sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A todos os santos no seu dia


Para comemorar o dia de todos os santos, coloco hoje este belíssimo poema. Belíssimo pela extrema simplicidade e pela piedade que revela, pela profunda consciência do que é a comunhão dos santos. Tão belo que mereceu fazer parte do Breviário que os sacerdotes, e não só, todos os dias rezam.




SONETO


Companheiros de Cristo, que plantastes
No mundo a sua fé, nada temendo,
E a verdade, que fostes estendendo,
Com obras milagrosas confirmastes;

Mártires, que por ele derramastes
O vosso sangue, alegres padecendo;
Doutores, que pregando e escrevendo,
O caminho do céu nos ensinastes;

Virgens, que em vossa verde e tenra idade,
Por seu amor sofrestes ferro e fogo;
A todos peço, neste vosso dia,

Que todos me ajudeis com vosso rogo,
Diante da divina majestade,
Tomando por terceira a Virgem pia.

Diogo Bernardes, Rimas Várias, Flores do Lima


[Silva Pereira]

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Moral Racional II


Para além da questão da compatibilidade entre ética religiosa e ética secular, uma outra, particularmente importante, tem sido bastante discutida nos últimos tempos: a de saber se a ética religiosa – mais concretamente, a ética cristã, a que passo a referir-me – difere ou não, quanto ao conteúdo, da ética puramente racional ou “humana”.
Deixando de lado certas precisões que requeririam mais amplos desenvolvimentos, parece haver consenso generalizado na afirmação da substancial identidade de conteúdo quanto às normas operativas. Tudo o que se preceitua em nome do Deus de Jesus Cristo pode justificar-se do ponto de vista da verdade do homem, e tudo o que a recta razão humana prescreve é coerente com a verdade da fé cristã. Do ponto de vista de conteúdos normativos, não haveria uma aportação específica do Cristianismo à ética. O Cristianismo deixa subsistir a moral humana na sua autonomia, mas “transfigura” esta moral(X. Thévenot). A “diferença” cristã não se traduz em normas éticas que só pertencem ao Cristianismo; a lei do Cristianismo assume a lei natural. A teonomia funda a autonomia humana e põe-na no seu lugar quando tende a idolatrar-se. A moral cristã poderá sempre apresentar razões das suas posições, razões acessíveis a qualquer não cristão ou não crente, uma vez que, segundo S. Tomás, Suárez, Domingos de Soto e muitos outros autores escolásticos, todos os preceitos morais se encontram na lei moral natural[1]
Contrariamente ao que talvez algumas pessoas pensem, não se encontram nos textos da Revelação judaico-cristã normas determinadas(preceitos concretos) acerca de todos os problemas morais, muito menos dos mais modernos, nomeadamente os que são estudados em bioética. Mais: num certo sentido, não se encontram na Escritura nenhumas normas morais operativas[2], entendendo por tal normas que são suficientes para dirigir a prática.
E não só isso: mesmo nos casos em que tal parece acontecer – ou seja, nos casos em que parecem encontrar-se na Escritura normas morais concretas - serão de evitar, na leitura dessas passagens, tendências fundamentalistas desrespeitadoras das mais elementares exigências da exegese, desatendendo, nomeadamente, à diferença entre discurso doutrinal e discurso parenético ou exortatório: as exortações morais que encontramos na Escritura – sede generosos, esmoleres, solícitos do bem dos irmãos, etc., - não são imediatamente praticáveis, cabendo a cada um ver e decidir, em cada contexto de circunstâncias em que se encontrar, se é momento de dar esmola, de estar no lugar de trabalho ou em convívio familiar, etc.
É indiscutível que o cristão recebe da Revelação uma luz – a “luz do Evangelho” a que se refere a Constituição Gaudium et Spes (nº 46) do Vaticano II – e uma graça que são, certamente, de grande ajuda, mas que não lhe fornecem directamente qualquer norma concreta de agir nem lhe poupam o trabalho de reflexão, ponderação e informação, requerido aos seus semelhantes não cristãos. Significativamente, o citado documento do Vaticano II associa à luz do Evangelho a experiência humana: “o Concílio dirige agora a atenção de todos, à luz do Evangelho e da experiência humana, para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo”.
Uma palavra se deverá ainda dizer acerca do papel do Magistério na determinação da moral cristã e das suas aplicações aos problemas que vão surgindo. Tema vasto e que importaria tratar com maior desenvolvimento. Na impossibilidade de o fazer convenientemente neste momento, limito-me a chamar a atenção para um ponto que me parece de especial importância, embora nem sempre seja suficientemente atendido. Refiro-me à notável diferença, já acima referida, que existe entre discurso ou proposições de fé e proposições morais e, em consequência de tal diferença, à diferente autoridade doutrinal do Magistério, num e noutro campo[3].
Notemos o seguinte: uma vez que a fé exige anuência a uma dimensão da realidade que seria incognoscível sem a Revelação, a sua expressão tem de recorrer a conceitos análogos, não unívocos. As proposições normativas que regulam o agir humano, pelo contrário, deverão ter carácter unívoco. Existem mistérios da fé, mas não pode haver normas éticas misteriosas, normas cujo conteúdo obrigatório se não possa determinar positiva, compreensível e univocamente com vistas ao agir humano. É de fundamental relevância essa diferença formal entre artigos de fé e sentenças de ética normativa. Compreender o que se deve fazer é parte constitutiva do agir humano responsável, apesar de ser apenas um dos seus aspectos, embora fundamental.[4]
Em consequência desta diferença entre proposição de fé e proposição moral, a competência do Magistério em matéria de ética normativa do agir intra-mundano não é a mesma que em matéria de fé. Como acertadamente observa Franz Böckle, “qualquer decisão doutrinal sobre determinada questão objectiva da razão ética não pode ser imposta obrigatoriamente mediante simples acto da autoridade, mas, por princípio, há-de ser demonstrável através de argumentos”;[5] e acrescenta com razão: “os argumentos pesam tanto quanto provam”.
O que de modo algum significa ignorar ou minimizar a inegável importância da intervenção do Magistério na clarificação das exigências morais. Reafirmando essa importância - por diversas razões que, de momento, não explicito -, penso dever manter a afirmação de que a competência do Magistério em matéria moral não é a mesma que em matéria de fé, e que as suas afirmações têm fundamentalmente o valor das razões que apresenta – razões de si acessíveis à mente humana, sem recurso à Revelação.[6]
Do que acima ficou brevemente dito, parece-me poder-se concluir que não podem ser objecto de definição dogmática opiniões morais operativas concretas.[7]
Termino mencionando – apenas mencionando – um último assunto, que não deveria ser omitido numa consideração suficientemente completa do tema do presente artigo: refiro-me ao problema – aos problemas, seria melhor dizer – que o pluralismo de opiniões morais, vigente nas nossas sociedades, constitui e que se reflecte, nomeadamente, no trabalho das Comissões de Ética e na actividade dos legisladores.
Embora sem o tratar, não podia deixar de o mencionar.


Roque Cabral S. J., em Brotéria 166(Fevereiro 2008)

[1] Suma Teológica 1-2,100, 1 e 108, 2 ad lum.
[2] J. Blank, “Considerações sobre o problema das 'normas éticas' no NT”, Concilium 5(1967),10-12; Josef Fuchs, Etica cristiana in una società secolarizzata, Roma, Piemme, 1984; D. Mieth, F. Compagnoni (Hrsg.), Ethik im Kontext des Glaubens, Freibug i. Br., 1978.
[3] Franz Böckle, “Fé e Ato”, Concilium 10(1976), 1147-1158.
[4] Ibidem, 1150-1151.
[5] Ibidem, 1156.
[6] O que também não equivale a negar a necessidade moral da Revelação para se chegar – com segurança e relativa facilidade, como se referiu o Vaticano I – a certas compreensões que de si não ultrapassam a capacidade da razão humana; e menos significa ignorar a necessidade da graça sanante para o conhecimento. Como muitos moralistas, penso que a tradição teológica afirma que a moral da revelação é a verdadeira moral da razão, confirmada, precisamente, desse modo. Assim leio, por exemplo, o que diz S. Tomás acerca da lei divina (Suma Teológica 1-2, 98ss), seguido por autores da Segunda Escolástica como Domingos de Soto e Francisco Suárez.
[7] Embora não tratando directamente deste assunto, são muito esclarecedoras as páginas em que J. Fuchs – adoptando uma posição diferente da que exprimira em Lex Naturae(1955), pp. 158ss. e Theologia Moralis Generalis I (1963), p. 85 – examina se as verdades morais são ou não “verdades de salvação”: “Verità morali – vertà di salveza?”, c. IV de Etica cristiana in una società secolarizzata


[Silva Pereira]