domingo, 27 de setembro de 2009

PORTUGAL



Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa


SP

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Evolução e Fé Religiosa


Qual foi o impacto inicial da teoria da evolução na religião?

Para se compreender o impacto da teoria da evolução na religião, mais concretamente no cristianismo, é preciso ter em conta que no tempo de Darwin os três primeiros capítulos do Livro do Génesis, onde se narra a criação por Deus, em seis dias, do universo, da Terra, de Adão e Eva e de todas as espécies vivas eram interpretados literalmente. A ideia de que a humanidade actual é o resultado de uma lenta evolução dos mamíferos em geral e dos primatas em particular parecia falsificar o relato bíblico. Hoje, porém, o cristianismo interpreta aqueles capítulos do Génesis em sentido sapiencial ou poético e não científico, o que permite aos cristãos aceitar a teoria da evolução. Há porém alguns cristãos, chamados criacionistas, que não aceitam a teoria da evolução e continuam a interpretar o Livro do Génesis literalmente.


Pode-se defender a teoria da evolução e ao mesmo tempo acreditar na existência de Deus?

NÃO, dizem alguns cientistas não crentes. Para Richard Dawkins, por exemplo, a selecção natural é a única solução para o problema da improbabilidade de certos fenómenos naturais, como a vida. Porquê? Porque a selecção natural é um processo cumulativo de pequenos eventos improváveis, de onde gradualmente se passa dos organismos mais simples, até aos improvavelmente mais complexos, tornando a ideia de um projectista inteligente, Deus, uma ilusão
NÃO, dizem os criacionistas, cristãos fundamentalistas. Embora haja diversas versões do criacionismo, a maior parte dos autores que defendem esta corrente afirmam que a criação de todas as espécies se verificou tal como vem narrado no Livro do Génesis, e que a Terra tem cerca de seis mil anos de existência. Esta posição contradiz os dados científicos, resulta de uma inadequada interpretação da Bíblia e não é aceite pela Igreja Católica nem por muitas das Igrejas Protestantes.
SIM, embora não completamente, afirmam os defensores do desígnio (ou projecto) inteligente. A sua posição é porém muito criticada. Para estes autores, a “complexidade irredutível” em sistemas bioquímicos mostra que não podem ter sido o produto de uma evolução gradual, tal como exige a teoria da evolução de Darwin. Tal desígnio sugere uma realização inteligente por uma entidade igualmente inteligente à qual as religiões chamam Deus. Este desígnio pode observar-se, segundo estes autores, em estruturas biológicas tão complexas, como por exemplo o olho humano, que não poderiam ter surgido por simples selecção natural mas, pelo contrário, têm a sua origem na intervenção de uma entidade inteligente. Esta posição não é aceitável pela Igreja Católica, porque para os católicos Deus é o criador de tudo, não apenas das estruturas biológicas complexas, as quais se podem explicar pelas leis naturais.
SIM, diz o teólogo católico americano John Haught, segundo o qual: «Enquanto [o universo] se adapta a um infinito amor que se dá a si mesmo e promessa de um futuro novo, o cosmos finito submete-se ao que nos parece ser a dramática evolução em direcção a um aumento de complexidade, vida, consciência, liberdade e expansão de beleza. ...A fé num Deus humilde, Deus da promessa e que se dá a Si mesmo, deveria ter-nos preparado para a revolução de Darwin”. O nexo natural, causal e criativo dos eventos é, em si mesmo, a acção criativa de Deus. Os processos de evolução por acaso e selecção natural são inerentemente criativos. Neste quadro, Deus cria ainda, continuamente, "na" e "através" da matéria do mundo, dotada em si mesma de potencialidades evolutivas. Uma imagem desta posição é pensar em Deus como um compositor e a evolução a sua música, caracterizada por uma complexa beleza.
Esta é também a posição oficial da Igreja Católica, manifestada sobretudo pelos Papas João Paulo II e Bento XVI.


(SP)


terça-feira, 15 de setembro de 2009

Religião, Vida Pública e Desenvolvimento

Rafael, S.Paulo pregando em Atenas, 1515


A religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este “estatuto de cidadania” da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso, impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. Por sua vez, a religião precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade.

Bento XVI, A Caridade na Verdade (§56)

[SP]

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Evolucionismo/Criacionismo:diferenças e convergências

Mestre Bertram, Criação dos Animais, 1383

Evolucionismo

Segundo o evolucionismo, todas as espécies (incluindo a humana) provêm umas das outras e, remotamente, de um ou poucos seres vivos iniciais. Evolucionismo opõe-se, assim, ao fixismo, segundo o qual cada espécie foi criada separadamente e mantém sempre as suas características fundamentais.
Há vários tipos de teorias evolucionistas. Charles R. Darwin(1809-1882) defendeu a teoria da selecção natural e da sobrevivência do mais forte na luta pela vida. As formas actuais seriam fruto dessa selecção natural.
O naturalista francês Lamarck (1744-1829) também estabeleceu várias leis da evolução.baseadas sobretudo na adaptabilidade dos seres vivos pelo uso e não uso dos órgãos e na hereditariedade dos caracteres adquiridos.
Com o surgir e desenvolvimento da genética molecular, fizeram-se estudos tendentes a indicar que a acumulação, ao longo do tempo, de mutações ocorridas nos vários seres vivos poderia constituir a causa do surgir de novas espécies. Estabeleciam-se, assim, as chamadas árvores filogenéticas ao longo dos tempos geológicos.
Além das alterações que Darwin foi fazendo à sua teoria, surgiram posteriormente várias correntes neo-darwinistas, e a partir das primeiras décadas do séc. XX, a simbiogénese. Segundo esta teoria, a evolução não se processou em forma de árvore que se vai ramificando lentamente, ao longo do tempo, através de alterações do material genético, mas em forma de rede que se estabelece pela transferência de genes de umas espécies para outras, entre as que vivem no mesmo tempo.

Criacionismo

Este termo pode ter mais que uma leitura. Basicamente refere-se à criação dos seres vivos por Deus. No passado, leu-se o Génesis no sentido literal e, portanto, numa visão fixista. Nesse sentido, o criacionismo era anti-evolucionista. Esta posição antiga, de algum modo regressou recentemente com grande vigor, sobretudo a partir dos E.U.A., simultaneamente com o “intelligent design”.
É demasiado claro, porém, que o Génesis não é um livro histórico, mas etiológico. Por isso, na actual posição da Igreja, o criacionismo evolutivo é o mais seguido.
É possível distinguir, em cada ser, entre a sua essência e aquele dinamismo existencial que causa a sua própria evolução, e identificar este último com a acção criadora de Deus.
Em toda a sua pureza, o conceito metafísico de criação exprime-se pela total e radical dependência de Deus por parte de todo o existente. Segundo o teólogo Karl Rahner, a acção criadora de Deus faz então parte do dinamismo existencial de cada ser, ainda que não da sua essência (o que seria panteísmo).
Nesse sentido, podemos dizer que é esse ser que cria, num processo em que causa aquilo que é mais do que a sua própria essência, e portanto se auto-supera a si próprio. Mas porque esse seu dinamismo existencial é acção de Deus, é Deus quem primariamente cria.
Terá sido o próprio símio que evoluiu para o homem total (corpo e alma), porque a acção trascendental de Deus, que impulsionou esse evoluir, faz parte do dinamismo existencial do próprio animal, ainda que sem se confundir com a sua essência.

Convergência entre ambos

Nesta perspectiva, interpretar o surgir da vida em termos de evolução química da matéria não corresponde, de modo nenhum, a enfraquecer ou eliminar a acção criadora de Deus, mas só a purificá-la do ressaibo miraculoso duma intervenção inesperada por parte da matéria, e a torná-la, em toda a linha das suas consequências, verdadeiramente imanente, enquanto presença existencial criadora.
Para fazer valer a imagem genuína de Deus não é necessário nem acertado mitificar a evolução físico-química com um momento de milagre em que as forças naturais desfalecem e, no meio da sua inacção, surja palpável a acção de Deus. Ele situa-se e radica-se no universo de um modo mais profundo, ainda que talvez menos espectacular. É em Deus que vivemos, nos movemos e existimos, e só quando não objectivamos reflexamente esta imanência, exigimos um deus demiurgo que venha visitar miraculosamente a nossa impotência.
É interessante que, quando Edward O. Wilson intenta dissolver o fenómeno religioso nos seus parâmetros sócio-biológicos, menciona a dado passo o tipo de teologia que temos estado a apontar, a que chama “process theology”, e reconhece que ela torna ciência e religião intrinsecamente compatíveis. Mas acrescenta que isto nada tem a ver com a verdadeira religião das danças aborígenes ou com o Concílio de Trento[1].
É evidente que esta teologia tem pouco a ver com crenças aborígenes, nem poderia ser expressa no contexto cultural do Concílio de Trento. Mas pertence hoje a uma teologia altamente respeitada nas Igrejas Cristãs, e que parece corresponder às perspectivas dos Papas. De facto, João Paulo II, numa mensagem em que estimula os teólogos a assimilar as modernas teorias científicas para com elas nos fornecerem (como Tomás de Aquino) novas expressões da doutrina teológica, diz exemplificando: “A perspectiva evolucionista não poderá projectar alguma luz sobre a antropologia teológica, o significado da pessoa humana como imagem de Deus, o problema da Cristologia e até mesmo sobre a evolução doutrinal?”[2]

P. Luís Archer
Prémio Nacional de Bioética 2008.
[SP]


[1] Edward O. Wilson, On Human Nature, Harvard University Press, Cambridge, Mass., U.S.A., 1987, pp.171-172.
[2] João Paulo II, Mensagem ao Director do Observatório Astronómico do Vaticano, 1 de Junho de 1988.

domingo, 6 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO:FORMAÇÃO COMPLETA DA PESSOA




Uma solidariedade mais ampla a nível internacional exprime-se, antes de mais nada, continuando a promover, mesmo em condições de crise económica, maior acesso à educação, já que esta é condição essencial para a eficácia da própria cooperação internacional. Com o termo “educação” não se pretende referir apenas a instrução escolar ou a formação para o trabalho – ambas causas importantes de desenvolvimento – mas a formação completa da pessoa. A este propósito, deve-se sublinhar um aspecto do problema: para educar, é preciso saber quem é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. A progressiva difusão de uma visão relativista desta coloca sérios problemas à educação, sobretudo à educação moral, prejudicando a sua extensão a nível universal. Cedendo a tal relativismo, ficam todos mais pobres, com consequências negativas também sobre a eficácia da ajuda às populações mais carecidas, que não têm necessidade apenas de meios económicos ou técnicos, mas também de métodos e meios pedagógicos que ajudem as pessoas a chegar à sua plena realização humana.

Bento XVI, A Caridade na Verdade(§61)

(SP)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O ÊXODO MACIÇO DE EUROPEUS PARA PORTUGAL

Refugiados judeus chegam a Santa Apolónia

Desde o ano de 1935 que se verifica o primeiro êxodo de populações alemãs com destino aos Estados Unidos e a alguns países da América do Sul. Temendo os dias de holocausto da política hitleriana, algumas dezenas de famílias, muitas delas de crença judaica, abandonaram o centro da Europa em busca de eldorados de trabalho e de segurança. Gente de recursos na sua grande maioria, eram médicos, professores, banqueiros e cientistas que, atraídos pelos laços do sangue ou da amizade, pretendiam fugir aos horrores de uma guerra iminente. Com a anexação da República da Áustria, desaparecida por completo a esperança da paz, uma nova vaga de refugiados buscou os caminhos do exílio, não sendo de esquecer as centenas de crianças austríacas que, ao tempo, graças ao apoio da Caritas, encontraram lares benfazejos em Portugal.
Mas foi com a invasão a Polónia e a consequente declaração de guerra da França e da Inglaterra, que se produziu um êxodo maior de alemães desafectos ao Reich, assim como de checos, polacos e húngaros que sentiam as suas vidas em grave perigo. Com a chegada a Portugal de grande número de refugiados, a maior parte em condições de extrema penúria, o nosso Ministério dos Estrangeiros viu-se forçado a medidas de emergência para os acolher.(...)
A dramática situação criada à Europa pelas tropas germânicas e soviéticas, levou à aprovação de um novo regulamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dada a iminência de uma chegada maciça de expatriados europeus a Portugal. Assim, foi determinado que os nosso cônsules eram autorizados a conceder vistos gratuitos em duas condições: a) nos passaportes de estrangeiros nacionais de países que usassem de igual prática em passaportes portugueses; b) no passaportes individuais ou colectivos, ou nos documentos comprovativos dos mesmos, de estrangeiros em trânsito pelo território português, quando circunstâncias especiais assim o aconselhassem. O artigo 2º do referido decreto-lei determinava que a concessão e o prazo de validade dos vistos seriam regulados por instruções próprias já transmitidas às nossas autoridades consulares.
Foi ao abrigo desta determinação que vários cidadãos estrangeiros, muitos deles espanhóis, alemães, franceses e outros que viviam em Portugal ou haviam chegado na leva de 1940, tiveram a sorte de obter naturalização portuguesa. Mas o chamado “grande êxodo” não veio a demorar quando da súbita invasão dos Países Baixos, da Bélgica e da França, em Maio de 1940, pelas tropas germânicas. Dezenas de milhar de refugiados não tardaram a chegar à fronteira portuguesa, utilizando os meios possíveis por via aérea ou ferroviária, quando não atravessando a Espanha ao vaivém da sorte. Muitos desses infelizes queriam apenas fazer de Lisboa um porto de embarque para as três Américas, enquanto outros, com menos recursos, tudo fizeram para se fixar no país que gostariam de tomar como adoptivo. Esse número desceu, entretanto, para a média de duas mil entradas mensais, voltando a subir em Janeiro de 1942, com vagas de judeus que se foram instalando com o apoio dos comités judaicos residentes em Portugal.Avaliam-se os dramas humanos que estiveram na origem da fixação de tantos refugiados no nosso país. Na sua grande maioria eram franceses, alemães, polacos e austríacos, quase todos alojados em centros de turismo, como Costa da Caparica, Paço de Arcos, Praia das Maçãs, Curia, Figueira da Foz, Caldas da Rainha e Ericeira. As influências que os estrangeiros exerceram nas formas de pensar e de viver da sociedade portuguesa do tempo revestem-se de especial significado para a história das mentalidades no tempo da Segunda Guerra Mundial. Tenha-se sobretudo em conta que o Governo facilitou a vida dos refugiado em múltiplas formas de protecção, mas sem esquecer que a população teve igualmente um papel relevante no carinho social em que os envolveu.
A história recente tem procurado realçar a acção do Dr. Aristides de Sousa Mendes, cônsul de 1ª classe, e que, em 1940, estava à frente do consulado em Bordéus. Após a entrada dos alemães em Paris, o cônsul passou vistos a uns 30 mil refugiados, não apenas judeus, mas naturais de países então ocupados pelos alemães, o que lhes permitiu entrar legalmente em Portugal. Foi condoído da situação dos foragidos, que somente com essa autorização podiam deixar a França, que o nosso cônsul em Bordéus agiu na grave emergência. A decisão do Dr. Aristides de Sousa Mendes contrariava, porém, as instruções vindas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que haviam regulado, pela circular de 14 de Outubro do ano anterior, as condições em que o visto consular podia ser emitido. O seu gesto, por mais benemerente que fosse, infringia regras estabelecidas, o que teve por consequência que o cônsul fosse colocado na situação de disponibilidade, por conveniência de serviço.
Sujeito a processo disciplinar que o afastou da carreira diplomática, o Dr. Sousa Mendes seria, no nosso tempo, objecto de grandes homenagens, mormente das comunidades judaicas. Não nos foi possível examinar o processo que levou à sua aposentação compulsiva, pelo que se torna difícil emitir um juízo seguro acerca do seu afastamento. Para muitos críticos, seria apenas uma vingança pessoal do Doutor Oliveira Salazar, mas sem darem qualquer prova de tal aversão. Tratou-se sobretudo, ao nível do Ministério dos Estrangeiros, de um caso de não acatamento, por parte do Dr. Aristides de Sousa Mendes, das instruções recebidas. Pode realçar-se em seu abono que o nosso cônsul em Bordéus colocou a generosidade do coração acima das directivas oficiais que se lhe impunha cumprir.
Em defesa do Chefe do Governo, um dos seus biógrafos teceu o seguinte juízo: “Salazar nenhum destes refugiados entregou aos países de onde eram provenientes, pelo que foi assim um salvador ‘passivo’ desses 35.000 portadores do visto que Sousa Mendes assinou e a quem permitiu a fuga!”. Não reconhecer que o Presidente do Conselho facilitou a entrada dessas vítimas da conflagração constitui uma forma de miopia política contrária à realidade dos factos. Portugal tornou-se assim um verdadeiro asilo dos que se aproximavam das suas fronteiras e não viram negada a pretensão de um asilo para as suas dores e sofrimentos. Quem se recorda ainda da protecção oficial que o Governo concedeu aos foragidos pode dar testemunho de que o regime português salvou então a vida a milhares de europeus. A comunidade judaica que residia em Portugal, com realce para o Doutor Mosés Amzalak, jamais negou ao Presidente do Conselho essa homenagem.

Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal[1935-1941], pp.393-396.

SP