segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Entrudo de D. Tomás


Para assinalar as festas do Carnaval, apresentamos um soneto de D. Tomás de Noronha, poeta satírico dos mais importantes do século XVII, em que se descreve o Carnaval vestido de cavaleiro, com armadura constituída por peças de carne e doçaria. É um soneto pouco conhecido, mas que bem merecia maior divulgação, quer pela sua qualidade literária, quer pelas relações de natureza cultural que estabelece.

Entrava em uma vista o Santentrudo
Cavalgado em cima de um leitão;
Por lança, um espeto c’um capão;
Uma tortilha de ovos por escudo.

Por elmo, a cabeça de um cornudo;
Por peito, o de um peru com seu limão;
Por espaldar levava um bom lacão;
Os braçais, de toucinho façanhudo.

Uma saia de malha de aletria;
Armaduras das pernas, de filhós;
As esporas, de bicos de perdizes.

Por banda, um borrachão de malvazia;
Saía co’estas armas mui feroz
Ao som de caldeirões e almofarizes.


Para melhor se compreender o poema, convém advertir que o primeiro verso “Entrava em uma vista o Santentrudo” significará que a figura do Entrudo faria parte de uma gravura ou de uma pintura. A palavra “vista” pode apresentar esse significado. E não se verifica nenhuma contradição entre o verbo “entrar” do primeiro verso e o verbo “sair” do penúltimo porque a gravura, ou pintura, representaria o Entrudo saindo a um combate com a Quaresma. Poderíamos ainda supor que o poeta descreve a figura do Entrudo numa representação teatral. Tal hipótese parece-nos pouco provável porque julgamos que representações deste tipo não faziam parte da tradição carnavalesca portuguesa. Apenas temos notícia de uma que se fazia na região de Santo Tirso, na qual surge um cavaleiro, o Entrudo, acompanhado da Quaresma. Esta, porém, dirige-se ao cavaleiro chamando-lhe Valdevinos, contaminação com a célebre figura de D. Beltrão da epopeia carolíngia, essa, sim, bem conhecida em Portugal. É verdade que, com alguma frequência, se encontram nas festividades carnavalescas portuguesas e europeias bonecos chamados Entrudos, montando a cavalo e acompanhados das suas companheiras, as Quaresmas, que são queimadas juntamente com eles. Tais bonecos apresentam-se em préstito fúnebre – o enterro do Entrudo – envergando roupas imundas e esfarrapadas. Trata-se, pois, de figurações alegóricas de velhos decrépitos que nada têm a ver com a iconografia do soneto de D. Tomás. A matriz textual deste último é muito diversa da desses enterros carnavalescos, embora também de raiz popular. Referimo-nos aos romances alegóricos medievais que narram a luta, ou justa, entre o Carnaval e a Quaresma, cujas armaduras são precisamente constituídas por carnes e peixes variados. A origem desta iconografia será o célebre poema anónimo do século XIII, La Bataille de Caresme et de Charnage. Neste poema, o Carnaval monta um veado com as hastes todas cobertas de calhandras e cotovias, rouxinóis e toutinegras. O elmo, em D. Tomás, é a cabeça de um cornudo, talvez um touro ou um veado, um bode ou mesmo a efígie do diabo (existem no folclore português máscaras carnavalescas que representam o veado e o demónio). As esporas, na Bataille são, genericamente, bicos de pássaros. As perdizes, juntamente com as codornizes, formam o lorigão; uma torta serve de escudo; carne de porco, juntamente com a de carneiro, bordada com agraço, forma o gibão, e uma peça de carne de porco funciona como espada. O pendão é de queijo fresco e a cota de armas é feita, em parte, de pudim de miolo de pão e, em parte, de empadinhas de pombo. Para manoplas, o autor francês escolheu dois frangos.
Parece-nos muito original a escolha de um leitão para montada do Entrudo de D. Tomás, já que, no texto francês, é um veado, e em várias outras representações, como a da pintura de Bruegel que acompanha este texto, a montada é uma pipa. Numa peça burlesca, porém, intitulada Le retour de Mardy Gras, a personagem Terça-feira Gorda aparece montada num porco com brida feita de salsichas cobertas com mostarda de Dijon, enquanto um presunto de Mayence lhe serve de escudo, e salsichões e salame de Milão lhe pendem da bandoleira. O Carnaval de D. Tomás carrega caldeirões e almofarizes, mas é pormenor mais frequente em outras representações que apresentam o Entrudo levando potes, panelas, tachos, sertãs, grelhadores, espetos, enfim todos os utensílios de cozinha que, metonimicamente, significam os excessos gastronómicos típicos da época. Não é por acaso que, no Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, a primeira ordem que dá a Quaresma, quando chega Quarta-feira de Cinzas, é a de lavar e arrumar cestos, cepos, bacias, cântaros, escudelas, sertãs, talhas, caldeiras, travessas, espetos, panelas, testos, canadas, pipas, todos os apetrechos culinários que se podem ver numa cozinha do tempo, não apenas como gesto simbólico de purificação, mas significando igualmente que não serão mais necessários durante o rigoroso jejum quaresmal. Não nos esqueçamos de que as festas carnavalescas, na sua origem se encontram profundamente ligadas à Igreja, como bem mostrou Jacques Heers em Festas de Loucos e Carnavais.
Se esta criação de D. Tomás pode ser vista como paródia carnavalesca à figura do cavaleiro, pode igualmente interpretar-se como afloramento do mito medieval do país da abundância alimentar que é o mito da País da Cocanha, país que algumas versões situam no mar, a oeste da Península Ibérica. As festividades carnavalescas, com os seus excessos gastronómicos podem ser interpretadas como celebração de um país utópico onde não há fome e não é preciso trabalhar. Este mito ainda permanece em algumas festividades populares portuguesas, nas quais, por vezes, encontramos, no recinto das festas, o chamado pau da Cocanha, que tem lá no alto géneros alimentícios que um trepador deve tentar alcançar.
Textos literários portugueses sobre o Carnaval são relativamente raros. Por isso terminamos com a transcrição de um outro soneto atribuído a António Serrão de Castro, poeta igualmente do séc. XVII, onde se descrevem as brincadeiras da época:

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas;

Das janelas c’um tanho dar na gente,
A buzina a tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo;

Não perdoar arroz nem cuscus quente,
Despejar pratos e alimpar tigelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo.

Luís Silva Pereira, Resumo de "O Entrudo de D. Tomás de Noronha, in Revista Portuguesa de Humanidades 9(2005) 205-226.