimas. As nuvens bordadas de encarnado e ouro, os mares com as ondas crespas em azul e prata, as árvores com as folhas voltadas ao céu, e com a variedade do seu verde natural então mais vivo, as fontes com os passos de garganta mais cheios, e a cadência mais sonora, as ovelhinhas saindo do aprisco, e os outros gados mansos à liberdade do campo, os lobos e as feras silvestres recolhendo-se aos bosques, e as serpentes metendo-se nas suas covas, todos, ou temendo a luz ou alegrando-se com sua vista, como à primeira obra de Deus, lhe tributam naquela hora os primeiros aplausos (...).
Desperta, ó homem indigno, aos brados de todas as criaturas; abre os olhos e vê a que madrugas e a que não madrugas. Deixadas as madrugadas mecânicas, como as do oficial vigilante que madruga para bater e malhar o ferro, obrigando também a madrugar o ar e o fogo, os que professam vida e acções mais nobres para que madrugam? Madruga o Matemático, para observar as estrelas, antes que lhas esconda o sol; madruga o soldado para vigiar o seu quarto[2], ou na muralha ou na campanha, ou no bordo da nau; madruga o estudante sobre o livro que tantas madrugadas custou ao seu autor quantas são as letras, muitas vezes riscadas, de que está composto; madruga o requerente, madruga o caminhante, madruga cercado de galgos o caçador (...). Quanto corta pelo sono o adúltero? Quanto corta pelo sono o vingativo? Quanto corta pelo sono o ladrão? Quanto corta pelo sono o taful[3]? Quanto corta pelo sono o invejoso, o ambicioso e, mais vigilante que todos, o avarento e cobiçoso? Os Judeus adoraram o bezerro de ouro, os cristãos adoram o ouro ainda que não pese tanto como o bezerro. Do ouro tomou nome a aurora, e esta é a despertadora que os não deixa dormir e faz vigiar, maquinando subtilezas, traças, enganos, traições, e sacrificando ao torpe, vergonhoso e brutal ídolo do interesse, o descanso, a razão, a vida, a honra, a consciência, a alma.
António Vieira, Sermão da Ressurreição de Cristo Senhor Nosso.

[1] Canto ao desafio ou em dueto.
[2] Período de tempo em que uma sentinela está de vigia. Já os Romanos dividiam as vigias da noite em quatro quartos, cada um com três horas.
[3] Viciado no jogo.