quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Desceu do Céu


Mas para alcançar a salvação, é necessário ainda crer fielmente na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A rectidão da nossa fé consiste, pois, em crer ainda e confessar que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem.

É Deus, gerado da substância do Pai desde toda a eternidade; é homem porque, no tempo, nasceu da substância de sua Mãe.

Deus perfeito e homem perfeito, com alma racional e carne humana.

Igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai, segundo a humanidade.
E ainda que seja Deus e homem, todavia não são dois, mas um só Cristo;

É um, não porque a Divindade se tenha convertido em humanidade, mas porque Deus assumiu a humanidade.

Um, finalmente, não por confusão de substâncias, mas pela unidade da Pessoa.

Porque, assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim também a divindade e a humanidade formam um só Cristo.

Do símbolo de Santo AtanásioSP

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A Alegria do Natal

Master of Moulins, c. 1480

A mãe Igreja, enquanto nos acompanha rumo ao Santo Natal, ajuda-nos a redescobrir o sentido e o gosto da alegria cristã, tão diversa da alegria do mundo. Neste domingo, segundo uma bonita tradição, as crianças de Roma vêm para fazer benzer pelo Papa as imagens do Menino Jesus que colocarão nos presépios.
É para mim motivo de alegria saber que nas vossas famílias se conserva o hábito de fazer o presépio. Mas não é suficiente repetir um gesto tradicional, embora seja importante. É preciso procurar viver na realidade de todos os dias aquilo que o presépio representa, isto é, o amor de Cristo, a sua humildade, a sua pobreza. Foi o que fez São Francisco em Greccio: representou ao vivo o cenário da Natividade, para a poder contemplar e adorar, mas sobretudo para saber pôr mais em prática a mensagem do Filho de Deus que, por amor a nós, se despojou de tudo e se fez menino.
A Bênção dos "Bambinelli", como se diz em Roma, recorda-nos que o presépio é uma escola de vida, da qual podemos aprender o segredo da verdadeira alegria. Ela não consiste em ter muitas coisas, mas em sentir-se amado pelo Senhor, em fazer-se dom para os outros e em querer-se bem. Olhemos para o presépio: Nossa Senhora e São José não parecem ser uma família coroada de êxito. Tiveram o seu primogénito entre grandes indigências. Contudo, estão repletos de alegria interior, porque se amam, se ajudam e, sobretudo, porque estão certos de que, na sua história, é Deus quem age, o Qual se fez presente no pequenino Jesus. E os pastores? Que motivo teriam para se alegrar? Aquele recém-nascido não mudará certamente a sua condição de pobreza nem de marginalização. Mas a fé ajuda-os a reconhecer no "menino envolvido em panos, e colocado numa manjedoura" o "sinal" do cumprimento, também para eles, das promessas de Deus para todos os homens "que Ele ama" (Lc 2, 12-14).
Eis, queridos amigos, em que consiste a verdadeira alegria: é sentir que a nossa existência pessoal e comunitária é visitada e colmada por um grande mistério, o mistério do amor de Deus. Para rejubilar, precisamos não só de coisas, mas de amor e de verdade, precisamos de um Deus próximo que conforta o nosso coração e responde às nossas profundas expectativas. Este Deus manifestou-se em Jesus, nascido da Virgem Maria. Por isso, aquele Menino, que colocamos na cabana ou na gruta, é o centro de tudo, é o coração do mundo. Rezemos para que cada homem, como a Virgem Maria, possa acolher, como centro da própria vida, o Deus que se fez Menino, fonte da verdadeira alegria.

Bento XVI

SP

sábado, 12 de dezembro de 2009

Reflexão teológica

Velazquez,1618. S. João Evangelista em Patmos

Extractos da homilia improvisada por Bento XVI, durante a Missa, na manhã de 1 de Dezembro, na Capela Paulina, na presença dos participantes na sessão plenária da Comissão Teológica Internacional.

As palavras do Senhor, que há pouco ouvimos no trecho evangélico, são um desafio para nós teólogos, ou talvez para dizer melhor, um convite a um exame de consciência: o que é a teologia? O que somos nós, teólogos? Como fazer bem teologia? Ouvimos que o Senhor louva o Pai porque escondeu o grande mistério do Filho, o mistério trinitário, o mistério cristológico, aos sábios, aos doutos. Eles não o conheceram, mas revelou-o aos pequeninos, aos népioi, àqueles que não são doutos, que não têm uma grande cultura. Com estas palavras, o Senhor descreve simplesmente um facto da sua vida, um facto que começa já na época do seu nascimento, quando os Magos do Oriente perguntam aos competentes, aos escribas, aos exegetas, o lugar do nascimento do Salvador, do Rei de Israel. Os escribas sabem-no, porque são grandes especialistas. Podem dizer imediatamente onde nasce o Messias: em Belém! Mas não se sentem convidados a ir. Para eles é um conhecimento académico que não diz respeito à sua vida. Permanecem fora. Podem dar informações, mas a informação não se torna formação da própria vida.
Os acontecimentos essenciais da vida de Jesus não pertencem unicamente ao passado, mas estão presentes, de vários modos, em todas as gerações. Também na nossa época, nos últimos duzentos anos, observamos a mesma coisa. Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura, da história da salvação, mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo: que Jesus era realmente Filho de Deus, que Deus trinitário entra na nossa história, num determinado momento histórico, num homem como nós. O essencial permaneceu escondido! Poder-se-iam citar facilmente grandes nomes da história da teologia destes duzentos anos, dos quais aprendemos muito, mas o mistério não foi aberto aos olhos do seu coração.
De tudo isto nasce a pergunta: por que é assim? É o cristianismo a religião dos néscios, das pessoas sem cultura, não formadas? Apaga-se a fé onde se desperta a razão? Como se explica isto? Talvez tenhamos que olhar mais uma vez para a história. Permanece verdadeiro o que Jesus disse, aquilo que se pode observar em todos os séculos. E todavia, existe uma "espécie" de pequeninos que são inclusive doutos. Aos pés da cruz encontra-se Nossa Senhora, a humilde serva de Deus, a grande mulher iluminada por Deus. E encontra-se também João, pescador do lago da Galileia, mas é aquele João que será justamente chamado pela Igreja "o teólogo", porque realmente soube ver o mistério de Deus e anunciá-lo: com olhos de águia, entrou na luz inacessível do mistério divino.
Sobressai o facto de que existe um uso dúplice da razão e uma maneira dupla de ser sábio ou pequenino. Há um modo de utilizar a razão que é autónomo, que se põe acima de Deus, em toda a gama das ciências, a começar pelas naturais, onde é universalizado um método adequado para a pesquisa da matéria: Deus não faz parte deste método, portanto Deus não existe. Assim também na teologia: pesca-se nas águas da Sagrada Escritura com uma rede que permite capturar somente peixes de uma certa medida, e aquilo que vai além desta medida não entra na rede e, por conseguinte, não pode existir.
Assim o grande mistério de Jesus, do Filho que se fez homem, reduz-se a um Jesus histórico: uma figura trágica, um fantasma sem carne nem ossos, um homem que permaneceu no sepulcro, que se corrompeu e é realmente um morto. O método sabe "capturar" certos peixes, mas exclui o grande mistério, porque o homem se faz ele mesmo a medida. Possui esta soberba, que é contemporaneamente uma grande loucura, porque torna absolutos certos métodos não adequados às grandes realidades. Entra neste espírito académico que vimos nos escribas, os quais respondem aos Reis magos: não me diz respeito. Permaneço fechado na minha existência, que não é tocada. É a especialização que vê todos os pormenores, mas já não vê a totalidade.
Existe o outro modo de utilizar a razão, de ser sábio: a do homem que reconhece quem é. Reconhece a própria medida e a grandeza de Deus, abrindo-se na humildade à novidade do agir de Deus. Assim, precisamente aceitando a sua pequenez, fazendo-se pequenino como realmente é, chega à verdade. Desta maneira, também a razão pode expressar todas as suas possibilidades, não é anulada, mas amplia-se, torna-se maior. Trata-se de outra sofia e sínesis, que não exclui o mistério, mas é precisamente comunhão com o Senhor, em quem repousam a sapiência e a sabedoria, e a sua verdade.
Neste momento, queremos rezar ao Senhor a fim de que nos conceda a verdadeira humildade. Que nos conceda ser pequeninos, para sermos realmente sábios; nos ilumine, nos faça ver o seu mistério do júbilo do Espírito Santo, nos ajude a ser verdadeiros teólogos, que podem anunciar o seu mistério porque foram tocados na profundidade do seu coração, da sua existência. Amém.

SP

sábado, 5 de dezembro de 2009

O Pardal


A ladroagem descarada talvez não tenha representantes mais conhecidos do que estes bandos grulhentos que rondam searas e portais de habitações e, ao roubarem biscato, abalam como que em grande risotada. Desconfiadíssimos, podemos granizá-los, mas em vão se lhes arma a costela ou o boiz; não caem, com o olhinho finório examinam tudo, achegam-se com passinho miúdo e trémulo à côdea ou à espiga e, num último relance, a ver se vem gente, bicam-na e eles aí vão cheios de consciência de ladros e a rir-se de laços e cadeias.
Têm psicologia de contrabandistas; misturam-se com as outras aves, mas são de um egoísmo feroz. Roubar e comer são os dois parágrafos do seu código. De resto, nem se divertem nem solfejam coisa de jeito; possuídos de má consciência, andam sempre disparados da seara para os tectos e se vão beber água há-de ser em charca muito quieta e erma.
E os ninhos? Ninham nas árvores, mas sobretudo nos telhados. Metem-se por sob as telhas e fazem uns berços razoáveis onde quatro, cinco, até seis bicos se abrem com voracidade nativa. Os pais acarretam todo o dia a rapinagem variada. Mas aí, nesse trabalho de alimentação, é que revelam o fraco bestunto que lhes assiste. Na empena dos telhados, com o bico cheio, alguns levam uma espiga inteira, ficam a esguardar à direita e à esquerda, enfiam pelas telhas e repartem os ganhos. O dono do palheiro e os gatos vizinhos observam aquelas idas e vindas e vão por dentro, sobem ao tecto e topam com pratadas de carne fresca a chamar o arroz de forno. O bichano põe-se a engordar e ostenta uns bigodes mais fartos e risonhos que os dos brasileiros de torna-viagem do fim do século passado. Roubado o primeiro ninho, os pardais não choram, fazem logo outro e, daí a dias, outra pratada de carne não tabelada espera o gato ou os galfarros do agrícola que anda nervoso com os estragos na seara. Gordos e cozidos com arroz, dispensam o palito dos dentes e dão euforia às sestas do verão.
Em bando, quando desabam sobre os trigos, fazem prejuízo de vulto; nos viveiros de hortaliça, então, levam tudo a eito, e se os não chumbam, o lavrador não tem que transplantar e anda esmorecido com estes demónios. É verdade que fez uns espantalhos de braços abertos e chapéu na cabeça. No primeiro dia, a pardalada rondou incerta e observante. No segundo, já poisavam em cacho sobre o mostrengo e não queriam outro poleiro, rindo-se do ardil com redobrada malícia.
A psicologia dos pardais anda muito dentro da psique humana. Ladronicos a retalho, gente que maquia o devido ao próximo, vendedores miúdos que ludibriam as leis, até o fingido mendigo que faz beicinho miserando e tem no bolso do colete uma continha calada – todos esses são de raça pardalina.
Ides a um café e a chávena vem meia. Mandais a moenda à pedra alveira e notais que a maquia foi demais. Comprais fazenda para um fato e o casaco aperta-vos e a calça saiu curta. Estes roubos pardalares deixam muito contentes os ratoneiros que ostentam sempre a cara mais patusca e, ao serem objurgados, riem bonacheironamente e armam em admirados das calúnias que vão pelo mundo. (...)
É ave sem encantos embora use uma gravatinha enxovalhada como os ciganitos vendedores de relógios e de lapiseiras... acabadas de chegar do Cairo! Os pardais constituem uma democracia de fraca organização e escassa exemplaridade. A criminalidade é alarmante, mas de fraco calibre. Condenamo-la e rimo-nos dela com riso involuntário quando ajuizamos de fulano com esta interjeição: - olha que pardal!

João Maia, O Livro dos Animais
SP

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Samaritana


Centremos, primeiro, a nossa atenção nos seres humanos. A samaritana é uma jovem que vem à fonte, bonita, elegantemente vestida. Repare-se no pormenor da cintura subida. Mulher sedutora, já tivera cinco maridos, e o que tinha então não era dela.
De acordo com o evangelho, Cristo está sentado, descansando, mas aqui veste à maneira de peregrino: chapéu na cabeça, bordão na mão direita, calçado leve e alforge a tiracolo. Está de passagem. Caminha, evangelizando.
O cão, também repousando, do lado de Cristo, não será apenas um pormenor decorativo. Simboliza a virtude da fidelidade, precisamente o que Jesus, conhecedor da psicologia feminina, promete à samaritana: um amor eterno, uma fidelidade perfeita.
A paisagem em que se desenrolou a cena evangélica não deveria ser tão verdejante. Aqui se revela, porém, outra originalidade da pintura. Vemos árvores frondosas, arbustos, verdura pelo chão, aves voando, um palácio, representando a cidade. Vemos, não um poço, mas um fontanário barroco com golfinhos na base e ostentando, no alto, um pequeno Cupido. À maneira arcádica, combinando tradição greco-romana com a mensagem cristã, o artista situou o episódio num ambiente iconograficamente próximo das representações do Jardim do Amor.
Ao fazê-lo, captou o essencial da cena. O episódio da samaritana é, precisamente, a promessa de uma água que mata para sempre a nossa sede de amor, de um amor absolutamente perfeito, por isso mesmo imortal. É a promessa do regresso ao Jardim do Éden.

Fé e Arte


Nas catequeses das semanas passadas apresentei alguns aspectos da teologia medieval. Mas a fé cristã, profundamente arraigada nos homens e nas mulheres destes séculos, não deu origem somente a obras-primas da literatura teológica, do pensamento e da fé. Ela inspirou também uma das criações artísticas mais elevadas da civilização universal: as catedrais, verdadeira glória da Idade Média cristã. Com efeito, durante cerca de três séculos, a partir do início do século XI, assistiu-se na Europa a um ardor artístico extraordinário. Um antigo cronista descreve assim o entusiasmo e o labor daquela época: "Verificou-se que no mundo inteiro, mas especialmente na Itália e nas Gálias, se começou a reconstruir as igrejas, embora muitas, por estar ainda em boas condições, não tivessem necessidade de tal restauro. Era como uma competição entre um povo e outro; acreditava-se que o mundo, libertando-se dos velhos trapos, queria revestir-se em toda a parte com a veste branca de novas igrejas. Em síntese, quase todas as igrejas catedrais, um grande número de igrejas monásticas e até oratórios de aldeia, foram então restauradas pelos fiéis" (Rodolfo o Glabro, Historiarum 3,4).
Vários factores contribuíram para este renascimento da arquitectura religiosa. Em primeiro lugar, condições históricas mais favoráveis, como uma maior segurança política, acompanhada por um aumento constante da população e pelo progressivo desenvolvimento das cidades, dos intercâmbios e da riqueza. Além disso, os arquitectos encontravam soluções técnicas cada vez mais elaboradas para aumentar as dimensões dos edifícios, garantindo ao mesmo tempo a sua solidez e majestade. Porém, foi principalmente graças ao ardor e ao zelo espiritual do monaquismo em plena expansão que foram construídas igrejas abaciais, onde a liturgia podia ser celebrada com dignidade e solenidade, e os fiéis podiam deter-se em oração, atraídos pela veneração das relíquias dos santos, meta de peregrinações incessantes. Nasceram assim as igrejas e as catedrais românicas, caracterizadas pelo desenvolvimento longitudinal, em comprimento, das naves para acolher numerosos fiéis; igrejas muito sólidas, com muros espessos, abóbadas em pedra e linhas simples e essenciais. Uma novidade é representada pela introdução das esculturas. Dado que as igrejas românicas eram lugar de oração monástica e de culto dos fiéis, os escultores, mais do que preocupar-se com a perfeição técnica, prestaram atenção sobretudo à finalidade educativa. Uma vez que era necessário suscitar nas almas impressões fortes, sentimentos que pudessem impelir a evitar o vício, o mal, e a praticar as virtudes, o bem, o tema recorrente era a representação de Cristo como Juiz universal, circundado pelas personagens do Apocalipse. Em geral, são os pórticos das igrejas românicas que oferecem esta representação, para sublinhar que Cristo é a Porta que conduz ao Céu. Os fiéis, cruzando o limiar do edifício sagrado, entram num tempo e num espaço diferentes dos da vida comum. Para além do pórtico da igreja, os crentes em Cristo, soberano, justo e misericordioso, na intenção dos artistas, podiam saborear uma antecipação da bem-aventurança eterna na celebração da liturgia e nos gestos de piedade no interior do edifício sagrado.
Nos séculos XII e XIII, a partir do norte da França, difundiu-se outro tipo de arquitectura na construção dos edifícios sagrados, a gótica, com duas características novas em relação ao românico, ou seja, o impulso vertical e a luminosidade. As catedrais góticas mostravam uma síntese de fé e de arte harmoniosamente expressa através da linguagem universal e fascinante da beleza, que ainda hoje suscita admiração. Graças à introdução das abóbadas em ogiva, que se apoiavam sobre pilares robustos, foi possível elevar notavelmente a sua altura. O impulso rumo ao alto queria convidar à oração e ele mesmo era uma prece. A catedral gótica tencionava traduzir assim, nas suas linhas arquitectónicas, a aspiração das almas por Deus. Além disso, com as novas soluções técnicas adoptadas, as paredes podiam ser perfuradas e adornadas com vitrais policromáticos. Em síntese, as janelas tornavam-se grandes imagens luminosas, muito aptas para instruir o povo na fé. Nelas, cena por cena, eram narrados a vida de um santo, uma parábola ou outros acontecimentos bíblicos. Dos vitrais pintados, uma cascata de luz derramava-se sobre os fiéis para lhes narrar a história da salvação e para os envolver nesta história.
Outra qualidade das catedrais góticas é constituída pelo facto de que na sua construção e decoração, de modo diferente mas coral, participava toda a comunidade cristã e civil; participavam os humildes e os poderosos, os analfabetos e os doutos, porque nesta casa comum todos os crentes eram instruídos na fé. A escultura gótica fez das catedrais uma "Bíblia de pedra", representando os episódios do Evangelho e explicando os conteúdos do ano litúrgico, da Natividade à Glorificação do Senhor. Além disso, nesses séculos difundia-se cada vez mais a percepção da humanidade do Senhor, e os padecimentos da sua Paixão eram representados de modo realista: Cristo sofredor (Christus patiens) tornou-se uma imagem amada por todos, e apta para inspirar piedade e arrependimento pelos pecados. Também não faltavam as personagens do Antigo Testamento, cuja história se tornou assim familiar para os fiéis que frequentavam as catedrais, como parte da única, comum, história de salvação. Com os seus rostos cheios de beleza, de docilidade e de inteligência, a escultura gótica do século XIII revela uma piedade ditosa e tranquila, que se alegra por efundir uma devoção sentida e filial pela Mãe de Deus, vista às vezes como uma jovem mulher, risonha e materna, e principalmente representada como a soberana do céu e da terra, poderosa e misericordiosa. Os fiéis que apinhavam as catedrais góticas gostavam de encontrar aí também expressões artísticas que recordassem os santos, modelos de vida cristã e intercessores junto de Deus. E não faltavam manifestações "laicas" da existência; eis então que aparecem, aqui e ali, representações do trabalho dos campos, das ciências e das artes. Tudo era orientado e oferecido a Deus, no lugar onde se celebrava a liturgia. Podemos compreender melhor o sentido que era atribuído a uma catedral gótica, considerando o texto da inscrição gravada no pórtico central de Saint-Denis, em Paris: "Viandante, que queres louvar a beleza destes pórticos, não te deixes ofuscar pelo ouro, nem pela magnificência, mas sobretudo pelo trabalho cansativo. Aqui brilha uma obra famosa, mas queira o céu que esta obra famosa que brilha faça resplandecer os espíritos, a fim de que com as verdades luminosas se encaminhem para a verdadeira luz, onde Cristo é a verdadeira porta".
Caros irmãos e irmãs, apraz-me frisar agora dois elementos da arte românica e gótica, úteis também para nós. O primeiro: as obras-primas artísticas surgidas na Europa nos séculos passados são incompreensíveis, se não se tem em consideração a alma religiosa que as inspirou. Um artista que sempre deu testemunho do encontro entre estética e fé, Marc Chagall, escreveu que "os pintores durante séculos banharam o seu pincel naquele alfabeto colorido que era a Bíblia". Quando a fé, particularmente celebrada na liturgia, encontra a arte, cria-se uma profunda sintonia, porque ambas podem e querem falar de Deus, tornando visível o Invisível. Gostaria de compartilhar isto no encontro com os artistas, de 21 de Novembro, renovando-lhes aquela proposta de amizade entre a espiritualidade cristã e a arte, desejada pelos meus venerados Predecessores, em particular pelos Servos de Deus Paulo VI e João Paulo II. O segundo elemento: a força do estilo românico e o esplendor das catedrais góticas recordam-nos que a via pulchritudinis, o caminho da beleza, é um percurso privilegiado e fascinante para nos aproximarmos do Mistério de Deus. O que é a beleza que escritores, poetas, músicos e artistas contemplam e traduzem na sua linguagem, a não ser o reflexo do esplendor do Verbo eterno que se fez carne? Santo Agostinho afirma: "Interroga a beleza da terra, interroga a beleza do mar, interroga a beleza do ar difundida e diluída. Interroga a beleza do céu, interroga a ordem das estrelas, interroga o sol, que com o seu esplendor ilumina o dia; interroga a lua, que com o seu clarão modera as trevas da noite. Interroga os animais que se movem na água, que caminham na terra, que voam pelos ares: almas que se escondem, corpos que se mostram; visível que se faz guiar, invisível que guia. Interroga-os! Todos te responderão: Olha-nos, somos belos! A sua beleza fá-los conhecer. Quem foi que criou esta beleza mutável, a não ser a Beleza Imutável?" (Sermo CCXLI, 2: pl 38, 1134).
Estimados irmãos e irmãs, que o Senhor nos ajude a redescobrir o caminho da beleza como um dos itinerários, talvez o mais atraente e fascinante, para conseguir encontrar e amar a Deus.

Bento XVI

SP

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Peneireiro


Esta ave, desconfio que os meus leitores não a conhecem. Talvez a confundam com o milhafre ou milhano, se olharem apenas a roupa. Como ela voa alto, maior perigo de confusão. É ave de rapina e veste uma camisola pardacenta. Nas aldeias sertanejas disputa as capoeiras com o milhano. Não que as assalte como a raposa matreira. Mas acontece que a galinha se arrisca pelo vale abaixo, pelos matos, onde a bicheza é copiosa.
E logo vos direi como caça o peneireiro. O milhafre, ao ver a galinha, despenha-se em linha recta, arpoa e some-se nas nuvens. O peneireiro, ou por guloso, ou por desconfiado, usa estratégia diferente. Deve ter lido os livros de caça do rei D. Duarte e de outros reis e monteiros e aplica as teorias que já vêm de Assurbanípal.
O peneireiro ergue-se a pino sobre brenhas e pinhais. Quase se imobiliza com um jeito trémulo de asas e daí lhe vem o nome. Fica a peneirar uma farinha que não se vê e vem a ser a sua manha de salteador com todos os preparativos. Ali fica a sacudir as asas, a travar o voo. Está a sondar os matagais, a ver onde os coelhos penduram as flanelas, onde a fuinha mexerica, onde os passarinhos rasteiros têm o ninho. E escolhe a presa consoante o apetite e o capricho. Feita a escolha, desaba como um raio e a vítima nem tempo tem de soltar o ai dos infelizes. Não ameaça, não amedronta, parece mesmo que anda de gorra com os geógrafos de teodolito a fazer o levantamento das terras. Os bichos curiosos de o verem parado em pleno ar põem-se a espreitar. É o que ele quer. Parece mesmo dizer lá de cima: - venham ver esta prova de saltimbanco, venham que eu já vos dou o arroz!
O resultado destas artes é que anda sempre bem almoçado. Se a galinha se arrisca pelo vale adiante, o maroto não peneira muito os ares. Escolhe o pintainho mais gordote e leva-o no bico com amofinamento da galinha que olha os vastos céus inacessíveis.
Digam-me agora se não há homens com psicologia de peneireiros! Andamos todos, uns mais que os outros, atarefados na brenha social. Erguemos, de quando em vez, os olhos ao céu e lá vemos um peneireiro a escolher a vítima. Peneira os ares tão docemente, parece tão inofensivo que a vítima até lhe entra no jogo, até o louva e celebra. Às vezes por sobre a vida individual de cada um de nós ouvimos o ruflar do peneireiro, do explorador, do manhoso de maus fígados, escondido em jeitos de acrobata para nos divertir antes da guinada mortal. Do milhafre todos se acautelam. E a não se conhecer o bandido, as culpas são sempre para o milhano.
O peneireiro só quer observar, divertir os tristes. Nos adjuntos humanos há uma categoria de peneireiro de uma esperteza fugidiça ao olho dos psicólogos. São os que querem que outros tirem as castanhas do lume. Tendes aí um júri, vá por exemplo, reunido para deliberação. O peneireiro ergue voo e fica a planear sobre os alvitres. – A si que lhe parece? – Eu, diz o peneireiro, parece-me que nem sim nem não, antes pelo contrário! Vêem-no? Está a planar. Surge um parecer bem escorado em razões, bem raciocinado, ao qual se não pode escapar. O peneireiro desaba em vertical, arpoa o parecer e fá-lo dele. Os jornais da tarde noticiam que foi ele que teve a ideia!
No Congresso de Viena de 1815, o peneireiro era Talleyrand, não obstante a perna manca ou talvez por isso. E desde então, por sobre as sessões conjuntas de ministros, por sobre os areópagos internacionais, por sobre os céus que recobrem a O.N.U., plana sempre um peneireiro a ver qual é o frango mais desamparado.
É claro que o peneireiro está sentado entre as casacas pretas, cá em baixo, mas o seu espírito paira lá em cima e peneira razões e alvitres à espera do momento oportuno. A psicologia do peneireiro infiltrou-se nos políticos de segundas intenções, que têm mãos de Esaú e voz de Jacob; e querer compreender a política de hoje sem conhecer o peneireiro é querer remover o Himalaia com o palito dos dentes.
Por conselho caseiro dizemos que é bom vistoriar os céus de tempos a tempos. Não pedimos dinheiro pelo conselho, mas se uma chumbada prostrar o peneireiro, cozam-no com arroz e ponham lá mais um garfo na mesa. Não falto.

João Maia, O Livro dos Animais
SP

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"Casamento" gay e referendo


O artigo 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem consagra que o homem e a mulher têm o direito de casar e constituir família e acrescenta que "a família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado". Sendo de Direito Natural, não era preciso que o afirmasse. O preceito traduz a realidade quantas vezes dita, ouvida, proclamada, repetida, no elenco dos direitos humanos fundamentais: a família é a célula-base da sociedade. Mas, positivistas que andamos, é melhor tê-lo claramente consagrado na Declaração Universal, cujos sessenta anos celebrámos com entusiasmo há um ano e para cujo valor jurídico interno a nossa Constituição também remete expressamente.
O primeiro-ministro, com o país e os portugueses assolados por tantos problemas e dificuldades, decidiu anunciar que quer promover legislação para instituir "o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo". E tem a acompanhá-lo na aventura, que os promotores dessa agenda designaram de "fracturante", a movimentação do BE e do PEV, que já apresentaram projectos de lei de alteração do Código Civil com aquele alcance.
Aqui chegados, uma das questões que se põem é a de saber se o quadro político actual tem legitimidade de decisão política para operar uma transformação com aquela dimensão, sem primeiro consultar o povo em referendo. Não tem.
Executar uma transformação tão radical na célula estruturante da sociedade, sem ao menos ouvir a sociedade e esta se pronunciar claramente, constituiria uma violência legislativa. E violência tanto mais brutal quanto mais se pretendesse, como alguns parecem, passar apressadamente pelo assunto como cão por vinha vindimada.
Seria grave que o Estado violasse o dever de proteger a família como elemento natural e fundamental da sociedade. Pior ainda, se negasse e impedisse a sociedade de o poder fazer.
A Assembleia da República tem legitimidade formal - não o questiono. Tem-na sempre sobre qualquer matéria que se enquadre nas suas competências; e tem-na até exclusivamente, mesmo com referendo, pois o referendo não é instrumento do poder legislativo.
A legitimidade de que falo é de legitimidade material, substantiva, uma legitimidade democrática genuína. E essas, quanto a este tema, não moram nem no Governo, nem no actual quadro parlamentar, se não houver, ao menos, um referendo prévio que suportasse directa e claramente aquele propósito.
Na resposta à questão contemporânea das uniões homossexuais, há diferentes modelos. O modelo radical e extremista é o de, sob vendaval ideológico, capturar a própria noção e palavra "casamento", alterando por completo o conceito e a estrutura longamente estabelecidos da família. Muito poucos países foram por aí. E, quando aqui se chega, o referendo é sempre exigível, como tem acontecido em muitos Estados.
Não é legítimo mexer na célula fundamental da sociedade, na sua noção matricial - e, portanto também, na sua natureza, conteúdo e identidade -, sem ao menos perguntar o que pensa a sociedade e se o quer. Dificilmente, aliás, haverá matéria mais típica de referendo: porque se trata justamente de uma questão de sociedade; e, sendo a família anterior ao Estado, o Estado não pode, não deve, mexer na sua identidade sem ouvir directamente a sociedade.
Acresce que não é verdade que os portugueses tivessem expressado nas últimas eleições a sua vontade na questão. Além de esta ter estado praticamente ausente da campanha, não há tão-pouco maioria de representação de partidos que tivessem assumido programaticamente o tema. De todos, apenas o BE incluiu o propósito legislativo claro de revolucionar o conceito de casamento de forma a incluir as uniões homossexuais e fazendo-o com os efeitos inerentes, nomeadamente quanto à adopção. O PS incluiu o tema do casamento, mas não o da adopção - o que cria um outro problema, mais grave. E o PCP ou a CDU nada disseram especificamente.
Mas o problema quanto ao PS, que quer liderar, é maior. No plano constitucional, por força da norma de não discriminação em razão da orientação sexual, é cristalino que a modificação da noção de casamento arrastaria necessariamente como consequência jurídica imediata a questão da adopção, bem como todas as matérias (e são inúmeras) que estão referidas ao casamento.
Hoje, não existe qualquer inconstitucionalidade, como o Tribunal Constitucional já declarou, uma vez que o casamento é - sempre foi - uma união de homem e mulher. Não há desigualdade, mas especificidade. Mas, se, em engenharia jurídica estratégica, fosse mudada a noção de casamento para corresponder a uma outra coisa, tornar-se-ia gritantemente inconstitucional, quanto à adopção ou qualquer outra matéria, discriminar o estatuto jurídico dos novos "casados" porque uns "casados" fossem de uma orientação sexual e outros doutra.
E, por isso, o primeiro-ministro, ao ter reconhecido expressamente no Parlamento que não possui qualquer mandato quanto à adopção por uniões homossexuais, está a reconhecer implicitamente que também não tem mandato real, legítimo, quanto ao casamento - uma vez que este arrasta inexoravelmente aquela.
Seria grave para uma maioria parlamentar ad hoc - e bem pior para um Governo digno e responsável - avançar de forma obscura e furtiva, sobretudo em matéria de tanta sensibilidade e tão vastas implicações, ao modo de "adopção escondida com casamento de fora". E também por isto, a questão não pode deixar de ser colocada, directamente, sem ambiguidades, nem reservas mentais, à cidadania, para que discuta abertamente e decida o que entende, o que pensa, o que quer.



Ribeiro e Castro, deputado do CDS-PP, in Público, 16.11.2009


SP

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Homossexualidade e desagregação familiar


A homossexualidade não é congénita. As vivências da infância influem no seu aparecimento.

Um estudo baseado em dois milhões de pessoas já assinalava, em 2006, que as experiências familiares na infância influem na orientação sexual.

O estudo foi publicado no número de Outubro de 2006 da revista Archives of Sexual Behavior, a partir dos dados de dois milhões de pessoas nascidas na Dinamarca, com idade entre os 18 e os 49 anos. A Dinamarca, país tolerante com todo o tipo de estilos de vida alternativos, foi o primeiro país a legalizar as uniões homossexuais e tem estatísticas completas sobre uniões do mesmo sexo desde 1989.

O problema de muitos estudos sobre orientação sexual é a selecção da amostra. Neste caso, a selecção incluiu a imensa maioria da população adulta dinamarquesa, sendo portanto uma amostra enormemente significativa. “O nosso estudo apresenta a evidência prospectiva, baseada na população, de que as experiências familiares infantis são factores determinantes na decisão de contrair matrimónio homossexual ou heterossexual na vida adulta”, diziam os autores do estudo.
O estudo assume que as pessoas em uniões do mesmo sexo são homossexuais, e que os casais heterossexuais são de pessoas heterossexuais.

As relações observadas são as seguintes:

1 – Os homens que “se casam” com outros homens têm mais possibilidades de terem sido criados numa família com relações parentais instáveis (pais ausentes, desconhecidos ou divorciados).

2- Também nas uniões lésbicas se observa uma relação com a infância marcada por desagregação familiar. Dão-se especialmente entre mulheres “que experimentaram a morte da mãe durante a adolescência, casamentos efémeros dos pais, e em mulheres que viveram só com o pai, com ausência prolongada da mãe”.

3- Homens e mulheres de “pais desconhecidos” tinham menos possibilidades de casar-se com alguém do sexo oposto do que os que tinham pai conhecido.

4- Os homens que passaram pela experiência da morte do pai durante a infância ou a adolescência “tinham índices de casamento heterossexual significativamente mais baixos do que aqueles que, por altura dos 18 anos, tinham ambos os pais vivos. Quanto mais cedo morria o pai, menor possibilidade de casamento heterossexual”.

5- Os índices de casais homossexuais eram 36% (para homens) e 26% (para mulheres) mais altos entre aqueles que viveram o divórcio dos pais quando tinham menos de 6 anos de casados do que entre aqueles cujos pais estiveram casados durante os 18 anos da infância e adolescência.

6 – Os homens cujos pais se divorciaram antes de fazerem 6 anos tinham 39% mais de possibilidades de casar-se com outros homens do que os filhos de casais não divorciados.

7- Os homens cuja convivência com ambos os pais terminou antes dos 18 anos tinham entre 55% e 76% mais possibilidades de casar-se com outros homens do que aqueles que viveram com os pais até aos 18 anos.

8- Ser filho único aumenta o risco de homossexualidade. Também o aumenta a idade da mãe. Quanto mais velha for a mãe, maior será a possibilidade de união homossexual dos filhos.

9- Os que nasceram em grandes cidades tinham maior possibilidade de unir-se a uma pessoa do mesmo sexo.

"Quaisquer que sejam os ingredientes que determinam as preferências sexuais e matrimoniais de uma pessoa”, diziam os investigadores, “o nosso estudo baseado na população mostra que as interacções parentais são importantes”.

Morten Frisch y Anders Hviid, "Childhood Family Correlates of Heterosexual and Homosexual Marriages: A National Cohort Study of Two Million Danes", in Archives of Sexual Behavior, 13 de Outubro 2006.
Tradução e adaptação livre de Forum Libertas
SP

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Homossexualidade e adopção

Yves Klein, Antropometria

O neologismo “parentalidade” – funcionalista e gerador de confusão – tem por ofício disfarçar as implicações, necessariamente sexuadas, ligadas a este termo. Enquanto “parental” pode ser entendido numa pseudoneutralidade, “pais” significa “pai” e “mãe”, implicando necessariamente um homem e uma mulher, a menos que o sentido das palavras da língua venha a diluir-se totalmente. Mesmo que se tenha em conta a importância das mediações simbólicas e racionais, a fundamentação corporal da paternidade num corpo masculino e da maternidade num corpo feminino é um dado irredutível e estruturante.
Ouvimos, por vezes, dizer que se a criança tem necessidade de duas (ou várias) referências identificadoras diferenciadas, estas podem ser exteriores ao núcleo familiar. Sem dúvida; mas tomar por secundário o facto de esses dois modelos serem, ou não, os seres pelos quais a criança está em relação com a sua origem, é uma abordagem bastante superficial. Que situações diferentes, na sequência dos percalços da vida, aconteçam e devam ser acompanhadas é uma coisa; que esta privação seja instituída, à escala colectiva e a priori, para milhares de crianças, é outra, e é moralmente inaceitável.
À ideologia “homoparental” preside uma lógica de dissociação entre parentalidade e paternidade, portanto, mas também entre sexualidade e filiação, entre casal e procriação e até entre procriação e filiação(...). É preciso ver que a cada um dessas dissociações corresponde uma descontinuidade na história da criança. No caso da adopção, à separação entre pais naturais e pais adoptivos – o que já é uma dificuldade – vem juntar-se o facto de o casal dos segundos não ser análogo ao casal dos primeiros. No entanto, esta analogia tem um valor preciso para o filho: os pais adoptivos são incarnados, são carnais. Eles são, carnalmente, pai e mãe. E é importante que o sejam. Na falta deles, à descontinuidade da adopção vem juntar-se, para o filho, a da distorção das referências parentais.

Xavier Lacroix, A Confusão dos Géneros
SP

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Destruição da palavra


- Como vai o dicionário? – perguntou Winston, levantando a voz para se fazer ouvir.
- Devagar – respondeu Syme. – Estou nos adjectivos. É fascinante.
O rosto iluminara-se-lhe imediatamente com a menção da Novilíngua. Empurrou a marmita para o lado, apanhou com as mãos delicadas o cubo de queijo e o pedaço de pão, e inclinou-se sobre a mesa para poder falar sem gritar.
- A 11ª edição será definitiva – disse ele. – Estamos a dar à língua a sua forma final – a forma que terá quando mais ninguém falar outra coisa. Quando tivermos terminado, pessoas como tu terão de aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é a destruir palavras – às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos a reduzir a língua à expressão mais simples. A 11ª edição não conterá uma única palavra que possa tornar-se obsoleta antes de 2050.
Mordeu vorazmente o pão e engoliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.
- É lindo destruir palavras. Naturalmente a maior parte é nos verbos e adjectivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinónimos; os antónimos também. Afinal de contas, que justificação há para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. “Bom”, por exemplo. Se temos a palavra “bom” para que precisamos de “mau”? “Inbom” faz o mesmo efeito – e melhor, porque é exactamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais incisiva para dizer “bom”, para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como “excelente”, “esplêndido”, etc. e tal? “Plusbom” corresponde à necessidade, ou “dupliplusbom”, se queres alguma coisa ainda mais forte. Naturalmente já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras – ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente foi ideia do Grande Irmão – acrescentou à guisa de conclusão.
Uma ténue ansiedade perpassou pelo rosto de Winston à menção do Grande Irmão. Não obstante isso, Syme imediatamente observou nele uma certa falta de entusiasmo.
- Não aprecias realmente a Novilíngua, Winston – disse, quase com tristeza. – Mesmo quando escreves em Novilíngua pensas na antiga. Tenho lido artigos teus no Times. São bons, mas são traduções. No teu coração havias de preferir a Anticlíngua, com toda a sua imprecisão e as suas inúteis gradações de sentido. Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do Mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?
Winston naturalmente não sabia. Sorriu, com ar de simpatia (ao que esperava), não confiando nas suas próprias palavras. Syme mordiscou outro fragmento do pão escuro, mastigou-o um pouco e continuou:
- Não vês que todo o objectivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos o crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para o expressar. Todos os conceitos necessários serão expressos exactamente por uma palavra de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Na 11ª edição já não estamos longe disso. Mas o processo continuará ainda muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menos. Naturalmente, mesmo no nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer um crimideia. É apenas uma questão de disciplina, contrôle da realidade. Mas no futuro nem sequer será preciso isso. A Revolução completar-se-á quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua –acrescentou com uma espécie de satisfação mística. – Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa palestra?
- Excepto... – começou Winston, em tom de dúvida, mas parou de repente.
Estivera quase a dizer “Excepto os proles”, mas dominou-se sem ter plena certeza de que essa observação fosse ortodoxa. Syme, todavia, adivinhara o que ele quisera dizer.
- Os proles não são seres humanos – disse ele descuidado. – Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron, só existirão em versões da Novilíngua, não apenas tornados em alguma coisa diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão” se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar de pensar. Ortodoxia é inconsciência.

George Orwell, 1984

SP

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Amália Rodrigues


Durante o cortejo fúnebre, algumas pessoas entoavam os seus fados, como se, misteriosamente, nelas tivesse encarnado. E até certo ponto era verdade porque nós vamos guardar na alma, por muito tempo, aquela cujo canto era também o nosso canto. Parecia uma solista, mas não era. Naquela garganta cantava um coro de milhões de vozes. Todos nós cantámos com ela, abalados até à raiz do coração. Amália conquistou o nosso amor ou, ao menos, o nosso respeito e admiração; o nosso e o de quantos, pelo mundo fora, a escutaram. Era universal, como universal é toda a grande arte. Transcendia a barreira das línguas, as distâncias culturais. O seu canto soava a puro canto. Quase podíamos prescindir das palavras. Bastava a melodia, o calor vibrante da voz, a sua tremenda força expressiva para a entendermos. Digo tremenda porque verdadeiramente nos fazia tremer de emoção e prazer estético.
Nunca ouvi cantar Amália ao vivo. Nunca a vi senão em fotografia ou na televisão, como a maior parte dos portugueses. E, no entanto, era-nos íntima. Fazia parte de todas as famílias. O seu modo de ser aproximava-a do povo comum. Tinha as suas raízes na província, como quase todos nós. A infância foi difícil, mas desde muito jovem começou a subir aos palcos da glória, como muitos de nós sonhamos. Gostava de dizer que não tinha instrução, que não sabia cantar, que não era culta nem inteligente, que pertencia, enfim, a um povo que lavava no rio, que vendia fruta ou flores ou peixe no mercado, que matava a fome com um punhado de tremoços; um povo que, na sua maioria, não teve oportunidade de estudar e por isso não pôde aceder ao estatuto próprio dos letrados. E, no entanto, sabia responder com prontidão e viveza, umas vezes com humor, outras com subtil e certeiríssima ironia, mesmo aos mais cultos, aos mais poderosos, os quais acabaram, estou em crer que sem hipocrisia ou oportunismo, por ir beijar-lhe a mão.
Deixou a imagem de mulher compassiva e solidária, que se comove com o sofrimento dos outros e acorre às suas necessidades; mulher sofrida que desabafa a dor e a saudade, que enfrenta o destino adverso, as penas do amor e os tormentos da morte; uma mulher que pretende, mais que riqueza ou glória, o afecto de quem a ouve; que canta de rosto erguido, como quem afirma a dignidade do ser humano, mesmo do mais desgraçado; que canta de olhos fechados pela força do sentimento ou intensidade da prece.
O canto de Amália parecia, muitas vezes, senão sempre, uma oração. E era, com certeza. Não foi por acaso que, de acordo com a sua vontade, se ouviu dentro da Basílica da Estrela, um fado seu, na hora da despedida. Quis significar a dimensão religiosa de toda a sua arte. Quis falar com Deus, no momento supremo, com a sua melhor e mais intensa linguagem. Quis aparecer, cantando, na presença de Deus, como que restituindo ao Criador o dom maravilhoso que Ele lhe dera, reconhecendo, num gesto de humildade e suprema lucidez, que a beleza do seu canto era um reflexo da beleza divina. Toda a grande criação artística é uma forma de oração, embora nem sempre os seus autores o saibam. O canto da Amália tinha a sublimidade da grande arte. Era pura manifestação de beleza.
Era uma intérprete genial, sabia como ninguém, tirar de um texto, de uma linha melódica, todas as potencialidades expressivas, num equilíbrio milagroso entre voz, palavra e melodia. Nesse género de canto lírico a que chamamos fado, Amália era, de facto, verdadeiramente genial, como Maria Callas no canto operático, ou Maria João Pires no piano.
Nos seus melhores momentos, atingia a perfeição. Tínhamos a sensação de que aquele fado só podia ser cantado como ela o cantava, com uma segurança interpretativa absoluta. Quando isso acontece, quando sentimos que qualquer outra interpretação deitaria por terra aquela construção milagrosa, é porque a obra atingiu a perfeição. Ninguém como ela sabia dominar a voz nos fortes e nos pianos, nos crescendos e diminuendos de intensidade, nos sons agudos e graves, na voz límpida e quente, que foi aveludando com os anos, nos vibratos lançados no momento exacto. Ninguém como ela sabia inventar, com inigualável bom gosto, aqueles irrepetíveis melismas – as voltinhas, como diz o povo – que lembram o canto árabe ou andaluz. Ninguém como ela sabia prender, por momentos, a voz na garganta para depois a soltar num grito comovente, como se uma angústia obscura sufocasse no peito e, de repente, voasse como um pássaro liberto na amplidão do céu. Ninguém como ela sabia suspender a melodia, por instantes, para depois a retomar no momento preciso em que devia ser retomada.
Amália tinha uma personalidade própria, um estilo inimitável. Foi um “caso”, como dizia José Régio. Tirou o fado das vielas e das tabernas e levou-o para o Olympia de Paris. Com ela, a fadista deixou de ser a mulher derramada do Malhoa e começámos a vê-la como grande senhora, majestosa e trágica, de longos vestidos negros sobre os palcos. Com ela, o fado ganhou a dignidade e o apreço que verdadeiramente merece.

Ela foi para muitos de nós a mulher com quem gostaríamos de ter namorado ou casado; a mãe ou a amiga que canta a tristeza para nos acalmar ou adormecer e permanece como referência em todas as voltas que a existência dá. Os aplausos que a aclamaram também nos envaideceram a nós porque a sua linguagem é a linguagem que falamos e que tão bem exprime essa teimosa e plangente sensibilidade que há muito tempo nos acompanha. Por isso nos despedimos dela, já lá vão dez anos, com lágrimas e lenços, como se o caixão fosse um andor. Por isso lhe demos alturas de incenso, acreditando que, lá no assento etéreo onde subiu, continua a cantar a nossa canção de exílio diante de Deus e dos seus santos, a maior plateia que um artista pode ter.

Luís da Silva Pereira

domingo, 27 de setembro de 2009

PORTUGAL



Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa


SP

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Evolução e Fé Religiosa


Qual foi o impacto inicial da teoria da evolução na religião?

Para se compreender o impacto da teoria da evolução na religião, mais concretamente no cristianismo, é preciso ter em conta que no tempo de Darwin os três primeiros capítulos do Livro do Génesis, onde se narra a criação por Deus, em seis dias, do universo, da Terra, de Adão e Eva e de todas as espécies vivas eram interpretados literalmente. A ideia de que a humanidade actual é o resultado de uma lenta evolução dos mamíferos em geral e dos primatas em particular parecia falsificar o relato bíblico. Hoje, porém, o cristianismo interpreta aqueles capítulos do Génesis em sentido sapiencial ou poético e não científico, o que permite aos cristãos aceitar a teoria da evolução. Há porém alguns cristãos, chamados criacionistas, que não aceitam a teoria da evolução e continuam a interpretar o Livro do Génesis literalmente.


Pode-se defender a teoria da evolução e ao mesmo tempo acreditar na existência de Deus?

NÃO, dizem alguns cientistas não crentes. Para Richard Dawkins, por exemplo, a selecção natural é a única solução para o problema da improbabilidade de certos fenómenos naturais, como a vida. Porquê? Porque a selecção natural é um processo cumulativo de pequenos eventos improváveis, de onde gradualmente se passa dos organismos mais simples, até aos improvavelmente mais complexos, tornando a ideia de um projectista inteligente, Deus, uma ilusão
NÃO, dizem os criacionistas, cristãos fundamentalistas. Embora haja diversas versões do criacionismo, a maior parte dos autores que defendem esta corrente afirmam que a criação de todas as espécies se verificou tal como vem narrado no Livro do Génesis, e que a Terra tem cerca de seis mil anos de existência. Esta posição contradiz os dados científicos, resulta de uma inadequada interpretação da Bíblia e não é aceite pela Igreja Católica nem por muitas das Igrejas Protestantes.
SIM, embora não completamente, afirmam os defensores do desígnio (ou projecto) inteligente. A sua posição é porém muito criticada. Para estes autores, a “complexidade irredutível” em sistemas bioquímicos mostra que não podem ter sido o produto de uma evolução gradual, tal como exige a teoria da evolução de Darwin. Tal desígnio sugere uma realização inteligente por uma entidade igualmente inteligente à qual as religiões chamam Deus. Este desígnio pode observar-se, segundo estes autores, em estruturas biológicas tão complexas, como por exemplo o olho humano, que não poderiam ter surgido por simples selecção natural mas, pelo contrário, têm a sua origem na intervenção de uma entidade inteligente. Esta posição não é aceitável pela Igreja Católica, porque para os católicos Deus é o criador de tudo, não apenas das estruturas biológicas complexas, as quais se podem explicar pelas leis naturais.
SIM, diz o teólogo católico americano John Haught, segundo o qual: «Enquanto [o universo] se adapta a um infinito amor que se dá a si mesmo e promessa de um futuro novo, o cosmos finito submete-se ao que nos parece ser a dramática evolução em direcção a um aumento de complexidade, vida, consciência, liberdade e expansão de beleza. ...A fé num Deus humilde, Deus da promessa e que se dá a Si mesmo, deveria ter-nos preparado para a revolução de Darwin”. O nexo natural, causal e criativo dos eventos é, em si mesmo, a acção criativa de Deus. Os processos de evolução por acaso e selecção natural são inerentemente criativos. Neste quadro, Deus cria ainda, continuamente, "na" e "através" da matéria do mundo, dotada em si mesma de potencialidades evolutivas. Uma imagem desta posição é pensar em Deus como um compositor e a evolução a sua música, caracterizada por uma complexa beleza.
Esta é também a posição oficial da Igreja Católica, manifestada sobretudo pelos Papas João Paulo II e Bento XVI.


(SP)


terça-feira, 15 de setembro de 2009

Religião, Vida Pública e Desenvolvimento

Rafael, S.Paulo pregando em Atenas, 1515


A religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este “estatuto de cidadania” da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso, impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. Por sua vez, a religião precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade.

Bento XVI, A Caridade na Verdade (§56)

[SP]

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Evolucionismo/Criacionismo:diferenças e convergências

Mestre Bertram, Criação dos Animais, 1383

Evolucionismo

Segundo o evolucionismo, todas as espécies (incluindo a humana) provêm umas das outras e, remotamente, de um ou poucos seres vivos iniciais. Evolucionismo opõe-se, assim, ao fixismo, segundo o qual cada espécie foi criada separadamente e mantém sempre as suas características fundamentais.
Há vários tipos de teorias evolucionistas. Charles R. Darwin(1809-1882) defendeu a teoria da selecção natural e da sobrevivência do mais forte na luta pela vida. As formas actuais seriam fruto dessa selecção natural.
O naturalista francês Lamarck (1744-1829) também estabeleceu várias leis da evolução.baseadas sobretudo na adaptabilidade dos seres vivos pelo uso e não uso dos órgãos e na hereditariedade dos caracteres adquiridos.
Com o surgir e desenvolvimento da genética molecular, fizeram-se estudos tendentes a indicar que a acumulação, ao longo do tempo, de mutações ocorridas nos vários seres vivos poderia constituir a causa do surgir de novas espécies. Estabeleciam-se, assim, as chamadas árvores filogenéticas ao longo dos tempos geológicos.
Além das alterações que Darwin foi fazendo à sua teoria, surgiram posteriormente várias correntes neo-darwinistas, e a partir das primeiras décadas do séc. XX, a simbiogénese. Segundo esta teoria, a evolução não se processou em forma de árvore que se vai ramificando lentamente, ao longo do tempo, através de alterações do material genético, mas em forma de rede que se estabelece pela transferência de genes de umas espécies para outras, entre as que vivem no mesmo tempo.

Criacionismo

Este termo pode ter mais que uma leitura. Basicamente refere-se à criação dos seres vivos por Deus. No passado, leu-se o Génesis no sentido literal e, portanto, numa visão fixista. Nesse sentido, o criacionismo era anti-evolucionista. Esta posição antiga, de algum modo regressou recentemente com grande vigor, sobretudo a partir dos E.U.A., simultaneamente com o “intelligent design”.
É demasiado claro, porém, que o Génesis não é um livro histórico, mas etiológico. Por isso, na actual posição da Igreja, o criacionismo evolutivo é o mais seguido.
É possível distinguir, em cada ser, entre a sua essência e aquele dinamismo existencial que causa a sua própria evolução, e identificar este último com a acção criadora de Deus.
Em toda a sua pureza, o conceito metafísico de criação exprime-se pela total e radical dependência de Deus por parte de todo o existente. Segundo o teólogo Karl Rahner, a acção criadora de Deus faz então parte do dinamismo existencial de cada ser, ainda que não da sua essência (o que seria panteísmo).
Nesse sentido, podemos dizer que é esse ser que cria, num processo em que causa aquilo que é mais do que a sua própria essência, e portanto se auto-supera a si próprio. Mas porque esse seu dinamismo existencial é acção de Deus, é Deus quem primariamente cria.
Terá sido o próprio símio que evoluiu para o homem total (corpo e alma), porque a acção trascendental de Deus, que impulsionou esse evoluir, faz parte do dinamismo existencial do próprio animal, ainda que sem se confundir com a sua essência.

Convergência entre ambos

Nesta perspectiva, interpretar o surgir da vida em termos de evolução química da matéria não corresponde, de modo nenhum, a enfraquecer ou eliminar a acção criadora de Deus, mas só a purificá-la do ressaibo miraculoso duma intervenção inesperada por parte da matéria, e a torná-la, em toda a linha das suas consequências, verdadeiramente imanente, enquanto presença existencial criadora.
Para fazer valer a imagem genuína de Deus não é necessário nem acertado mitificar a evolução físico-química com um momento de milagre em que as forças naturais desfalecem e, no meio da sua inacção, surja palpável a acção de Deus. Ele situa-se e radica-se no universo de um modo mais profundo, ainda que talvez menos espectacular. É em Deus que vivemos, nos movemos e existimos, e só quando não objectivamos reflexamente esta imanência, exigimos um deus demiurgo que venha visitar miraculosamente a nossa impotência.
É interessante que, quando Edward O. Wilson intenta dissolver o fenómeno religioso nos seus parâmetros sócio-biológicos, menciona a dado passo o tipo de teologia que temos estado a apontar, a que chama “process theology”, e reconhece que ela torna ciência e religião intrinsecamente compatíveis. Mas acrescenta que isto nada tem a ver com a verdadeira religião das danças aborígenes ou com o Concílio de Trento[1].
É evidente que esta teologia tem pouco a ver com crenças aborígenes, nem poderia ser expressa no contexto cultural do Concílio de Trento. Mas pertence hoje a uma teologia altamente respeitada nas Igrejas Cristãs, e que parece corresponder às perspectivas dos Papas. De facto, João Paulo II, numa mensagem em que estimula os teólogos a assimilar as modernas teorias científicas para com elas nos fornecerem (como Tomás de Aquino) novas expressões da doutrina teológica, diz exemplificando: “A perspectiva evolucionista não poderá projectar alguma luz sobre a antropologia teológica, o significado da pessoa humana como imagem de Deus, o problema da Cristologia e até mesmo sobre a evolução doutrinal?”[2]

P. Luís Archer
Prémio Nacional de Bioética 2008.
[SP]


[1] Edward O. Wilson, On Human Nature, Harvard University Press, Cambridge, Mass., U.S.A., 1987, pp.171-172.
[2] João Paulo II, Mensagem ao Director do Observatório Astronómico do Vaticano, 1 de Junho de 1988.

domingo, 6 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO:FORMAÇÃO COMPLETA DA PESSOA




Uma solidariedade mais ampla a nível internacional exprime-se, antes de mais nada, continuando a promover, mesmo em condições de crise económica, maior acesso à educação, já que esta é condição essencial para a eficácia da própria cooperação internacional. Com o termo “educação” não se pretende referir apenas a instrução escolar ou a formação para o trabalho – ambas causas importantes de desenvolvimento – mas a formação completa da pessoa. A este propósito, deve-se sublinhar um aspecto do problema: para educar, é preciso saber quem é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. A progressiva difusão de uma visão relativista desta coloca sérios problemas à educação, sobretudo à educação moral, prejudicando a sua extensão a nível universal. Cedendo a tal relativismo, ficam todos mais pobres, com consequências negativas também sobre a eficácia da ajuda às populações mais carecidas, que não têm necessidade apenas de meios económicos ou técnicos, mas também de métodos e meios pedagógicos que ajudem as pessoas a chegar à sua plena realização humana.

Bento XVI, A Caridade na Verdade(§61)

(SP)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O ÊXODO MACIÇO DE EUROPEUS PARA PORTUGAL

Refugiados judeus chegam a Santa Apolónia

Desde o ano de 1935 que se verifica o primeiro êxodo de populações alemãs com destino aos Estados Unidos e a alguns países da América do Sul. Temendo os dias de holocausto da política hitleriana, algumas dezenas de famílias, muitas delas de crença judaica, abandonaram o centro da Europa em busca de eldorados de trabalho e de segurança. Gente de recursos na sua grande maioria, eram médicos, professores, banqueiros e cientistas que, atraídos pelos laços do sangue ou da amizade, pretendiam fugir aos horrores de uma guerra iminente. Com a anexação da República da Áustria, desaparecida por completo a esperança da paz, uma nova vaga de refugiados buscou os caminhos do exílio, não sendo de esquecer as centenas de crianças austríacas que, ao tempo, graças ao apoio da Caritas, encontraram lares benfazejos em Portugal.
Mas foi com a invasão a Polónia e a consequente declaração de guerra da França e da Inglaterra, que se produziu um êxodo maior de alemães desafectos ao Reich, assim como de checos, polacos e húngaros que sentiam as suas vidas em grave perigo. Com a chegada a Portugal de grande número de refugiados, a maior parte em condições de extrema penúria, o nosso Ministério dos Estrangeiros viu-se forçado a medidas de emergência para os acolher.(...)
A dramática situação criada à Europa pelas tropas germânicas e soviéticas, levou à aprovação de um novo regulamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dada a iminência de uma chegada maciça de expatriados europeus a Portugal. Assim, foi determinado que os nosso cônsules eram autorizados a conceder vistos gratuitos em duas condições: a) nos passaportes de estrangeiros nacionais de países que usassem de igual prática em passaportes portugueses; b) no passaportes individuais ou colectivos, ou nos documentos comprovativos dos mesmos, de estrangeiros em trânsito pelo território português, quando circunstâncias especiais assim o aconselhassem. O artigo 2º do referido decreto-lei determinava que a concessão e o prazo de validade dos vistos seriam regulados por instruções próprias já transmitidas às nossas autoridades consulares.
Foi ao abrigo desta determinação que vários cidadãos estrangeiros, muitos deles espanhóis, alemães, franceses e outros que viviam em Portugal ou haviam chegado na leva de 1940, tiveram a sorte de obter naturalização portuguesa. Mas o chamado “grande êxodo” não veio a demorar quando da súbita invasão dos Países Baixos, da Bélgica e da França, em Maio de 1940, pelas tropas germânicas. Dezenas de milhar de refugiados não tardaram a chegar à fronteira portuguesa, utilizando os meios possíveis por via aérea ou ferroviária, quando não atravessando a Espanha ao vaivém da sorte. Muitos desses infelizes queriam apenas fazer de Lisboa um porto de embarque para as três Américas, enquanto outros, com menos recursos, tudo fizeram para se fixar no país que gostariam de tomar como adoptivo. Esse número desceu, entretanto, para a média de duas mil entradas mensais, voltando a subir em Janeiro de 1942, com vagas de judeus que se foram instalando com o apoio dos comités judaicos residentes em Portugal.Avaliam-se os dramas humanos que estiveram na origem da fixação de tantos refugiados no nosso país. Na sua grande maioria eram franceses, alemães, polacos e austríacos, quase todos alojados em centros de turismo, como Costa da Caparica, Paço de Arcos, Praia das Maçãs, Curia, Figueira da Foz, Caldas da Rainha e Ericeira. As influências que os estrangeiros exerceram nas formas de pensar e de viver da sociedade portuguesa do tempo revestem-se de especial significado para a história das mentalidades no tempo da Segunda Guerra Mundial. Tenha-se sobretudo em conta que o Governo facilitou a vida dos refugiado em múltiplas formas de protecção, mas sem esquecer que a população teve igualmente um papel relevante no carinho social em que os envolveu.
A história recente tem procurado realçar a acção do Dr. Aristides de Sousa Mendes, cônsul de 1ª classe, e que, em 1940, estava à frente do consulado em Bordéus. Após a entrada dos alemães em Paris, o cônsul passou vistos a uns 30 mil refugiados, não apenas judeus, mas naturais de países então ocupados pelos alemães, o que lhes permitiu entrar legalmente em Portugal. Foi condoído da situação dos foragidos, que somente com essa autorização podiam deixar a França, que o nosso cônsul em Bordéus agiu na grave emergência. A decisão do Dr. Aristides de Sousa Mendes contrariava, porém, as instruções vindas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que haviam regulado, pela circular de 14 de Outubro do ano anterior, as condições em que o visto consular podia ser emitido. O seu gesto, por mais benemerente que fosse, infringia regras estabelecidas, o que teve por consequência que o cônsul fosse colocado na situação de disponibilidade, por conveniência de serviço.
Sujeito a processo disciplinar que o afastou da carreira diplomática, o Dr. Sousa Mendes seria, no nosso tempo, objecto de grandes homenagens, mormente das comunidades judaicas. Não nos foi possível examinar o processo que levou à sua aposentação compulsiva, pelo que se torna difícil emitir um juízo seguro acerca do seu afastamento. Para muitos críticos, seria apenas uma vingança pessoal do Doutor Oliveira Salazar, mas sem darem qualquer prova de tal aversão. Tratou-se sobretudo, ao nível do Ministério dos Estrangeiros, de um caso de não acatamento, por parte do Dr. Aristides de Sousa Mendes, das instruções recebidas. Pode realçar-se em seu abono que o nosso cônsul em Bordéus colocou a generosidade do coração acima das directivas oficiais que se lhe impunha cumprir.
Em defesa do Chefe do Governo, um dos seus biógrafos teceu o seguinte juízo: “Salazar nenhum destes refugiados entregou aos países de onde eram provenientes, pelo que foi assim um salvador ‘passivo’ desses 35.000 portadores do visto que Sousa Mendes assinou e a quem permitiu a fuga!”. Não reconhecer que o Presidente do Conselho facilitou a entrada dessas vítimas da conflagração constitui uma forma de miopia política contrária à realidade dos factos. Portugal tornou-se assim um verdadeiro asilo dos que se aproximavam das suas fronteiras e não viram negada a pretensão de um asilo para as suas dores e sofrimentos. Quem se recorda ainda da protecção oficial que o Governo concedeu aos foragidos pode dar testemunho de que o regime português salvou então a vida a milhares de europeus. A comunidade judaica que residia em Portugal, com realce para o Doutor Mosés Amzalak, jamais negou ao Presidente do Conselho essa homenagem.

Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal[1935-1941], pp.393-396.

SP

domingo, 30 de agosto de 2009

A Igreja de Roma e a Guerra



No Verão de 1939, a Europa percorreu o último trecho do caminho que a levou a precipitar-se no abismo da guerra. Um abismo que, apenas vinte anos após a primeira catástrofe bélica mundial, se abriu com uma série de horrores inimagináveis. Do desmembramento da Polónia, depois do pacto, com muita frequência esquecido, entre a Alemanha nazista e a Rússia soviética, teve de facto início o incêndio que fez arder grande parte do velho continente, a bacia mediterrânea e a imensa área do Pacífico; com o monstruoso extermínio do povo judeu, destruições sem precedentes de civis e de muitas cidades do velho continente, até ao epílogo nuclear, carregado de novos pesadelos que, com a destruição de Hiroshima e Nagasaki, pôs fim ao conflito desencadeado pelo Japão e, deste modo, aos seis anos da guerra mais sangrenta que a terra viu.
A lição da primeira guerra mundial de nada serviu. Aliás, dela surgiu uma sucessão de injustiças e, sobretudo, a afirmação dos totalitarismos soviético, fascista, nazista, que levaram a Europa e grande parte do mundo a sofrer males indizíveis. Face à guerra, a Igreja de Roma não abandonou aquelas fronteiras da paz que fadigosamente tinha iniciado a presidiar no início do século XIX e, sobretudo, a partir do último trinténio do século, quando a perda do poder temporal tinha de facto favorecido a expansão da sua influência internacional. E se Pio X, nos seus últimos dias de vida, se tinha quase oferecido como vítima sacrifical, sentindo aproximar-se a "grande guerra", Bento XV empenhou-se contra a insensata tragédia europeia que, incompreendido e insultado pelas partes contrapostas, definiu como "massacre inútil"; mobilizando, de resto, uma "diplomacia da assistência" que, silenciosa e eficaz, teria voltado a caracterizar a atitude da Santa Sé também na segunda guerra mundial.
Durante os respectivos encargos diplomáticos, no coração da Europa em chamas, os futuros Pio XI e Pio XII tinham sido testemunhas directas do surgir dos totalitarismos, causa dos males que se preparavam. E, tendo ambos chegado à guia da Santa Sé, no decorrer dos anos 30 viram com lucidez o encaminhar-se inexorável para a guerra, que procuraram contrastar com a diplomacia, a política concordatária, a firmeza sobre a doutrina católica, numa consonância substancial não enfraquecida por personalidades e temperamentos entre si muito diversos. Não foi, portanto, por acaso que a escolha do conclave, rapidíssima, se orientou para o secretário de Estado de Pio XI. Imediatamente, Pio XII teve que enfrentar uma situação que se precipitava: "Nada se perde com a paz, tudo pode ser perdido com a guerra" foi o inútil apelo extremo, a cuja redacção lançou mão o substituto Montini, estreito colaborador do Papa também na tenaz obra de socorro depressa iniciada: no Vaticano, em Roma, na Itália e em muitos outros países onde, ao lado de muitos católicos, os representantes pontifícios, como Roncalli, em Istambul, se prodigalizaram de todos os modos para socorrer os perseguidos, sem distinções. Pio XII e quantos lhe iriam suceder na sede romana com os nomes de João XXIII e Paulo VI foram assim, com o enfurecer do conflito, quer defensores das razões humanas e da justiça, quer testemunhas da caridade de Cristo, com uma pregação de paz que o Papa Pacelli não interrompeu durante a guerra e nos anos seguintes, apoiando a opção da democracia, rejeitando a atribuição de uma culpa colectiva ao povo alemão, contrastando o totalitarismo soviético que impôs regimes ditatoriais a muitos países e semeou novos males, e apoiando sem incertezas a construção fadigosa de um projecto unitário para a "velha Europa, que foi obra da fé e do génio cristão" e que, contudo, não tinha sido capaz de ouvir a radiomensagem pontifícia transmitida na tarde de 24 de Agosto de 1939.
Se de muitas formas os cristãos souberam dar contribuições importantes para a reconstrução e a reconciliação, a Igreja de Roma fechou simbolicamente a segunda guerra mundial com as eleições papais de Karol Wojtyla que, em 1989, cinquenta anos após o seu início, lhe dedicou uma carta apostólica, e de Joseph Ratzinger, precisamente a sessenta anos da conclusão do conflito que os futuros João Paulo II e Bento XVI sofreram em primeira pessoa, filhos de Nações então contrapostas.
Sob o ponto de vista histórico, a dúplice escolha do colégio dos cardeais demonstrou a inconsistência de muitos prognósticos baseados em velhas convicções de carácter político, segundo as quais as eleições de 1978 e, sobretudo, de 2005 teriam sido impossíveis. Em conclusão, a geopolítica da Igreja é diversa. E isto porque, assumindo o passado, olha para o homem e para o futuro com os olhos fixos numa promessa que não será desiludida.


Giovanni Maria Vian, L’Osservatore Romano


(SP)

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Testamento Vital II

Hieronimus Bosch,1475-80, Extracção da Pedra da Loucura

O projecto de lei

O projecto de lei, celeremente aprovado na generalidade, intitula-se “Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado”. Mas, pese embora a esta restritiva designação, trata ainda de outros temas de grande relevância ética, que são a criação legal da figura do procurador de cuidados de saúde (Art.º 16), a instituição das declarações antecipadas de vontade (Art.º 14 e 15) e, finalmente, o acesso do doente ao processo clínico (Art.º 20). Se este último aspecto pode ser relacionado com a informação, não se vislumbra qualquer nexo lógico entre este último, os testamentos vitais e a figura do provedor de cuidados de saúde. Relembremos que o consentimento pressupõe informação e proposta de actuação, por parte do médico; proposta essa a que o doente informado dá ou não o seu acordo. Já no testamento vital é inexistente a proposta médica, e a intervenção pertence totalmente à iniciativa do doente. Ou seja, num caso existe um momento alto do diálogo intersubjectivo que é a relação médico-doente; no outro, há apenas o doente, que expressa as suas indicações para uma eventual situação futura. Convém, por isso, analisar separadamente estes temas.

1. Os artigos 1º a 13º dizem respeito ao consentimento informado e não contêm nada que se não encontre descrito como eticamente correcto e aconselhável. Pode todavia observar-se que uma excessiva regulamentação e a preocupação de tudo legislar são potencialmente nocivas para o bem que se deseja promover. O consentimento informado não sai beneficiado por um espartilho jurídico que ameaça sufocar a sua nobreza humana e ética; mais, receia-se que, a fim de cumprir a lei, se burocratize e desumanize o procedimento, transformando o consentimento informado num mero documento legalmente útil, um formulário que o doente terá que assinar antes de ser objecto de qualquer cuidado de saúde. Ora, isto é o que se deve evitar a todo o custo.

2. Quanto ao testamento vital, o Projecto é inovador, ao estabelecer o direito do doente “a determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso…de se encontrar incapaz”. Trata-se de um documento escrito, revogável, considerado “fundamental”, mas cuja eficácia vinculativa é fortemente restringida pela existência de uma série de circunstâncias, entre as quais avultam o grande conhecimento da doença, da sua evolução, dos processos terapêuticos que se pretende recusar ou aceitar, etc. Refere-se ainda o Projecto à data do documento como factor a ter influência na sua eficácia, mas não se indica um prazo de validade. Conclui-se que estas diversas circunstâncias permitem avaliar “o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”, abstrusa redacção que põe em causa a seriedade do documento e encarrega um terceiro (quem? O médico? Um jurista?) de avaliar da “convicção” do declarante.
Se o Art.º 14º levanta fortes restrições ao carácter vinculativo do testamento vital, o 15º representa uma porta escancarada para a anulação desta declaração, quando determina que o médico “nunca respeita a declaração antecipada quando seja contrária à lei…, quando determina uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão” ou quando esteja evidentemente desactualizada. Em face destas reservas e limitações, pode dizer-se que nenhuma declaração antecipada tem probabilidades de ser eficaz, se o médico a interpretar como estando ferida por alguma ou algumas destas restrições; ou seja, em última análise, será o médico a decidir, invertendo-se assim o objectivo em mente do legislador.
3. O procurador de cuidados de saúde é uma figura enigmática, já que o Projecto nada diz sobre as suas características, condicionamentos e âmbito de competências, embora se refira (no Art.º 18) às “decisões” do procurador. Isto configurará um imenso poder atribuído a uma pessoa escolhida de entre o círculo de amigos ou familiares do declarante, mas que na realidade só deveria ser um curador do enfermo incapaz, decidindo no seu melhor interesse e no conhecimento da sua postura e opções. Porém, se o seu poder decisório for ilimitado, poderá optar por soluções que lesem o interesse do doente, por motivações várias (interesse económico, convicções religiosas ou ideológicas próprias, estado depressivo, etc.). Aqui não se apresentam circunstâncias restritivas, como se fez em relação ao testamento vital; significa isto que o procurador terá mais margem de manobra e poder decisório do que o próprio doente. Em relação a ambos poderá o médico declarar-se objector de consciência, o que está correcto, desde que tal objecção tenha carácter casuístico, já que haverá certamente decisões do doente ou do procurador que farão todo o sentido e que nenhum médico responsável e competente poderá rejeitar.

4. Finalmente, o acesso ao processo clínico (com excepção das anotações subjectivas feitas pelo profissional) é um direito do doente e não merece reparos substantivos, embora levante legítimas dúvidas quanto à aparente intenção de excluir o médico de um processo em que é legítimo participante; mas esse não é tema do que me deva ocupar, neste contexto

Observações conclusivas

Este Projecto é, como vimos, heterogéneo na sua constituição. No que concerne ao consentimento informado, nada acrescenta de verdadeiramente inovador em relação às normas deontológicas consagradas, frente às claras normas constantes do Código Penal, essas sim acompanhadas do enunciado das penas a cominar aos infractores (aspecto ausente deste Projecto). Parece pois inócua e dispensável esta tábua do políptico configurado pelo Projecto.
No que à declaração antecipada de vontade (ou testamento vital) diz respeito, temos de facto inovação. Perante as limitações que são inerentes ao próprio conceito (e às suas ambiguidades) e às fortes restrições previstas ao seu carácter vinculativo, são legítimas as dúvidas quanto ao seu real alcance e exequibilidade. Acontece ainda que se antevê um pronunciado aumento de conflitualidade entre paciente (e/ou família) e profissional de saúde, sempre que o testamento vital contenha indicações prescritivas ou, mais vezes, proscritivas de técnicas ou atitudes terapêuticas que sejam, na opinião médica, desajustadas, erradas ou lesivas da integridade ou até da vida do paciente; ou, pelo contrário, úteis e adequadas. Imaginemos só que o testamento vital interdita o recurso à reanimação e que o médico, perante a situação clínica de paragem respiratória, considera obrigatório o recurso à reanimação, com francas possibilidades de recuperação (integral ou parcial) do doente. Vai o clínico assistir de braços cruzados à morte de um doente que podia salvar, por lhe ter sido exibido um documento velho de anos? Se obedecer ao seu código e reanimar o doente, arrisca-se a ser duramente sancionado? Se assistir inerme à sua morte pode igualmente ser condenado por omissão de auxílio a doente em situação aguda…Esses conflitos serão ainda mais graves quando exista o procurador de cuidados de saúde (cujas decisões podem não ser conformes aos verdadeiros interesses do doente), já que nessas condições teremos oposição entre duas pessoas vivas e sãs, o profissional de saúde e o procurador. A objecção de consciência prevista no texto não poderá resolver o pleito, pois o médico lavará as mãos quanto ao problema do doente, ficando a resolução a cargo de terceiros que serão chamados a intervir, sem conhecimento da situação e do seu enquadramento.
São estes os fundamentos para considerar inoportuna e eventualmente nociva a iniciativa legislativa ora tomada. Acresce que dificilmente se poderá defender a necessidade e a urgência de legislar nesta matéria, no fim de um ciclo parlamentar, sem qualquer audição prévia dos mais directamente interessados (Ordens profissionais, associações de doentes, sindicatos, juristas, etc.) e sem debate público de uma questão que a todos diz respeito. Mais grave ainda é a total omissão de um pedido de parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que a própria lei estatui como obrigatório. Afirmei já que a aprovação desta lei constitui um erro político e um descaminho ético: por não ter sido precedida de audição e debate; e por não servir os interesses do doente, tornando mais difícil e potencialmente conflituosa a relação médico-doente, que se desejaria fosse o encontro de uma competência compassiva com uma confiança crítica. (…)
Não duvido das excelentes intenções dos proponentes, mas ponho directamente em causa a relevância e a urgência desta iniciativa. É de esperar que o Projecto não passe o crivo da discussão na especialidade e assim se evite mais uma lei inútil, geradora de conflitualidade, aberta a interpretações diversas ou até opostas, que embrulha no invólucro inócuo do consentimento informado os polémicos temas das declarações avançadas de vontade e da procuradoria de cuidados de saúde, com o fatal surgimento da questão da eutanásia passiva. Trata-se, afinal, de um cavalo de Tróia jurídico.

Walter Osswald, “ ‘Testamento Vital – Perspectiva Médica’”, Brotéria 168(2009) 432-436.

SP