terça-feira, 24 de agosto de 2010

Assunção de Maria

Tiziano Vecelli, 1516-18

Gostaria de meditar sobre um aspecto da afirmação dogmática, onde se fala de assunção à glória celestial. Hoje, todos nós estamos perfeitamente conscientes de que, com o termo "céu" não nos referimos a um lugar qualquer do universo, a uma estrela ou a algo de semelhante: não. Referimo-nos a algo de muito grande e difícil de ser definido com os nossos limitados conceitos humanos. Com este termo, "céu", queremos afirmar que Deus, o Deus que se fez próximo de nós, não nos abandona nem sequer na morte e além da morte, mas tem um lugar para nós e nos concede a eternidade; queremos afirmar que em Deus existe um lugar para nós. Para compreender um pouco mais desta realidade, olhemos para a nossa própria vida: todos nós experimentamos que, quando uma pessoa morre, continua a subsistir de alguma maneira na memória e no coração daqueles que a conheceram e amaram. Poderíamos dizer que neles continua a viver uma parte de tal pessoa, mas é como uma "sombra", porque também esta sobrevivência no coração dos próprios entes queridos está destinada a terminar. Deus, no entanto, nunca passa e todos nós existimos em virtude do seu amor. Existimos porque Ele nos ama, porque Ele nos pensou e nos chamou à vida. Existimos nos pensamentos e no amor de Deus. Existimos em toda a nossa realidade, não apenas na nossa "sombra". A nossa tranquilidade, a nossa esperança e a nossa paz fundamentam-se precisamente nisto: em Deus, no seu pensamento e no seu amor, não sobrevive unicamente uma "sombra" de nós mesmos, mas nele, no seu amor criador, nós somos conservados e introduzidos com toda a nossa vida, com todo o nosso ser na eternidade.
É o seu Amor que vence a morte e nos confere a eternidade, e é este amor ao qual chamamos "céu": Deus é tão grande, a ponto de reservar um lugar também para nós. E o homem Jesus, que é ao mesmo tempo Deus, constitui para nós a garantia de que o ser-homem e o ser-Deus podem existir e viver eternamente um no outro. Isto quer dizer que de cada um de nós não continuará a existir somente uma parte que nos é, por assim dizer, arrebatada, enquanto outras caem em ruína; quer dizer principalmente que Deus conhece e ama o homem todo, o que nós somos. E Deus acolhe na sua eternidade aquilo que agora, na nossa vida feita de sofrimento e amor, de esperança, alegria e tristeza, cresce e se realiza. O homem todo, toda a sua vida é tomada por Deus e nele, purificada, recebe a eternidade. Caros amigos, penso que esta é uma verdade que nos deve encher de profunda alegria. O Cristianismo não anuncia somente uma qualquer salvação da alma num além indefinido, no qual tudo o que foi precioso e querido para nós neste mundo seria eliminado, mas promete a vida eterna, "a vida do mundo que há-de vir": nada daquilo que nos é precioso e querido cairá em ruínas, mas encontrará a plenitude em Deus. Todos os fios de cabelo da nossa cabeça estão contados, disse certo dia Jesus (cf. Mt 10, 30). O mundo definitivo será o cumprimento também desta terra, como afirma São Paulo: "E também ela [a criação] será libertada da servidão da corrupção para participar, livremente, da glória dos filhos de Deus" (Rm 8, 21). Assim, compreende-se como o Cristianismo incute uma esperança forte num porvir luminoso e abre o caminho para a realização deste futuro. Precisamente como cristãos, nós somos chamados a edificar este mundo novo, a trabalhar a fim de que um dia se torne o "mundo de Deus", um mundo que há-de ultrapassar tudo aquilo que nós mesmos poderíamos construir. Em Maria Assunta ao Céu, plenamente partícipe da Ressurreição do Filho, nós contemplamos a realização da criatura humana segundo o "mundo de Deus".


Bento XVI

SP

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Anti-épico


Na Praia


Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar

senhoras que com tanta dignidade

à hora que o calor mais apertar

coroadas de graça e majestade

entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?


Ruy Belo, homem de palavra(s)

SP

terça-feira, 20 de julho de 2010

Uma nova célula, uma nova vida(cont)


Os autores do trabalho em análise referem-se expressamente, na parte final, dedicada à discussão dos resultados, às consequências de natureza ética e/ou social que a sua descoberta possa ter, sugerindo, muito correctamente, que haja ampla discussão pública acerca destas consequências. É para o que, de modo muito sucinto, tentaremos contribuir.
Pensamos que, e antes de iniciar o elenco das questões éticas em apreço, será importante sublinhar que as questões éticas relacionadas com a biologia sintética não são, na sua essência, distintas das encontradas em novas áreas emergentes. Assim, a abordagem ética à biologia sintética é em tudo similar à abordagem das grandes questões éticas que se colocam noutras áreas de desenvolvimento recente (p.e. nanotecnologia, genética, neuroimagem). Importa ainda sublinhar que (...), em nosso entender, os excepcionalismos nas análises éticas destas diferentes áreas emergentes, nanoética, genética, neuroética, devem ser evitados, uma vez que fragmentam uma mesma área do conhecimento. Assim, aceitando que a intensidade das questões se coloca de forma diferente consoante a área em apreço, os grandes princípios são os mesmos.
Em primeiro lugar, entendemos que a nova técnica descrita se exime a uma valorização ética. Na realidade, como geralmente acontece e é universalmente reconhecido, uma técnica é, em si mesma, moralmente neutra ( e só não é se envolver o recurso a passos que sejam lesivos da liberdade, dignidade e direitos humanos, ofendam os interesses dos animais ou prejudiquem o equilíbrio ecológico) e a avaliação ética transfere-se, nesta situação, para os usos que desta técnica se façam. O exemplo clássico é o da cisão do átomo, com consequências benéficas quando fornece energia a populações, com execráveis consequências quando aproveitada para fins militares.
No caso em estudo, a técnica pode resultar em benefícios importantes: se os cientistas conseguirem modificar seres vivos de modo a transformá-los em produtores celulares de substâncias com potencial terapêutico (sobretudo se inovador) ou económico, parece óbvio que só se pode saudar o avanço assim obtido. Mas mesmo nesta eventualidade, podem alguns formular reservas éticas, baseadas na intervenção humana sobre a vida vegetal ou animal, disruptiva do equilíbrio naturalmente existente: os ecologistas dirão, talvez, que assim como é vedado ao Homem contribuir para a extinção das espécies, também lhe deve ser proibido criar novas espécies. Mais importante é o risco da difusão dessas espécies modificadas fora do meio laboratorial (ou industrial, se forem utilizadas em grande escala): se uma espécie bacteriana modificada se espalhar e multiplicar no ambiente, o que acontecerá a outras bactérias, indispensáveis inclusive à vida humana? Perderão o seu espaço vital, modificar-se-ão também? Há aqui riscos óbvios que obrigarão, desde o início, à adopção de rigorosas medidas de segurança na investigação em causa.
O mau uso da técnica poderia conduzir à preparação de bactérias produtoras de toxinas letais ou de exaltada virulência ou dotadas de multi-resistência frente aos antibióticos. Espécies destas poderiam ser usadas em acções de guerra bacteriológica e conduzir à exterminação de populações inteiras, por inoculação da água de consumo ou por nebulização na atmosfera. É claro que estes cenários apocalípticos são altamente improváveis, mas a sofisticação crescente de redes fundamentalistas e terroristas aconselha à maior prudência e a uma regulação vigilante de toda a investigação que se venha a fazer nesta área.


W. Osswald e Ana Sofia Carvalho, “Uma nova célula, uma nova vida?”, in Brotéria, 5/6, vol. 170 (Maio/Junho 2010), pp. 441-443.
SP

Uma nova célula, uma nova vida?


O trabalho publicado por Craig Venter e colegas na revista Science, uma das melhores revistas científicas do mundo, é, sem dúvida, um importante contributo não apenas para a modificação genómica bacteriana, (...) mas também para a “Biologia sintética” como área de investigação própria, plena de promessas e perspectivas. O que esta equipa conseguiu, ao fim de anos de tentativas, pode resumir-se do seguinte modo, sem entrar em pormenores técnicos especializados:
A uma bactéria banal (um micoplasma, com poucos genes) foi retirado o material genético, que foi substituído por outro, preparado pelos cientistas. A bactéria multiplicou-se e as bactérias dela descendentes continuaram a apresentar o genoma que fora inoculado à célula mãe, isto é, criou-se em boa verdade uma nova espécie bacteriana, que poderá continuar a reproduzir-se sem limite de tempo. Para aumentar a proeza, o ADN inoculado não era um ADN “natural”, isto é, existente como tal na natureza, pois fora preparado a partir de sequências de ADN nativas, juntando-as como se fossem obtidas por um sistema de cortar e colar.
São, pois, duas as grandes inovações deste trabalho: em primeiro lugar, o genoma da bactéria não foi apenas modificado, por adição de um gene (...), mas inteiramente substituído (o que é radicalmente novo); em segundo lugar, o ADN inoculado não era o de outra bactéria, antes tinha sido obtido por construção, a partir de blocos sequenciais adrede postos em contacto e, por assim dizer, encaixados uns nos outros (o que até agora ninguém conseguira fazer).
Estamos, pois, em presença de uma dupla proeza científica de elevado valor heurístico. De facto, é de prever que não apenas esta equipa, mas muitos outros cientistas tentarão avançar nesta área, a partir do modelo relativamente simples (genoma bacteriano com reduzido número de genes, reprodução assexuada, número elevado de gerações em breve lapso de tempo) para alcançar resultados de relevância prática (que este trabalho não tem), tais como a “domesticação” de bactérias ou até de seres multicelulares de modo a torná-los produtores de substâncias com interesse terapêutico (citostáticos, imunomodeladores, vacinas, antibióticos, etc.) ou comercial (matérias primas, hidrocarbonetos, combustíveis...).
Todavia, os comentários e interpretações veiculados pelos meios de comunicação transvazaram, bastantes vezes, desta área de verdade científica para difundirem noções hiperbólicas e sensacionalistas que não eram merecidas por tão importante trabalho científico (mas de que Craig Venter, há que reconhecê-lo, se não afastou suficientemente nas entrevistas que concedeu – ou fomentou). Assim, disse-se que tinha sido criada uma célula artificial ou que o ADN, código da vida, tinha sido fabricado em laboratório, o que conduzia à certeza de que o homem podia fabricar a vida, criar seres vivos, substituir-se ao Deus criador que as religiões monoteístas anunciam.
Ora, é bem de ver que tais ilações são erradas, e falsos os seus pressupostos. Como acima se fez notar, a equipa de Venter não fabricou uma célula, antes usou células bacterianas banais; é certo que as modificou geneticamente, o que fora já realizado em menor escala, pelo que se poderá, quando muito, afirmar que foi criada uma nova estirpe (ou talvez espécie) bacteriana, mas nunca que foi criada uma célula viva. Por outro lado, o ADN inoculado não foi sintetizado ou fabricado, mas antes obtido a partir de sequências pré-existentes na natureza, pelo que é abusivo partir para especulações como a de criação de vida artificial.

W. Osswald e Ana Sofia Carvalho, “Uma nova célula, uma nova vida?”, in Brotéria 5/6, vol. 170 (Maio/Junho de 2010), pp. 439-441.
SP

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Ele é o cavador


Ele é o cavador e o trabalho e a vinha
É ele que tem os aguaceiros de Outono –

Ele tem a giesta onde faz nascer a neblina
Ele abriga-nos, é ele que tem as nuvens
Ele tem o desenho das copas que dão fruto

Ele nem sequer se assemelha à luz nunca tocada
E estende sobre nós a cura
Os ramos da oliveira como o braço de quem afaga
Ele faz-nos provar o paladar inesgotável da escrita
Ela parte a broa e dá-nos ambas as mãos.

É ele que conserva o mecanismo dos pássaros
É ele que move os moleiros quando param os moinhos
É ele que puxa a corda dos bois e a linha
Do céu que assinala os limites dos montes

Ele é que eleva o corpo dos santos, é ele
Que amestra o pólen para o mel, ele decide
A medida da flor na farinha
Ele deixa-nos tocar a orla dos seus mantos

Daniel Faria, Poesia

SP

domingo, 13 de junho de 2010

Metamorfose


Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando, a certa altura, começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro. Era um nó negro por detrás da cor vermelha que, insidioso, se desenvolvia para fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º - peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.
Herberto Hélder, Retrato em Movimento
SP

quinta-feira, 10 de junho de 2010


As bolas de sabão que esta criança

se entretém a largar de uma palhinha

são translucidamente uma filosofia toda.

Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,

amigas dos olhos como as cousas,

são aquilo que são

com uma precisão redondinha e aérea

e ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,

pretende que elas são mais do que parecem ser.


Algumas mal se vêem no ar lúcido.

São como a brisa que passa e mal toca nas flores

e que só sabemos que passa

porque qualquer coisa se aligeira em nós

e aceita tudo mais nitidamente.


Alberto Caeiro

SP

terça-feira, 25 de maio de 2010

Primeira Célula Viva Artificial




O Vaticano manifesta-se com prudência até compreender melhor as possíveis implicações éticas, admitindo que esta descoberta é um sinal “da grande inteligência” do homem.
“Todos os êxitos científicos são válidos se se adequarem à dimensão ética”, a qual leva no seu coração a dignidade autêntica da pessoa”. Foi esta a reacção do presidente da Conferência Episcopal Italiana, cardeal Angelo Bagnasco, arcebispo de Génova, ao ser questionado sobre a posição da Igreja acerca da bactéria obtida nos Estados Unidos a partir de ADN sintético.
O ser vivo obtido no Instituto J. Craig Venter de Rockville é uma bactéria dotada de um genoma artificial. Este genoma é uma cópia, com algumas pequenas diferenças, do de uma bactéria real. A novidade é que este genoma foi reconstruído em laboratório a partir de informações genéticas introduzidas num computador. Este avanço científico abre caminho para manipular genomas tendo em vista a criação de micro-organismos benéficos para a Humanidade. Por esse motivo, a Santa Sé está a reunir informações com vista a poder oferecer um juízo ético sobre a notícia dada pelos geneticistas estadunidenses.

Bagnasco reconheceu em Turim que a confirmação desta descoberta será “mais um sinal da grande inteligência do homem”, embora o próprio director do Gabinete de Informação da Santa Sé, o padre Federico Lombardi, tenha falado com cautela: “É necessário esperar, para saber mais sobre este caso”. Declarações semelhantes foram as do arcebispo Rino Fisichella, presidente da Academia Pontifícia para a Vida, e do seu predecessor no cargo, monsenhor Elio Sgreccia.

A descoberta foi anunciada na revista Science, por Craig Venter, conhecido como um dos pais do genoma humano. Venter afirmou que a sua equipa tinha criado, pela primeira vez, uma célula controlada por um genoma sintético.

“O ADN não é a vida”

A edição de 22 de maio, em italiano, do diário da Santa Sé, L'Osservatore Romano, publica um artigo do doutor Carlo Bellieni, director do Departamento de Terapia Intensiva Neonatal da Policlínica Universitária de Siena (Italia) e membro da Academia Pontifícia para a Vida, no qual pede “audácia e cautela", segundo relata Zenit.
Bellieni esclarece que a descoberta de Venter constitui uma meta para a biogenética; contudo, precisa que “não se criou a vida; substituiu-se um dos motores”.
Citando o geneticista David Baltimore, do California Institute of Technology, acrescenta: “Não criaram a vida: apenas a copiaram”.
“Para além da publicidade e dos títulos dos jornais, conseguiu-se um resultado interessante que pode ter aplicações e que deve ter regras, como tudo o que toca no coração da vida”, alerta Bellieni.
"A engenharia genética pode fazer o bem" -continua. "Basta pensar na possibilidade de curar doenças cromossómicas”.
“As intervenções sobre o genoma podem curar, mas tocam num terreno sumamente frágil, no qual o ambiente e a manipulação desempenham um papel que não deve ser menosprezado”. Assim, conclui, “o ADN, embora seja um óptimo motor, não é a vida”.
Venter, a autor da descoberta, afirmou: “Creio que as regulamentações existentes não bastam, e como autores desta descoberta e responsáveis pelo seu desenvolvimento queremos que se faça tudo o que for possível para prevenir abusos".

Traduzido e adaptado de Forumlibertas
SP

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Vimos a Pedra

Jacob Cornelis van Ootsanen.1507. Cristo aparece a Madalena


Vimos a pedra vazia no interior da terra
A manhã. Nós não tocámos a luz
Inesperada. Pensámos
Que já o sono sendo eterno te afastara
E que farol que foste
Agora onda após onda, brasa extinta, naufragava

Nunca mais, pensámos, dormirias na proa
E quase desaprendêramos a guiar o barco
Em nossas viagens não amainaria mais, pensámos, e chegar a casa
Seria ver multiplicar-se
A nossa fome como o peixe e como o pão

Chegámos a terra porém e esperavas-nos
Os pés furados como conchas sobre a areia
E sentámo-nos em redor para comer.

Daniel Faria, Poesia


SP


New York Times desmente-se a si mesmo nos ataques contra o Papa


O jornalista italiano Ricardo Cascioli explica no diário Avvenire que a documentação difundida pelo diário novaiorquino desmonta as suas próprias teses. Reproduzimos o texto de Cascioli.



Tudo começa a 15 de maio de 1974, quando um ex-estudante da St. John’s School para surdos, denuncia os abusos praticados contra si e contra outras crianças por Lawrence Murphy, entre 1964 e 1970, mas, conforme foi publicado, após uma investigação, o juiz encarregado arquiva o caso. A diocese de Milwaukee, por seu lado, afasta em seguida o padre Murphy, concedendo-lhe uma licença temporária por motivos de saúde (até novembro de 1974), a qual, porém, se torna definitiva. Uma carta da diocese de Superior, em 1980, explica que Murphy vive em Bounder Junction (Wisconsin), em casa da mãe, embora continuasse a exercer o ministério sacerdotal, ajudando o pároco local.
Entretanto, multiplicam-se as denúncias à diocese de Milwaukee, e entre julho e dezembro de 1993, Murphy é submetido a quatro longos interrogatórios pelos responsáveis da arquidiocese, acompanhados por psicólogos peritos em pedofilia. Surge daí um quadro clínico de “pedófilo típico”, que aconselha tratamento psicológico para maníacos sexuais, além de acompanhamento pastoral/espiritual, bem como restrição da actividade ministerial. Do informe dos interrogatórios depreende-se que havia 29 denúncias de menores. Murphy admite “contactos” apenas com 19 das crianças implicadas. Os documentos posteriores demonstram que a arquidiocese de Milwaukee prosseguiu as investigações, procurando precisar a realidade e a magnitude dos factos. A 17 de julho de 1996, o bispo Rembert Weakland escreve ao então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, pedindo esclarecimentos sobre o caso de Murphy e sobre um outro, não relacionado, de outro sacerdote, acusado de crimes sexuais e financeiros.
Monsenhor Weakland faz referência à denúncia de 1974, e explica que só recentemente teve conhecimento de que alguns dos crimes sexuais tiveram lugar durante o sacramento da Confissão, pelo que tinha encarregado oficialmente um sacerdote da diocese, James Connell, de levar a cabo uma investigação profunda (o decreto é de dezembro de 1995). Um obstáculo ao apuramento dos factos –afirma monsenhor Weakland–consiste na compreensível reticência das crianças e da comunidade da St John’s School em tornar públicas circunstâncias embaraçosas. Monsenhor Weakland dirige-se à Congregação para a Doutrina da Fé para pedir esclarecimentos sobre a jurisdição neste caso de “crime de solicitação” (cânone 1387), e se é competência da diocese ou da Congregação.
Dos sucessivos documentos parece que a carta não chegou nunca à mesa do cardeal Ratzinger e do então monsenhor Bertone, secretário da Congregação para a Doutrina da Fé. Em todo o caso, na falta de uma resposta, a arquidiocese de Milwaukee segue o seu caminho e, a 10 de dezembro de 1996, informa Murphy de que, a 22 de novembro, se tinha aberto um procedimento penal eclesiástico contra ele com um tribunal criado ad hoc. A petição da acusação é “expulsão de Murphy do estado clerical”.
O problema que se coloca, ainda assim, é o da prescrição dos crimes cometidos, pelo que, segundo a norma do direito canónico, não se poderia proceder. Contudo, o arcebispo de Milwaukee tem intenção de conseguir uma derrogação do cânone, tendo em conta a situação física e psicológica das vítimas. Essa intenção foi depois avalizada por monsenhor Bertone, em carta de 24 de março de 1997. Em finais de 1997, o proceso passa para a diocese de Superior, mas o presidente do tribunal continua a ser o mesmo de Milwaukee, Thomas Brundage. Dos documentos apresentados pelo New York Times ressalta claramente a intenção das autoridades eclesiásticas de Milwaukee e Superior de actuar o mais rapidamente possível para chegar a um acto de justiça e de reparação para com as vítimas e a comunidade da St John’s School.
Entretanto, Murphy escreve uma carta ao cardeal Ratzinger (12 de janeiro de 1998), pedindo a anulação do processo contra ele porque a Instrução de 1962 prevê, para começar a acção penal, um prazo de 30 dias desde o momento em que se apresenta a acusação. Murphy afirma ainda que, para além de estar arrependido, se encontra gravemente doente e vive retirado há 24 anos. Por isso pede que, pelo menos, não o expulsem do estado clerical.
A 6 de abril de 1998, monsenhor Bertone escreve a monsenhor Fliss, bispo de Superior, em nome da Congregação para a Doutrina da Fé, explicando que, depois de ter examinado atentamente o caso, não existe prazo para a acção penal, como aduzia Murphy, pelo que o processo pode continuar, ainda que, acrescenta Bertone, se deva ter em conta o artigo 1341 do Código de Direito Canónico, segundo o qual uma sanção penal deve ser aplicada apenas depois de se ter constatado não ser “possível obter de modo suficiente a reparação do escândalo, o restabelecimento da justiça e a emenda do culpado” por outros meios.
Monsenhor Fliss responde a 13 de maio a monsenhor Bertone, afirmando que, conforme indicação da Congregação, é necessário um processo a Murphy, tendo em conta a gravidade do escândalo e o grande sofrimento infligido à comunidade católica da St John’ School.
Chega-se, assim, a 30 de maio, quando no Vaticano se realiza um encontro entre monsenhor Bertone, o subsecretário da Congregação para a Doutrina da Fé, Gianfranco Girotti, e os prelados norteamericanos afectados pelo problema. Da acta do encontro depreende-se que na Congregação há dúvidas sobre a possibilidade e a oportunidade do processo canónico, dada a dificuldade de reconstruir os factos sucedidos 35 anos antes, sobretudo no que respeita ao crime no confessionário, e dado que não existem outras acusações desde 1974. Assim sendo, Bertone, como conclusão do encontro, resume as duas linhas fundamentais que se devem aplicar: restrição territorial do ministério sacerdotal (na prática Murphy deve ficar em Superior), e uma acção decidida com o fim de conseguir o arrependimento do sacerdote, incluindo a ameaça de “expulsão do estado clerical”.
O bispo de Milwaukee escreve ainda em 19 de agosto a monsenhor Bertone para pô-lo ao corrente das medidas tomadas para levar a cabo as líneas indicadas pela Congregação, e informá-lo do facto de que a sua diocese continuará a encarregar-se das despesas para apoiar a terapia das vítimas dos abusos sexuais. Finalmente, a 21 de agosto, Murphy morre, encerrando-se definitivamente o caso.
SP

terça-feira, 30 de março de 2010

Chaga do Lado



Sempre nos pareceu estranho que os artistas que representaram Cristo crucificado lhe tenham colocado, quase sem excepção, a chaga no lado direito do peito. Deviam supor, logicamente, que o soldado romano que trespassou Cristo, querendo certificar-se de que estava morto, não tivesse escolhido o lado direito para lhe dar o golpe fatal, mas o esquerdo. É aí, com efeito, que sentimos palpitar o coração, é aí que sempre o imaginamos. Os artistas seriam, pois, levados a pensar que o centurião, por mais desatento ou ignorante que fosse da anatomia humana, deveria ter trespassado Cristo pelo lado esquerdo, se lhe queria atingir o coração.
Poderíamos pensar que se fundamentaram nos Evangelhos. Contudo, desse pormenor não nos ficou nenhuma narrativa, nem no Evangelho em grego de S. João, o único que relata o episódio, nem na Vulgata, em latim. Também não aparece, quanto pudemos averiguar, nos relatos apócrifos que tanto apreciam minúcias realistas e pitorescas. S. João apenas diz que um dos soldados, vendo Cristo já morto, “perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água” (Cap. XIX, 34). O termo grego que ele utiliza é πλευράν, que significa simplesmente lado, sem especificar se se trata do direito ou do esquerdo. A Vulgata latina traduz por latus, igualmente sem qualquer especificação.
Não poderá vir daqui, portanto, o hábito de representar Cristo ferido do lado direito, iconografia que terá começado nas iluminuras do Evangelho Siríaco, datado do ano 586. Aí se pode ver, de facto, Cristo na cruz a ser trespassado, no lado direito, por Longuinhos, nome que provém dos evangelhos apócrifos, e não dos canónicos.
A predilecção dos artistas pelo lado direito poderia explicar-se por razões simbólicas. É ele o lado da salvação. É do lado direito que os artistas colocam o Bom Ladrão, embora os Evangelhos não digam de que lado ele estava; é do lado direito que colocam Nossa Senhora; é para o lado direito que inclinam a cabeça de Cristo quando morre; é para o lado direito que o fazem descair quando é descido da cruz; é para esse lado que Cristo convoca os que se salvam, no dia do Juízo Final; é ao lado direito do Pai que Cristo está sentado na sua glória; é ao lado direito de Cristo que Nossa Senhora é pintada depois de subir aos Céus. Simbolicamente, parece, pois muito mais conveniente pintar, desenhar ou esculpir, a chaga do lado direito porque o sangue e a água que dela saíram constituem sinais da salvação dos homens.
Até do ponto de vista estético, seria também melhor colocar a chaga do lado direito. Se Cristo inclinou para lá o corpo, ao morrer, então seria muito mais fácil pintá-la. Bastava um simples traço vermelho. Se a colocassem do lado esquerdo, a inclinação do corpo para a direita faria com que a ferida ficasse mais aberta, tornando-se também mais difícil de pintar.
Lembrámo-nos de verificar, por simples curiosidade, de que lado estava a chaga na síndone de Turim. Ficámos completamente estupefactos. A síndone de Turim revela que a chaga se encontra precisamente no lado direito! Os estudiosos determinaram mesmo que a lança penetrou entre a quinta e a sexta costelas. Mais ainda: para sair sangue e água (que é a linfa), como relata o Evangelho, a ferida teria que ser feita pelo lado direito, pois só assim atingiria a parte do coração que, nos cadáveres, fica cheia de sangue. Não se pode daqui concluir, de modo nenhum, que a fonte de inspiração dos artistas tenha sido o lençol no qual, segundo se crê, Cristo morto esteve envolvido. Bastaria uma só razão: apenas com a descoberta da fotografia foi possível, através do negativo fotográfico, olhar a “verdadeira realidade” que mostra a chaga do lado direito. No lençol, ela está no lado esquerdo porque a imagem do lençol é uma imagem invertida. Se os pintores se tivessem inspirado nela, teriam pintado a chaga no lado esquerdo, tal como a veriam no lençol. Mais ainda: só a partir dos inícios do séc. XIV é que se generaliza a pintura de Cristo na cruz com um pé em cima do outro (normalmente o direito sobre o esquerdo – Pietro Perugino coloca o esquerdo sobre o direito). Antes representavam-se geralmente separados. Ora a síndone mostra que os pés estiveram pregados um sobre o outro, mas, ao contrário da representação habitual, o pé esquerdo é que esteve sobre o direito. Outro pormenor ainda: salvo raríssimas excepções, os artistas colocam os pregos na palma das mãos. A síndone revela que eles foram cravados nos pulsos. A síndone de Turim não pode, pois, pelas razões apresentadas, e várias outras que não é oportuno aqui referir, ter sido a fonte iconográfica da crucifixão, apesar da localização da chaga do lado.
Recentemente, encontrámos uma explicação que nos parece muito aceitável. Os soldados romanos treinavam-se a espetar a lança no peito dos inimigos pelo lado direito, uma vez que o lado esquerdo se encontrava protegido pelo escudo. O centurião romano que trespassou Cristo na cruz teria, pois, agido em conformidade com o treino que recebera.
Será, então, de admitir que houve uma tradição não escrita que identificava o lado direito como o lado em que o soldado romano cravou a lança. Dizemos “não escrita” porque só no século XII, num sermão de São Bernardo sobre a Paixão de Cristo, é que aparece, pela primeira vez, uma referência ao lado direito.

Luís Silva Pereira

segunda-feira, 29 de março de 2010

O escândalo da pedofilia


A questão dos padres pedófilos e homossexuais que surgiu recentemente na Alemanha, tem como alvo o Papa. Cometer-se-ia, no entanto, um grave erro se pensássemos que o golpe não conseguiria atingir o alvo, dada a enormidade da iniciativa. E seria um erro maior ainda se se considerasse que a questão será rapidamente ultrapassada, como tantas outras. Não é assim. Está em curso uma guerra. Não apenas contra a pessoa do Papa porque, nesse campo, a guerra é impossível. Bento XVI tornou-se inexpugnável na sua imagem, na sua serenidade, na sua limpidez, firmeza e doutrina. Basta o seu sorriso manso para derrotar um exército de adversários.
Não, a guerra é entre o laicismo e o cristianismo. Os laicistas sabem que se um esguicho de lama atingir a batina branca, conseguir-se-á sujar a Igreja e, se se sujar a Igreja, então ter-se-á também sujado a religião cristã. É por isso que os laicistas acompanham a sua campanha com perguntas como: "Quem mandará ainda as suas crianças à Igreja?", ou, "quem mandará ainda os seus filhos para um colégio católico?", ou mesmo, ainda, "quem irá tratar os seus filhos num hospital ou clínica católica? ". Há alguns dias atrás, um laicista deixou escapar a sua intenção. Escreveu assim: "a extensão da difusão do abuso sexual de crianças por padres põe em causa a própria legitimidade da Igreja Católica, como garante da educação dos mais pequeninos." Não importa que esta sentença não tenha provas e esteja cuidadosamente escondida sob a fórmula "extensão da difusão": um por cento de padres pedófilos? Dez por cento? Todos? Não importa que a sentença seja desprovida de lógica: basta substituir "sacerdotes" por "professores", ou por "políticos", ou por "jornalistas" para "minar a legitimidade" das escolas públicas, dos parlamentos ou da imprensa. O que importa é a insinuação, mesmo à custa da grosseria do argumento: os padres são pedófilos, assim a Igreja não tem autoridade moral, logo a educação católica é perigosa, pelo que cristianismo é uma fraude e um perigo.
Esta guerra do laicismo contra o cristianismo é uma batalha campal. Deve-se trazer à memória o nazismo e o comunismo para encontrar uma situação similar. Mudam os meios, mas o fim é o mesmo. Hoje, como ontem, o que se pretende é a destruição da religião. Na altura, a Europa pagou o preço por esta fúria destrutiva com a sua própria liberdade. É incrível que, especialmente na Alemanha, enquanto se bate continuamente com a mão no peito devido à memória do preço que se infligiu por toda a Europa, na Alemanha que hoje é uma democracia, se esqueça e não se entenda que a própria democracia estaria perdida se o cristianismo fosse apagado. A destruição da religião comportou então a destruição da razão. E hoje não significará o triunfo da razão laica, mas uma nova barbárie. Sob o plano ético, aí está a barbárie de quem mata um feto porque a sua vida seria prejudicial para a saúde psíquica da sua mãe; de quem diz que um embrião é um "monte de células" bom para experiências cientificas; de quem mata um velho porque ele já não tem uma família que o trate; de quem apressa o fim de um filho porque não está consciente e é incurável; de quem pensa que "progenitor A" e "progenitor Pai B" é o mesmo que "pai" e "mãe"; de quem acredita que a fé é como o cóccix, um corpo que já não participa na evolução porque o homem não já não precisa da cauda e está erecto por si mesmo. E por aí adiante. Ou então, e considerando o lado político da guerra dos laicistas ao Cristianismo, a barbárie será a destruição da Europa. Porque, abatido o cristianismo, permanecerá o multiculturalismo, que acredita que cada grupo tem direito à sua cultura; o relativismo, que pensa que cada cultura é tão boa quanto qualquer outra; o pacifismo, que nega que o mal existe.
Esta guerra ao cristianismo não seria tão perigoso se os cristãos a compreendessem. Em vez disso, todas estas incompreensões envolvem muitos deles: teólogos frustrados pela supremacia intelectual de Bento XVI; bispos inseguros que consideram que qualquer compromisso com a modernidade é o melhor modo de actualizar a mensagem cristã; cardeais, em crise de fé, que começam a sugerir que o celibato dos sacerdotes não é um dogma, e que talvez fosse melhor reconsiderá-lo; intelectuais católicos felpudos que pensam que há uma questão feminina dentro da Igreja e um problema não resolvido entre o cristianismo e sexualidade; conferências episcopais que se enganam na ordem do dia e que, enquanto esperam por uma política de fronteiras abertas para todos, não têm a coragem de denunciar as agressões que os cristãos sofrem e as humilhações que são forçados a provar ao serem todos, indiscriminadamente, sentados no banco dos réus.
Marcello Pêra, Corriere della Sera, 17.03.2010 (resumo)
Filósofo agnóstico e senador
SP

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ponte entre Deus e os Homens II


Esta humanidade do sacerdote não corresponde ao ideal platónico e aristotélico, segundo o qual o verdadeiro homem seria aquele que vive unicamente na contemplação da verdade, e assim é bem-aventurado, feliz, porque tem só amizade com as coisas belas, com a beleza divina, mas "os trabalhos" fazem-nos os outros. Esta é uma suposição, enquanto que aqui se supõe que o sacerdote entre como Cristo na miséria humana, a leve consigo, vá ao encontro das pessoas sofredoras, se ocupe delas, e não só exteriormente, mas assuma interiormente sobre si, reúna em si mesmo a "paixão" do seu tempo, da sua paróquia, das pessoas que lhe são confiadas. Assim Cristo mostrou o verdadeiro humanismo. Certamente o seu coração está sempre fixo em Deus, vê sempre Deus, intimamente está sempre em diálogo com Ele, mas Ele carrega, ao mesmo tempo, todo o ser, todo o sofrimento humano entra na Paixão. Falando, vendo os homens que são pequenos, sem pastor, Ele sofre com eles e nós sacerdotes não podemos retirar-nos num Elysium, mas estamos imersos na paixão deste mundo e devemos, com a ajuda de Cristo e em comunhão com Ele, procurar transformá-lo, guiá-lo para Deus.
Dizemos, justamente, que Jesus não ofereceu a Deus algo, mas ofereceu-se a si mesmo e este oferecer-se a si mesmo realiza-se precisamente nesta compaixão, que transforma em oração e em grito ao Pai o sofrimento do mundo. Neste sentido também o nosso sacerdócio não se limita ao acto cultual da Santa Missa, no qual tudo é colocado nas mãos de Cristo, mas toda a nossa compaixão em relação ao sofrimento deste mundo tão distante de Deus, é acto sacerdotal, é prospherein, é oferecer. Neste sentido, parece-me que devemos entender e aprender a aceitar mais profundamente os sofrimentos da vida pastoral, porque é exactamente esta a acção sacerdotal, é mediação, é entrar no mistério de Cristo, é comunicação com o mistério de Cristo, muito real e essencial, existencial e depois sacramental.
É importante uma segunda palavra neste contexto. Diz-se que Cristo assim através desta obediência torna-se perfeito, em grego teleiotheis (cf. Hb 5, 8-9). Sabemos que em toda a Torah, isto é, em toda a legislação cultual, a palavra teleion, aqui usada, indica a ordenação sacerdotal. Ou seja, a Carta aos Hebreus diz-nos que, precisamente fazendo isto, Jesus foi proclamado sacerdote, realizou-se o seu sacerdócio. A nossa ordenação sacerdotal sacramental deve ser realizada e concretizada existencialmente, mas também de modo cristológico, precisamente neste carregar o mundo com Cristo e para Cristo e, com Cristo, para Deus: assim tornamo-nos realmente sacerdotes, teleiotheis. Por conseguinte, o sacerdócio não é uma coisa por algumas horas, mas realiza-se precisamente na vida pastoral, nos seus sofrimentos e nas suas debilidades, nas suas tristezas e também, naturalmente, nas alegrias. Assim, tornamo-nos cada vez mais sacerdotes em comunhão com Cristo.
São Máximo o Confessor, na sua interpretação do Monte das Oliveiras, da angústia expressa precisamente na oração de Jesus, "não a minha, mas a tua vontade", descreveu este processo, que Cristo leva em si como verdadeiro homem, com a natureza, a vontade humana; neste acto "não a minha, mas a tua vontade", Jesus resume todo o processo da sua vida, isto é, do levar a vida natural humana à vida divina e deste modo transformar o homem: divinização do homem e assim redenção do homem, porque a vontade de Deus não é uma vontade tirana, não é uma vontade que está fora do nosso ser, mas é precisamente a vontade criadora, é precisamente o lugar onde encontramos a nossa verdadeira identidade.
A verdadeira Jerusalém, a Salem de Deus, é o Corpo de Cristo, a Eucaristia é a paz de Deus com o homem. Sabemos que São João, no Prólogo, chama a humanidade de Jesus "a tenda de Deus", eskenosen en hemin (Jo 1, 14). Aqui o próprio Deus criou a sua tenda no mundo e esta tenda, esta nova, verdadeira Jerusalém está, ao mesmo tempo, na terra e no céu, porque este Sacramento, este sacrifício se realiza sempre entre nós e chega sempre até ao trono da Graça, à presença de Deus. Aqui é a verdadeira Jerusalém, ao mesmo tempo, celeste e terrestre, a tenda, que é o Corpo de Deus, que como Corpo ressuscitado permanece sempre Corpo e abraça a humanidade e, ao mesmo tempo, sendo Corpo ressuscitado, nos une com Deus. Tudo isto se realiza sempre de novo na Eucaristia. E nós como sacerdotes somos chamados a ser ministros deste grande Mistério, no Sacramento e na vida. Peçamos ao Senhor que nos faça compreender cada vez melhor este Mistério, que nos faça viver cada vez melhor este Mistério e deste modo oferecer a nossa ajuda para que o mundo se abra a Deus, a fim de que o mundo seja remido.
Bento XVI(resumo)
SP

segunda-feira, 15 de março de 2010

Ponte entre Deus e os Homens I


Um sacerdote, para ser realmente mediador entre Deus e o homem, deve ser homem. Isto é fundamental, e o Filho de Deus fez-se homem precisamente para ser sacerdote, para poder realizar a missão do sacerdote. Deve ser homem, mas não pode sozinho fazer-se mediador com Deus. O sacerdote precisa de uma autorização de uma instituição divina, e só pertencendo às duas esferas, a de Deus e a do homem, pode ser mediador, pode ser "ponte". É esta a missão do sacerdote: combinar, relacionar estas duas realidades aparentemente tão separadas, isto é, o mundo de Deus distante de nós, muitas vezes desconhecido do homem, e o nosso mundo humano. A missão do sacerdócio é a de ser mediador, ponte que une, e assim levar o homem a Deus, à sua redenção, à sua verdadeira luz, à sua verdadeira vida. Por conseguinte, como primeiro ponto o sacerdote deve estar da parte de Deus, e unicamente em Cristo esta necessidade, esta condição da mediação, é plenamente realizada. Por isso, era necessário este Mistério: o Filho de Deus faz-se homem para que exista a verdadeira ponte, a verdadeira mediação. Os outros devem ter pelo menos uma autorização de Deus ou, no caso da Igreja, o Sacramento, isto é, introduzir o nosso ser no ser de Cristo, no ser divino. Só com o Sacramento, com este acto divino que nos cria sacerdotes na comunhão com Cristo, podemos realizar a nossa missão. Ninguém se faz sacerdote por si mesmo; só Deus me pode atrair, pode autorizar-me, pode induzir-me à participação no mistério de Cristo; só Deus pode entrar na minha vida e pegar-me pela mão.
Tornemos esta realidade também um factor prático da nossa vida: se é assim, um sacerdote deve ser realmente um homem de Deus, deve conhecer Deus de perto, e conhece-o em comunhão com Cristo. Então devemos viver esta comunhão e a celebração da Santa Missa, a oração do Breviário, toda a oração pessoal, são elementos do ser com Deus, do ser homens de Deus. O nosso ser, a nossa vida, o nosso coração devem ser fixados em Deus, neste ponto do qual não devemos sair, e isto realiza-se, fortalece-se dia após dia, também com breves orações com as quais nos relacionamos com Deus e nos tornamos cada vez mais homens de Deus, que vivem na sua comunhão e assim podem falar de Deus e guiar para Deus. O outro elemento é que o sacerdote deve ser homem. Homem em todos os sentidos, isto é, deve viver uma verdadeira humanidade, um verdadeiro humanismo; deve ter uma educação, uma formação humana, virtudes humanas; deve desenvolver a sua inteligência, a sua vontade, os seus sentimentos, os seus afectos; deve ser realmente homem, homem segundo a vontade do Criador, do Redentor, porque sabemos que o ser humano está ferido e a questão de "o que é o homem" é obscurecida pelo facto do pecado, que ofendeu a natureza humana até às suas profundezas. Assim diz-se: "mentiu", "é humano"; "roubou", "é humano"; mas não é este o verdadeiro ser humano. Humano é ser generoso, é ser bom, é ser homem da justiça, da prudência verdadeira e da sabedoria. Por conseguinte, sair com a ajuda de Cristo deste obscurecimento da nossa natureza para alcançar o verdadeiro ser humano à imagem de Deus, é um processo de vida que deve começar pela formação para o sacerdócio, mas que se deve realizar depois e prosseguir em toda a nossa existência. Penso que as duas coisas caminhem fundamentalmente juntas: ser de Deus e com Deus e ser realmente homem, no verdadeiro sentido que o Criador quis, plasmando esta criatura que somos nós.
Ser homem: a Carta aos Hebreus faz um realce da nossa humanidade que nos surpreende, porque diz: deve ser um que "pode compadecer-se dos ignorantes e dos que erram, pois também ele está cercado de fraqueza" (5, 2) e depois ainda muito mais forte "quando vivia na carne, ofereceu, com grande clamor e lágrimas, orações e súplicas Àquele que O podia salvar da morte, e foi atendido pela Sua piedade" (5, 7). Para a Carta aos Hebreus é elemento essencial do nosso ser humano a compaixão, o sofrer com os outros: esta é a verdadeira humanidade. Não é o pecado, porque o pecado nunca é solidariedade, mas é sempre uma não-solidariedade, um tomar a vida para mim mesmo, em vez de a doar. A verdadeira humanidade é participar realmente no sofrimento do ser humano, significa ser um homem de compaixão metriopathein, diz o texto grego isto é, estar no centro da paixão humana, carregar realmente com os outros os seus sofrimentos, as tentações deste tempo: "Deus, onde estás neste mundo?".


Bento XVI

SP

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Ecologia Humana


É cada vez mais claro que o tema da degradação ambiental põe em questão os comportamentos de cada um de nós, os estilos de vida e os modelos de consumo e de produção hoje dominantes, muitas vezes insustentáveis do ponto de vista social, ambiental e até económico. Torna-se indispensável uma real mudança de mentalidade que induza a todos a adoptarem novos estilos de vida, "nos quais a busca do verdadeiro, do belo e do bom e a comunhão com os outros homens, em ordem ao crescimento comum, sejam os elementos que determinam as opções do consumo, da poupança e do investimento". Deve-se educar cada vez mais para se construir a paz a partir de opções clarividentes a nível pessoal, familiar, comunitário e político. Todos somos responsáveis pela protecção e cuidado da criação. Tal responsabilidade não conhece fronteiras. Segundo o princípio de subsidiariedade, é importante que cada um, no nível que lhe corresponde, se comprometa a trabalhar para que deixem de prevalecer os interesses particulares. Um papel de sensibilização e formação compete de modo particular aos vários sujeitos da sociedade civil e às organizações não-governamentais, empenhados com determinação e generosidade na difusão de uma responsabilidade ecológica, que deveria aparecer cada vez mais ancorada ao respeito pela "ecologia humana". Além disso, é preciso lembrar a responsabilidade dos meios de comunicação social neste âmbito, propondo modelos positivos que sirvam de inspiração. É que ocupar-se do ambiente requer uma visão larga e global do mundo; um esforço comum e responsável a fim de passar de uma lógica centrada sobre o interesse egoísta da nação para uma visão que sempre abrace as necessidades de todos os povos. Não podemos permanecer indiferentes àquilo que sucede ao nosso redor, porque a deterioração de uma parte qualquer do mundo recairia sobre todos. As relações entre pessoas, grupos sociais e Estados, bem como as relações entre homem e ambiente são chamadas a assumir o estilo do respeito e da "caridade na verdade". Neste contexto alargado, é altamente desejável que encontrem eficaz correspondência os esforços da comunidade internacional que visam obter um progressivo desarmamento e um mundo sem armas nucleares, cuja mera presença ameaça a vida da terra e o processo de desenvolvimento integral da humanidade actual e futura.
A Igreja tem a sua parte de responsabilidade pela criação e sente que a deve exercer também em âmbito público, para defender a terra, a água e o ar, dádivas feitas por Deus Criador a todos, e antes de tudo para proteger o homem contra o perigo da destruição de si mesmo. Com efeito, a degradação da natureza está intimamente ligada à cultura que molda a convivência humana, pelo que, "quando a "ecologia humana" é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ecologia ambiental". Não se pode pedir aos jovens que respeitem o ambiente, se não são ajudados, em família e na sociedade, a respeitar-se a si mesmos: o livro da natureza é único, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a da ética pessoal, familiar e social. Os deveres para com o ambiente derivam dos deveres para com a pessoa considerada em si mesma e no seu relacionamento com os outros. Por isso, de bom grado encorajo a educação para uma responsabilidade ecológica, que, como indiquei na encíclica Caritas in veritate, salvaguarde uma autêntica "ecologia humana" e consequentemente afirme, com renovada convicção, a inviolabilidade da vida humana em todas as suas fases e condições, a dignidade da pessoa e a missão insubstituível da família, onde se educa para o amor ao próximo e o respeito da natureza. É preciso preservar o património humano da sociedade. Este património de valores tem a sua origem e está inscrito na lei moral natural, que é fundamento do respeito da pessoa humana e da criação.

Bento XVI
SP

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Apelo aos Artistas III


Estas últimas expressões levam-nos a dar um passo em frente na nossa reflexão. A beleza que se manifesta na criação e na natureza e que se expressa através das criações artísticas, precisamente pela sua característica de abrir e alargar os horizontes da consciência humana, de remetê-la para além de si mesma, de aproximá-la ao abismo do Infinito, pode tornar-se um caminho para o Transcendente, para o Mistério último, para Deus. A arte, em todas as suas expressões, no momento em que se confronta com as grandes interrogações da existência, com os temas fundamentais dos quais deriva o sentido do viver, pode assumir um valor religioso e transformar-se num percurso de profunda reflexão interior e de espiritualidade. Esta afinidade, esta sintonia entre percurso de fé e itinerário artístico, confirma-a um número incalculável de obras de arte que têm como protagonistas as personagens, as histórias, os símbolos daquele imenso depósito de "figuras" em sentido lato que é a Bíblia, a Sagrada Escritura. As grandes narrações bíblicas, os temas, as imagens, as parábolas inspiraram numerosas obras-primas em todos os sectores das artes, assim como falaram ao coração de cada geração de crentes mediante as obras do artesanato e da arte local, não menos eloquentes e envolvedoras.
Fala-se, a este propósito, de uma via pulchritudinis, um caminho da beleza que constitui ao mesmo tempo um percurso artístico, estético, e um itinerário de fé, de busca teológica. O teólogo Hans Urs von Balthasar começa a sua grande obra intitulada Glória. Uma estética teológica com estas sugestivas expressões:"A nossa palavra inicial chama-se beleza. A beleza é a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar, porque ela mais não faz do que coroar, como auréola de esplendor inapreensível, o dúplice astro do verdadeiro e do bem e a sua indissolúvel relação". Depois observa: "Ela é a beleza desinteressada sem a qual o velho mundo era incapaz de se entender, mas que se despediu em ponta de pés do mundo moderno dos interesses, para o abandonar à sua cupidez e à sua tristeza. Ela é a beleza que já não é amada e conservada nem sequer pela religião". E conclui: "Quem, em seu nome, enruga os lábios ao sorriso, julgando-a um objecto exótico de um passado burguês, dele se pode estar certo que secreta ou abertamente já não é capaz de rezar e, em breve, nem sequer de amar". Portanto, o caminho da beleza conduz-nos a colher o Tudo no fragmento, o Infinito no finito, Deus na história da humanidade. Simone Weil escreveu a este propósito: "Em tudo o que suscita em nós o sentimento puro e autêntico da beleza, há realmente a presença de Deus. Há quase uma espécie de encarnação de Deus no mundo, da qual a beleza é o sinal. A beleza é a prova experimental de que a encarnação é possível. Por isso qualquer arte de categoria é, por sua essência, religiosa". É ainda mais icástica a afirmação de Hermann Hesse: "Arte significa: dentro de tudo mostrar Deus". Fazendo eco às palavras do Papa Paulo VI, o Servo de Deus João Paulo II reafirmou o desejo da Igreja de renovar o diálogo e a colaboração com os artistas: "Para transmitir a mensagem que lhes foi confiada por Cristo, a Igreja precisa da arte" (Carta aos Artistas, n. 12); mas perguntava logo a seguir: "A arte precisa da Igreja?", solicitando assim os artistas a reencontrar na experiência religiosa, na revelação cristã e no "grande códice" que é a Bíblia uma fonte de inspiração renovada e motivada.
Queridos Artistas, encaminhando-me para a conclusão, gostaria de vos dirigir também eu, como já fez o meu Predecessor, um cordial, amistoso e apaixonado apelo. Vós sois guardiães da beleza; vós tendes, graças ao vosso talento, a possibilidade de falar ao coração da humanidade, de tocar a sensibilidade individual e colectiva, de suscitar sonhos e esperanças, de ampliar os horizontes do conhecimento e do empenho humano. Sede portanto gratos pelos dons recebidos e plenamente conscientes da grande responsabilidade de comunicar a beleza, de fazer comunicar na beleza e através da beleza! Sede também vós, através da vossa arte, anunciadores e testemunhas de esperança para a humanidade! E não tenhais medo de vos confrontar com a fonte primeira e última da beleza, de dialogar com os crentes, com quem, como vós, se sente peregrino no mundo e na história rumo à Beleza infinita! A fé nada tira ao vosso génio, à vossa arte; aliás, exalta-os e alimenta-os, encoraja-os a cruzar o limiar e a contemplar com olhos fascinados e comovidos a meta última e definitiva, o sol sem ocaso que ilumina e torna belo o presente. Santo Agostinho, cantor apaixonado da beleza, reflectindo sobre o destino último do homem e quase comentando ante litteram a cena do Juízo que hoje tendes diante dos vossos olhos, escrevia assim: "Gozaremos, portanto de uma visão, ó irmãos, jamais contemplada pelos olhos, jamais ouvida pelos ouvidos, jamais imaginada pela fantasia: uma visão que supera todas as belezas terrenas, do ouro, da prata, dos bosques e dos campos, do mar e do céu, do sol e da lua, das estrelas e dos anjos; a razão é esta: que ela é a fonte de qualquer outra beleza" (In Ep. Jo. Tr. 4, 5: pl 35, 2008). Desejo que todos vós, queridos Artistas, tenhais nos vossos olhos, nas vossas mãos, no vosso coração esta visão, para que vos dê alegria e inspire sempre as vossas belas obras. Ao abençoar-vos de coração, saúdo-vos, como já fez Paulo VI, com uma só expressão: até breve!


Bento XVI

SP

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Apelo aos Artistas II


Roualt

Aquele histórico encontro, como dizia, aconteceu aqui, neste santuário de fé e de criatividade humana. Não é portanto casual este nosso reencontro, precisamente neste lugar, precioso pela sua arquitectura e pelas suas dimensões simbólicas, mas ainda mais pelos afrescos que o tornam inconfundível, começando pelas obras-primas de Perugino e Botticelli, Ghirlandaio e Cosimo Rosselli, Luca Signorelli e outros, para chegar às Histórias do Génesis e ao Juízo Final, obras excelsas de Michelangelo Buonarroti, que deixou aqui uma das criações mais extraordinárias de toda a história da arte. Ressoou aqui também com frequência a linguagem universal da música, graças ao génio de grandes músicos, que puseram a sua arte ao serviço da liturgia, ajudando a alma a elevar-se a Deus. Ao mesmo tempo, a Capela Sistina é um escrínio singular de memórias, porque constitui o cenário, solene e austero, de eventos que marcam a história da Igreja e da humanidade. Aqui, como sabeis, o Colégio dos cardeais elege o Papa; aqui vivi também eu, com trepidação e absoluta confiança no Senhor, o momento inesquecível da minha eleição para sucessor do Apóstolo Pedro.
Queridos amigos, deixemos que estes afrescos hoje nos falem, atraindo-nos para a meta última da história humana. O Juízo Final, que sobressai atrás de mim, recorda que a história da humanidade é movimento e elevação, é inesgotável tensão para a plenitude, para a felicidade última, para um horizonte que excede sempre o presente enquanto o atravessa. Mas na sua dramaticidade, este afresco coloca diante dos nossos olhos também o perigo da queda definitiva do homem, ameaça que domina a humanidade quando se deixa seduzir pelas forças do mal. Por isso, o afresco lança um forte grito profético contra o mal, contra qualquer forma de injustiça. Mas para os crentes, Cristo ressuscitado é o Caminho, a Verdade e a Vida. Para quem o segue fielmente é a Porta que introduz naquele "face a face", naquela visão de Deus da qual brota já sem limites a felicidade plena e definitiva. Michelangelo oferece assim à nossa visão o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim da história, e convida-nos a percorrer com alegria, coragem e esperança o itinerário da vida. A dramática beleza da pintura de Michelangelo, com as suas cores e formas, torna-se portanto anúncio de esperança, convite poderoso a elevar o olhar rumo ao horizonte último. O vínculo profundo entre beleza e esperança constituía também o núcleo essencial da sugestiva Mensagem que Paulo VI enviou aos artistas no encerramento do Concílio Vaticano II, a 8 de Dezembro de 1965: "A todos vós proclamou solenemente a Igreja do Concílio diz com a nossa voz: se vós sois os amigos da verdadeira arte, sois nossos amigos!" (Enchiridion Vaticanum, 1, p. 305). E acrescentou: "Este mundo no qual vivemos precisa de beleza para não precipitar no desespero. A beleza, como a verdade, é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos... Recordai-vos que sois os guardiães da beleza no mundo" (Ibid.).
Infelizmente, o momento actual está marcado não só por fenómenos negativos a nível social e económico, mas também por um esmorecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas relações humanas, e por isso crescem os sinais de resignação, agressividade e desespero. Depois, o mundo no qual vivemos corre o risco de mudar o seu rosto devido à obra nem sempre sábia do homem o qual, em vez de cultivar a sua beleza, explora sem consciência os recursos do planeta para vantagem de poucos e não raramente desfigura as suas maravilhas naturais. O que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a experiência do belo, do belo autêntico, não efémero nem superficial, não é algo acessório ou secundário na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a vida quotidiana, para o libertar da obscuridade e o transfigurar, para o tornar luminoso, belo.
De facto, uma função essencial da verdadeira beleza, já evidenciada por Platão, consiste em comunicar ao homem um "sobressalto" saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o quotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente desta forma o "desperta", abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o. A expressão de Dostoievsky que vou citar é, sem dúvida, ousada e paradoxal, mas convida a reflectir: "A humanidade pode viver”, diz ele, “sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência. A busca da beleza da qual falo, evidentemente, não consiste em fuga alguma no irracional ou no mero esteticismo.
Mas, com muita frequência, a beleza propagada é ilusória e falsa, superficial e sedutora até ao aturdimento e, em vez de fazer sair os homens de si e de os abrir a horizontes de verdadeira liberdade, atraindo-os para o alto, aprisiona-os em si mesmos e torna-os ainda mais escravos, privados de esperança e de alegria. Trata-se de uma beleza sedutora mas hipócrita, que desperta a cupidez, a vontade de poder, de posse, de prepotência sobre o outro e que se transforma, muito depressa, no seu contrário, assumindo o rosto do obsceno, da transgressão ou da provocação gratuita. Ao contrário, a autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si. Se aceitamos que a beleza nos toque intimamente, nos fira, nos abra os olhos, então redescobrimos a alegria da visão, da capacidade de colher o sentido profundo do nosso existir, o Mistério do qual somos parte e do qual podemos haurir a plenitude, a felicidade, a paixão do compromisso quotidiano. João Paulo II, na Carta aos Artistas, cita, a este propósito, este verso de um poeta polaco, Cyprian Norwid: "A beleza serve para entusiasmar para o trabalho, / o trabalho serve para ressurgir" (n. 3). E mais adiante acrescenta: "Enquanto busca da beleza, fruto de uma imaginação que vai além do quotidiano, a arte é, por sua natureza, uma espécie de apelo ao Mistério. Enquanto perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos mais perturbadores do mal, o artista torna-se de certa forma voz da expectativa universal de redenção" (n. 10). E na conclusão afirma: "A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente" (n. 16). (cont.)





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