quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Apelo aos Artistas II


Roualt

Aquele histórico encontro, como dizia, aconteceu aqui, neste santuário de fé e de criatividade humana. Não é portanto casual este nosso reencontro, precisamente neste lugar, precioso pela sua arquitectura e pelas suas dimensões simbólicas, mas ainda mais pelos afrescos que o tornam inconfundível, começando pelas obras-primas de Perugino e Botticelli, Ghirlandaio e Cosimo Rosselli, Luca Signorelli e outros, para chegar às Histórias do Génesis e ao Juízo Final, obras excelsas de Michelangelo Buonarroti, que deixou aqui uma das criações mais extraordinárias de toda a história da arte. Ressoou aqui também com frequência a linguagem universal da música, graças ao génio de grandes músicos, que puseram a sua arte ao serviço da liturgia, ajudando a alma a elevar-se a Deus. Ao mesmo tempo, a Capela Sistina é um escrínio singular de memórias, porque constitui o cenário, solene e austero, de eventos que marcam a história da Igreja e da humanidade. Aqui, como sabeis, o Colégio dos cardeais elege o Papa; aqui vivi também eu, com trepidação e absoluta confiança no Senhor, o momento inesquecível da minha eleição para sucessor do Apóstolo Pedro.
Queridos amigos, deixemos que estes afrescos hoje nos falem, atraindo-nos para a meta última da história humana. O Juízo Final, que sobressai atrás de mim, recorda que a história da humanidade é movimento e elevação, é inesgotável tensão para a plenitude, para a felicidade última, para um horizonte que excede sempre o presente enquanto o atravessa. Mas na sua dramaticidade, este afresco coloca diante dos nossos olhos também o perigo da queda definitiva do homem, ameaça que domina a humanidade quando se deixa seduzir pelas forças do mal. Por isso, o afresco lança um forte grito profético contra o mal, contra qualquer forma de injustiça. Mas para os crentes, Cristo ressuscitado é o Caminho, a Verdade e a Vida. Para quem o segue fielmente é a Porta que introduz naquele "face a face", naquela visão de Deus da qual brota já sem limites a felicidade plena e definitiva. Michelangelo oferece assim à nossa visão o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim da história, e convida-nos a percorrer com alegria, coragem e esperança o itinerário da vida. A dramática beleza da pintura de Michelangelo, com as suas cores e formas, torna-se portanto anúncio de esperança, convite poderoso a elevar o olhar rumo ao horizonte último. O vínculo profundo entre beleza e esperança constituía também o núcleo essencial da sugestiva Mensagem que Paulo VI enviou aos artistas no encerramento do Concílio Vaticano II, a 8 de Dezembro de 1965: "A todos vós proclamou solenemente a Igreja do Concílio diz com a nossa voz: se vós sois os amigos da verdadeira arte, sois nossos amigos!" (Enchiridion Vaticanum, 1, p. 305). E acrescentou: "Este mundo no qual vivemos precisa de beleza para não precipitar no desespero. A beleza, como a verdade, é o que infunde alegria no coração dos homens, é aquele fruto precioso que resiste ao desgaste do tempo, que une as gerações e as faz comunicar na admiração. E isto graças às vossas mãos... Recordai-vos que sois os guardiães da beleza no mundo" (Ibid.).
Infelizmente, o momento actual está marcado não só por fenómenos negativos a nível social e económico, mas também por um esmorecimento da esperança, por uma certa desconfiança nas relações humanas, e por isso crescem os sinais de resignação, agressividade e desespero. Depois, o mundo no qual vivemos corre o risco de mudar o seu rosto devido à obra nem sempre sábia do homem o qual, em vez de cultivar a sua beleza, explora sem consciência os recursos do planeta para vantagem de poucos e não raramente desfigura as suas maravilhas naturais. O que pode voltar a dar entusiasmo e confiança, o que pode encorajar o ânimo humano a reencontrar o caminho, a elevar o olhar para o horizonte, a sonhar uma vida digna da sua vocação, a não ser a beleza? Vós bem sabeis, queridos artistas, que a experiência do belo, do belo autêntico, não efémero nem superficial, não é algo acessório ou secundário na busca do sentido e da felicidade, porque esta experiência não afasta da realidade, mas, ao contrário, leva a um confronto cerrado com a vida quotidiana, para o libertar da obscuridade e o transfigurar, para o tornar luminoso, belo.
De facto, uma função essencial da verdadeira beleza, já evidenciada por Platão, consiste em comunicar ao homem um "sobressalto" saudável, que o faz sair de si mesmo, o arranca à resignação ao conformar-se com o quotidiano, fá-lo também sofrer, como uma seta que o fere, mas precisamente desta forma o "desperta", abrindo-lhe de novo os olhos do coração e da mente, pondo-lhe asas, elevando-o. A expressão de Dostoievsky que vou citar é, sem dúvida, ousada e paradoxal, mas convida a reflectir: "A humanidade pode viver”, diz ele, “sem a ciência, pode viver sem pão, mas unicamente sem a beleza já não poderia viver, porque nada mais haveria para fazer no mundo. Qualquer segredo consiste nisto, toda a história consiste nisto". Faz-lhe eco o pintor Georges Braque: "A arte existe para perturbar, enquanto a ciência tranquiliza". A beleza chama a atenção, mas precisamente assim recorda ao homem o seu destino último, volta a pô-lo em marcha, enche-o de nova esperança, dá-lhe a coragem de viver até ao fim o dom único da existência. A busca da beleza da qual falo, evidentemente, não consiste em fuga alguma no irracional ou no mero esteticismo.
Mas, com muita frequência, a beleza propagada é ilusória e falsa, superficial e sedutora até ao aturdimento e, em vez de fazer sair os homens de si e de os abrir a horizontes de verdadeira liberdade, atraindo-os para o alto, aprisiona-os em si mesmos e torna-os ainda mais escravos, privados de esperança e de alegria. Trata-se de uma beleza sedutora mas hipócrita, que desperta a cupidez, a vontade de poder, de posse, de prepotência sobre o outro e que se transforma, muito depressa, no seu contrário, assumindo o rosto do obsceno, da transgressão ou da provocação gratuita. Ao contrário, a autêntica beleza abre o coração humano à nostalgia, ao desejo profundo de conhecer, de amar, de ir para o Alto, para o Além de si. Se aceitamos que a beleza nos toque intimamente, nos fira, nos abra os olhos, então redescobrimos a alegria da visão, da capacidade de colher o sentido profundo do nosso existir, o Mistério do qual somos parte e do qual podemos haurir a plenitude, a felicidade, a paixão do compromisso quotidiano. João Paulo II, na Carta aos Artistas, cita, a este propósito, este verso de um poeta polaco, Cyprian Norwid: "A beleza serve para entusiasmar para o trabalho, / o trabalho serve para ressurgir" (n. 3). E mais adiante acrescenta: "Enquanto busca da beleza, fruto de uma imaginação que vai além do quotidiano, a arte é, por sua natureza, uma espécie de apelo ao Mistério. Enquanto perscruta as profundezas mais obscuras da alma ou os aspectos mais perturbadores do mal, o artista torna-se de certa forma voz da expectativa universal de redenção" (n. 10). E na conclusão afirma: "A beleza é chave do mistério e apelo ao transcendente" (n. 16). (cont.)





SP

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