quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Desceu do Céu


Mas para alcançar a salvação, é necessário ainda crer fielmente na Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.

A rectidão da nossa fé consiste, pois, em crer ainda e confessar que Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus e homem.

É Deus, gerado da substância do Pai desde toda a eternidade; é homem porque, no tempo, nasceu da substância de sua Mãe.

Deus perfeito e homem perfeito, com alma racional e carne humana.

Igual ao Pai segundo a divindade, menor que o Pai, segundo a humanidade.
E ainda que seja Deus e homem, todavia não são dois, mas um só Cristo;

É um, não porque a Divindade se tenha convertido em humanidade, mas porque Deus assumiu a humanidade.

Um, finalmente, não por confusão de substâncias, mas pela unidade da Pessoa.

Porque, assim como a alma racional e o corpo formam um só homem, assim também a divindade e a humanidade formam um só Cristo.

Do símbolo de Santo AtanásioSP

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A Alegria do Natal

Master of Moulins, c. 1480

A mãe Igreja, enquanto nos acompanha rumo ao Santo Natal, ajuda-nos a redescobrir o sentido e o gosto da alegria cristã, tão diversa da alegria do mundo. Neste domingo, segundo uma bonita tradição, as crianças de Roma vêm para fazer benzer pelo Papa as imagens do Menino Jesus que colocarão nos presépios.
É para mim motivo de alegria saber que nas vossas famílias se conserva o hábito de fazer o presépio. Mas não é suficiente repetir um gesto tradicional, embora seja importante. É preciso procurar viver na realidade de todos os dias aquilo que o presépio representa, isto é, o amor de Cristo, a sua humildade, a sua pobreza. Foi o que fez São Francisco em Greccio: representou ao vivo o cenário da Natividade, para a poder contemplar e adorar, mas sobretudo para saber pôr mais em prática a mensagem do Filho de Deus que, por amor a nós, se despojou de tudo e se fez menino.
A Bênção dos "Bambinelli", como se diz em Roma, recorda-nos que o presépio é uma escola de vida, da qual podemos aprender o segredo da verdadeira alegria. Ela não consiste em ter muitas coisas, mas em sentir-se amado pelo Senhor, em fazer-se dom para os outros e em querer-se bem. Olhemos para o presépio: Nossa Senhora e São José não parecem ser uma família coroada de êxito. Tiveram o seu primogénito entre grandes indigências. Contudo, estão repletos de alegria interior, porque se amam, se ajudam e, sobretudo, porque estão certos de que, na sua história, é Deus quem age, o Qual se fez presente no pequenino Jesus. E os pastores? Que motivo teriam para se alegrar? Aquele recém-nascido não mudará certamente a sua condição de pobreza nem de marginalização. Mas a fé ajuda-os a reconhecer no "menino envolvido em panos, e colocado numa manjedoura" o "sinal" do cumprimento, também para eles, das promessas de Deus para todos os homens "que Ele ama" (Lc 2, 12-14).
Eis, queridos amigos, em que consiste a verdadeira alegria: é sentir que a nossa existência pessoal e comunitária é visitada e colmada por um grande mistério, o mistério do amor de Deus. Para rejubilar, precisamos não só de coisas, mas de amor e de verdade, precisamos de um Deus próximo que conforta o nosso coração e responde às nossas profundas expectativas. Este Deus manifestou-se em Jesus, nascido da Virgem Maria. Por isso, aquele Menino, que colocamos na cabana ou na gruta, é o centro de tudo, é o coração do mundo. Rezemos para que cada homem, como a Virgem Maria, possa acolher, como centro da própria vida, o Deus que se fez Menino, fonte da verdadeira alegria.

Bento XVI

SP

sábado, 12 de dezembro de 2009

Reflexão teológica

Velazquez,1618. S. João Evangelista em Patmos

Extractos da homilia improvisada por Bento XVI, durante a Missa, na manhã de 1 de Dezembro, na Capela Paulina, na presença dos participantes na sessão plenária da Comissão Teológica Internacional.

As palavras do Senhor, que há pouco ouvimos no trecho evangélico, são um desafio para nós teólogos, ou talvez para dizer melhor, um convite a um exame de consciência: o que é a teologia? O que somos nós, teólogos? Como fazer bem teologia? Ouvimos que o Senhor louva o Pai porque escondeu o grande mistério do Filho, o mistério trinitário, o mistério cristológico, aos sábios, aos doutos. Eles não o conheceram, mas revelou-o aos pequeninos, aos népioi, àqueles que não são doutos, que não têm uma grande cultura. Com estas palavras, o Senhor descreve simplesmente um facto da sua vida, um facto que começa já na época do seu nascimento, quando os Magos do Oriente perguntam aos competentes, aos escribas, aos exegetas, o lugar do nascimento do Salvador, do Rei de Israel. Os escribas sabem-no, porque são grandes especialistas. Podem dizer imediatamente onde nasce o Messias: em Belém! Mas não se sentem convidados a ir. Para eles é um conhecimento académico que não diz respeito à sua vida. Permanecem fora. Podem dar informações, mas a informação não se torna formação da própria vida.
Os acontecimentos essenciais da vida de Jesus não pertencem unicamente ao passado, mas estão presentes, de vários modos, em todas as gerações. Também na nossa época, nos últimos duzentos anos, observamos a mesma coisa. Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura, da história da salvação, mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo: que Jesus era realmente Filho de Deus, que Deus trinitário entra na nossa história, num determinado momento histórico, num homem como nós. O essencial permaneceu escondido! Poder-se-iam citar facilmente grandes nomes da história da teologia destes duzentos anos, dos quais aprendemos muito, mas o mistério não foi aberto aos olhos do seu coração.
De tudo isto nasce a pergunta: por que é assim? É o cristianismo a religião dos néscios, das pessoas sem cultura, não formadas? Apaga-se a fé onde se desperta a razão? Como se explica isto? Talvez tenhamos que olhar mais uma vez para a história. Permanece verdadeiro o que Jesus disse, aquilo que se pode observar em todos os séculos. E todavia, existe uma "espécie" de pequeninos que são inclusive doutos. Aos pés da cruz encontra-se Nossa Senhora, a humilde serva de Deus, a grande mulher iluminada por Deus. E encontra-se também João, pescador do lago da Galileia, mas é aquele João que será justamente chamado pela Igreja "o teólogo", porque realmente soube ver o mistério de Deus e anunciá-lo: com olhos de águia, entrou na luz inacessível do mistério divino.
Sobressai o facto de que existe um uso dúplice da razão e uma maneira dupla de ser sábio ou pequenino. Há um modo de utilizar a razão que é autónomo, que se põe acima de Deus, em toda a gama das ciências, a começar pelas naturais, onde é universalizado um método adequado para a pesquisa da matéria: Deus não faz parte deste método, portanto Deus não existe. Assim também na teologia: pesca-se nas águas da Sagrada Escritura com uma rede que permite capturar somente peixes de uma certa medida, e aquilo que vai além desta medida não entra na rede e, por conseguinte, não pode existir.
Assim o grande mistério de Jesus, do Filho que se fez homem, reduz-se a um Jesus histórico: uma figura trágica, um fantasma sem carne nem ossos, um homem que permaneceu no sepulcro, que se corrompeu e é realmente um morto. O método sabe "capturar" certos peixes, mas exclui o grande mistério, porque o homem se faz ele mesmo a medida. Possui esta soberba, que é contemporaneamente uma grande loucura, porque torna absolutos certos métodos não adequados às grandes realidades. Entra neste espírito académico que vimos nos escribas, os quais respondem aos Reis magos: não me diz respeito. Permaneço fechado na minha existência, que não é tocada. É a especialização que vê todos os pormenores, mas já não vê a totalidade.
Existe o outro modo de utilizar a razão, de ser sábio: a do homem que reconhece quem é. Reconhece a própria medida e a grandeza de Deus, abrindo-se na humildade à novidade do agir de Deus. Assim, precisamente aceitando a sua pequenez, fazendo-se pequenino como realmente é, chega à verdade. Desta maneira, também a razão pode expressar todas as suas possibilidades, não é anulada, mas amplia-se, torna-se maior. Trata-se de outra sofia e sínesis, que não exclui o mistério, mas é precisamente comunhão com o Senhor, em quem repousam a sapiência e a sabedoria, e a sua verdade.
Neste momento, queremos rezar ao Senhor a fim de que nos conceda a verdadeira humildade. Que nos conceda ser pequeninos, para sermos realmente sábios; nos ilumine, nos faça ver o seu mistério do júbilo do Espírito Santo, nos ajude a ser verdadeiros teólogos, que podem anunciar o seu mistério porque foram tocados na profundidade do seu coração, da sua existência. Amém.

SP

sábado, 5 de dezembro de 2009

O Pardal


A ladroagem descarada talvez não tenha representantes mais conhecidos do que estes bandos grulhentos que rondam searas e portais de habitações e, ao roubarem biscato, abalam como que em grande risotada. Desconfiadíssimos, podemos granizá-los, mas em vão se lhes arma a costela ou o boiz; não caem, com o olhinho finório examinam tudo, achegam-se com passinho miúdo e trémulo à côdea ou à espiga e, num último relance, a ver se vem gente, bicam-na e eles aí vão cheios de consciência de ladros e a rir-se de laços e cadeias.
Têm psicologia de contrabandistas; misturam-se com as outras aves, mas são de um egoísmo feroz. Roubar e comer são os dois parágrafos do seu código. De resto, nem se divertem nem solfejam coisa de jeito; possuídos de má consciência, andam sempre disparados da seara para os tectos e se vão beber água há-de ser em charca muito quieta e erma.
E os ninhos? Ninham nas árvores, mas sobretudo nos telhados. Metem-se por sob as telhas e fazem uns berços razoáveis onde quatro, cinco, até seis bicos se abrem com voracidade nativa. Os pais acarretam todo o dia a rapinagem variada. Mas aí, nesse trabalho de alimentação, é que revelam o fraco bestunto que lhes assiste. Na empena dos telhados, com o bico cheio, alguns levam uma espiga inteira, ficam a esguardar à direita e à esquerda, enfiam pelas telhas e repartem os ganhos. O dono do palheiro e os gatos vizinhos observam aquelas idas e vindas e vão por dentro, sobem ao tecto e topam com pratadas de carne fresca a chamar o arroz de forno. O bichano põe-se a engordar e ostenta uns bigodes mais fartos e risonhos que os dos brasileiros de torna-viagem do fim do século passado. Roubado o primeiro ninho, os pardais não choram, fazem logo outro e, daí a dias, outra pratada de carne não tabelada espera o gato ou os galfarros do agrícola que anda nervoso com os estragos na seara. Gordos e cozidos com arroz, dispensam o palito dos dentes e dão euforia às sestas do verão.
Em bando, quando desabam sobre os trigos, fazem prejuízo de vulto; nos viveiros de hortaliça, então, levam tudo a eito, e se os não chumbam, o lavrador não tem que transplantar e anda esmorecido com estes demónios. É verdade que fez uns espantalhos de braços abertos e chapéu na cabeça. No primeiro dia, a pardalada rondou incerta e observante. No segundo, já poisavam em cacho sobre o mostrengo e não queriam outro poleiro, rindo-se do ardil com redobrada malícia.
A psicologia dos pardais anda muito dentro da psique humana. Ladronicos a retalho, gente que maquia o devido ao próximo, vendedores miúdos que ludibriam as leis, até o fingido mendigo que faz beicinho miserando e tem no bolso do colete uma continha calada – todos esses são de raça pardalina.
Ides a um café e a chávena vem meia. Mandais a moenda à pedra alveira e notais que a maquia foi demais. Comprais fazenda para um fato e o casaco aperta-vos e a calça saiu curta. Estes roubos pardalares deixam muito contentes os ratoneiros que ostentam sempre a cara mais patusca e, ao serem objurgados, riem bonacheironamente e armam em admirados das calúnias que vão pelo mundo. (...)
É ave sem encantos embora use uma gravatinha enxovalhada como os ciganitos vendedores de relógios e de lapiseiras... acabadas de chegar do Cairo! Os pardais constituem uma democracia de fraca organização e escassa exemplaridade. A criminalidade é alarmante, mas de fraco calibre. Condenamo-la e rimo-nos dela com riso involuntário quando ajuizamos de fulano com esta interjeição: - olha que pardal!

João Maia, O Livro dos Animais
SP