terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dia da Paz


"Depois fazia luar, fazia uma canção na noite"
(J. Gumarães Rosa)

Primeiro vieram os anjos, todos, escorrendo luz, porque bebem sem parar nas fontes luminosas. Bebem pela boca, pelos olhos, bebem pelo coração. O amor é assim. Uma sede inapagável, um ardor imortal.
Os anjos não podem evitar a luz. Onde aparecem, brilham. É deles. Brilham e cantam porque toda a luz inicia uma canção. Vivem felicíssimos.
Os pastores gritaram:
- Já é manhã!
Não acharam estranha a voz da nadrugada, as ardentes palavras da harmonia e da paz.
Os anjos arderam, cantando. Depois partiram e ficou luar.
O luar é o que resta da presença deles, a lembrança que tem a noite dos anjos indo embora, uma canção a afastar-se. Ecos no coração de uma bela harmonia. Ouve-se ainda.
Por isso é que o luar faz sempre saudades e os poetas cantam de noite. Sentem que passaram anjos. Vão atrás deles, a apanhar os restos das canções.
Todo o luar é natalício. Lembra canções de anjos.

Luís Silva Pereira, De Natal em Natal

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Filho Pródigo e o Natal dos humanos



“Esta é a tese do cristianismo acerca do Homem: o homem só é Homem enquanto é um eu e só é um eu porque é um Filho, um Filho da Vida, isto é, um Filho de Deus”

“Esquecido de Si no agir misericordioso, o eu é doação a si mesmo na Arqui-Doação da Vida absoluta e da sua Arqui-Ipseidade. O eu reencontrou o Poder que não nasce mas o faz nascer. O eu renasceu. Neste nascer de novo reencontrou a Vida, de modo que doravante não nascerá mais…”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 139.173.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Advento



CÂNTICO PARA JOÃO

Benedictus Dominus, Deus Israel, quia visitavit et redemit populum suum.
Canticum Zachariae, Luc. I, 68-79

São João pra ver as moças
Fez uma fonte de prata
(Cancioneiro Popular)


As portas do Inferno não prevalecem contra
O mais limpo que a neve antes que João leve à água
A fonte de água viva e O aponte a dedo:
- Ecce Agnus Dei!

Anho branco, anho novo, cuja pedra de poiso é o Livro,
O Cordeiro de Deus que tira os pecados do Mundo
Como quem tosa a relva e come da ervilhaca,
Branco do Lírio-mãe como o vitelo herdou malha,
Penetrante de bafo como o vento na frincha,
Doce ao jugo do Pai que ouviu Abraão e a Ele não!
O Cordeiro das lãs ainda não bem cardadas,
Que eu levo, levas tu, e aquele outro, e o outro ainda,
Procissão de pastores à matança da Páscoa,
Carniceiros vendendo o que deviam comer com alfaces bravas.

João!
Eu admiro João no poço dos Essénios,
Com Zacarias mudo e o gafanhoto ardente,
João Bebe-Água, João a quem basta um pelico acabado de esfolar,
João a quem põe mesa a abelha e viu curvada
Ao verter de sua concha a cabeça de sangue do sudários!
Feliz João, filho de velha e núncio da Boa Nova,
O que desiste ao saber que o Outro é que vem, é que é,
E prefere fazer de leão num Zoo de dançarina
E de cabeça de rês num prato de degola,
A passar pelo Leão na Terra do Cordeiro leonino
Filho da Pomba:
- Ecce Agnus Dei!

João, que não desata a correia à sandália do Maior(non sum dignus!),
Que não faz a vontade à que o devora de olhos,
Lhe ama a carne de magro, escorcho de samarra,
La sale Salomé, vampe orientale aux friandises,
E ele – ácido, genuíno, todo água viva e chão de cardos,
Fiel a seu pai mudo e à hora em que a fala lhe rebenta
Assim como a fonte à vara:

- “Benedictus Dominus, Deus Israel,
Que visitou o seu povo,
Remiu o seu povo
E levantou o altar da nossa salvação em casa de seu servo David,
Sicut locutus est per os sanctorum,
Qui olim fuerunt,
Para nos livrar da mão dos nossos inimigos”,
E o mais que disse o velho Zacarias
Ex-mudo como o parvo ante a velhinha estéril
Mas sem papas na língua agora que o menino mexe,
E ele, como o outro que diz, fala pelos cotovelos,
Amplo de graves e de agudos como um órgão
E zoando ao vento como o moinho ou o decacórdio
Na cita do seu João:

- “Et tu, puer,
Profeta do Altíssimo serás chamado”...
Para que fosse abrindo ao Senhor seus caminhos
E dando ao seu povo a ciência do salvar
E a remissão dos pecados, et coetera,
E iluminasse aqueles por lá da sombra da morte:
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.
Os nossos pés direitos na estradada paz, imagine-se!
Os nossos pés no caminho e no endireito da paz...
Como é? Repete, velho salamurdo e santo!
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.

Gloria. (Com “Sicut erat”).

Amen.
Vitorino Nemésio, Cântico de Véspera
(Silva Pereira)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Pirilampo


O povo das Beiras que não sabe grego chama-lhe, com propriedade que os Morais, os Torrinhas, os Morenos invejariam, chama-lhes luze-cu. É um bichinho de cauda radiante. Nas noites búzias em que a lua, por detrás dos pinheiros, negaceia e pouco alumia, acende ele o seu farolim. Parece uma gota de luz caída dos espaços, e os outros insectos devem orientar-se por ela ou, como nós, sentir curiosidade por tão estranho fenómeno. O mais estranho é que o bichinho tem pleno domínio da luzinha que lhe coube em sorte. Acende-a pacificamente, mas apaga-a se for atacado; alumia os dignos e furta-a aos maléficos.
Há momentos, num muro musguento, estive a ver a luzinha admirável que se ia deslocando ao ritmo do seu sono. Se tudo neste Universo tem préstimo e função, a que obedecerá este fogo radiante?
Sendo pequenino o bicho, deve ser idêntico o motivo ao que leva os cantoneiros a pôr uma luz nos boqueirões das estradas danificadas. O pirilampo não quer ser atropelado e dá sinal de si: passem de largo os apressados. Ou será para se alumiar a si próprio e se guiar na colheita da alimentação?
Quanto mais torva é a noite mais brilha a gotazinha estelar. As aves insectívoras não fazem vida nocturna, senão seria um perigo acusar-se tão a pleno dos bicos vorazes. Poisadas e dormentes nos ramos altos, as aves devem perguntar-se pela razão de ser desta maravilha. Lá em cima, as estrelas são iguais, deve ser qualquer delas, trazida por sopro de vento. E metendo o bico debaixo da asa adormecem com o caso solucionado.
Escasseiam, mas ainda existem, humanos com alma de pirilampo. Irradiam uma luzinha pacífica na noite do mistério que nos envolve. Acontece-nos sentir um grato bem-estar junto de certas pessoas que irradiam conhecimentos, conselhos sem segundas intenções, e se calam depois numa aceitação cordial da vida e da morte sem birra nem acinte. São homens destes que constelam a nossa noite secular com um lucilar a que assomamos enlevados.
Há uma poesia de um poeta brasileiro que nos manda fazer o seguinte: se não podemos arder em alta labareda que os outros aqueça e encaminhe, acendamos uma fogueira no alto do monte na possibilidade de haver um caminheiro extraviado na savana que deste modo se reoriente. Quando tudo em redor de nós escurece, uma simples gota de luz é um favor sem preço.
Cada um de nós devia levar uma luzinha acesa em pavio próprio, uma luzinha original, irradiação de personalidade inconfundível. “Sê tu, no reino de todos os declínios” recomendou um pirilampo da noite europeia, recomendou Rainer Maria Rilke.
Se cada um de nós fosse o que é, e o fosse com pureza, com autenticidade, teríamos, poisadas na bacidão da terra, as constelações radiantes de caminhos e destinos. O contraste de aparente pequenez do minúsculo pirilampo com o ilimite da escuridão insinua que a qualidade do fogo, o timbre espiritual, aponta outra ordem de grandeza – o da doce qualidade em que se inspiram os que são bons. E não há ninguém que se não enterneça com este pequeno faroleiro e se não deixe ir a observá-lo, a apontá-lo com o dedo, a celebrá-lo na sua faina de alumiar o mundo. E talvez ele julgue que de facto alumia todo o universo; e como a sua intenção profunda é essa – devemos louvá-lo aqui e desejar que muitos de nós imitem este valente, ponham um risco de luz na noite meditativa, façam da vida um pequeno farol. É o que faz o luze-cu beirão, o chinês e o que o australiano vê na parede do seu quintal e o árabe no tope do minarete.
De qualquer escuridão pode pungir a luzinha silenciosa, animada, vivificante. O pirilampo tem defeitos? Quem o poderá dizer? Assim, quando entre os humanos uma qualidade excelsa irradia de uma pessoa, ofusca-nos para algum possível defeito que possa existir, mas se extingue na luz radiante. Deixemos a gotazinha de luz do pirilampo a brilhar na noite e encher-nos com sua puríssima lição.

João Maia, O Livro dos Animais


[Silva Pereira]