quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O verdadeiro amor do próximo

Mestre desconhecido holandês, 1537. O bom samaritano

O AMOR do próximo
é o amor que desce de Deus
ao homem.
É anterior ao que sobe
do homem até Deus.
Deus tem pressa de descer
até aos infelizes.

Apenas uma alma se dispõe
ao consentimento,
ainda que seja a última,
a mais miserável,
a mais disforme,
Deus precipita-se nela
para poder, através dela,
olhar, escutar
os desgraçados.
E só com o andar do tempo
a alma toma conhecimento
desta presença.
Mas embora não encontre nome
para lhe chamar,
em todo o sítio
onde os infelizes são amados
por si mesmos
Deus está presente.

Deus não está presente,
embora invocado,
onde os infelizes são simplesmente
uma ocasião de fazer o bem,
ainda que sejam amados com este título.
Porque assim
estão no seu papel natural,
no seu ofício de matéria,
de coisa.
São amados impessoalmente.
E é preciso levar-lhes,
no seu estado inerte, anónimo,
um amor pessoal.

Por isso mesmo,
expressões como
amar o próximo em Deus,
por Deus,
são expressões enganadoras
e equívocas.
Um homem precisa
de todo o seu poder de atenção
para ser capaz simplesmente de olhar
este bocado de carne inerte
e sem vestidos
à beira do caminho.

Não é ocasião
de voltar o pensamento para Deus.
Como há momentos
em que é preciso pensar em Deus
esquecendo todas as criaturas
sem excepção,
há momentos em que ao olhar as criaturas
é preciso não pensar explicitamente
no Criador.

Nestes momentos
a presença de Deus em nós
tem como condição
um segredo tão profundo
que chega a ser segredo
para nós mesmos.
Há momentos
em que pensar em Deus nos separa dele.
O pudor é condição
da união nupcial.

No amor verdadeiro, não somos nós
que amamos os infelizes em Deus,
é Deus em nós que ama os infelizes.
Quando estamos em desgraça,
é Deus em nós que ama
aqueles que nos querem bem.
A compaixão e a gratidão
descem de Deus,
e quando elas se trocam
num olhar,
Deus está presente
no ponto onde os olhares
se cruzam.
O infeliz e o outro
ama-se a partir de Deus,
através de Deus,
mas não por amor de Deus;
amam-se por amor um do outro.
Isto é qualquer coisa de impossível.
Assim, só por meio de Deus,
é possível fazer-se.

O que dá pão
a um infeliz esfomeado,
por amor de Deus,
Cristo não lho agradecerá.
Recebeu já o seu salário
só com ter este pensamento.
Cristo agradecerá
àqueles que não sabiam
a quem davam de comer.

Simone Weil, Attente de Dieu(1957)

Extraído de À Porta do Farol Faz Escuro.
Textos escolhidos traduzidos e dispostos ritmicamente por Manuel Simões
Editorial A.O. - Braga


[Silva Pereira]

terça-feira, 5 de agosto de 2008

As caixas de Deus


Tenho na minha mão duas caixas que Deus me deu para segurar.Ele disse: "Pões todas as tuas mágoas na caixa negra e todas as tuas alegrias na caixa dourada". Segui as Suas palavras e nas duas caixas, tanto as minhas alegrias como mágoas guardei.Mas embora a dourada ficasse dia a dia mais pesada, a preta estava tão leve como antes. Com curiosidade abri a preta, queria descobrir porquê. E vi, na base da caixa, um buraco por onde as minhas mágoas tinham caído. Mostrei o buraco a Deus e perguntei divertida: "Onde andarão as minhas mágoas?". Ele sorriu gentilmente e disse: "Elas estão todas aqui comigo!". Perguntei a Deus por que me havia ele dado então as caixas, porquê a dourada e porquê a preta com o buraco. "A dourada é para manteres contigo e te lembrares sempre das coisas boas; a preta é para te libertares das más".
(Autor desconhecido)


[Helena Gonçalves]

domingo, 3 de agosto de 2008

Na tua luz veremos a luz

José Luís Mendes, olhares.com


DA MODERNIDADE, LUZ QUE EM NÓS MORA,
À AURORA, LUZ QUE VEM DE FORA


1. A Sabedoria do Amor e do Sentido
A teologia é Sabedoria. Sabedoria do Amor, e não amor da sabedoria. A teologia é a Sabedoria de um Amor «crucificado», e só faz boa teologia «aquele que sabe que Outro morreu por ele», para usar a expressão forte de Soren Kierkegaard, e fazer memória dos mais firmes fundamentos paulinos de um amor condescendente e oblativo que nos preside e nos precede (Gl 2,20; 1 Ts 5,10). Assim, porque leva consigo esta intensa história de Amor, o teólogo fala calando e cala falando, rezando, amando, escutando, sempre em bicos de pés, no limiar do silêncio, sempre à escuta da Palavra criadora de Deus, som que nunca se ouviu, silêncio que nunca se calou (Paul Beauchamp). Premurosa pesquisa de sentido por debaixo da rumorosa espuma das palavras. O Verbo de Deus não anda na crista da onda de sons e de sílabas, sintaxe e fonética. O Verbo de Deus não faz vibrar o ar, é sem som e sem sombra. Não sendo a letra nem o som, Ele é o sentido dessa letra e desse som (Paul Beauchamp). E, de modo diferente da letra e do som, o sentido, que se recebe depois de um longo, lento e paciente trabalho de interpretação, ou de rajada, como uma iluminação, o sentido – dizia – não faz barulho. O sentido nunca fez barulho, nunca faz barulho.

2. A metáfora da Luz ou a modernidade
A metáfora da Luz – iluminismo – enche a modernidade. A luz da modernidade é a razão que quer iluminar todas as coisas, querendo assim compreender, com o que há de «prender» no compreender (Emmanuel Levinas), toda a realidade. Esta luz da razão produz identificação (redução do outro à esfera do «eu») e emancipação. Diz Karl Marx, em A Questão Judaica: «A emancipação é a recondução do mundo e de todas as coisas ao homem, para fazer do homem, não mais o objecto, mas o sujeito da sua própria história, do seu próprio destino». É assim que o homem se faz senhor, e não pastor (o pastor é frágil) (Martin Heidegger), e, como senhor, pode dizer: «Eu, eu, e mais ninguém» (Sf 2,15), ou «Eu, eu, e fora de mim não há ninguém» (Is 47,7 e 9), ou ainda «Eu fiz-me a mim mesmo» (Ez 29,3), e ainda «Sou rico, enriqueci, e não preciso de nada» (Ap 3,17), e mais recentemente «Eu penso, logo existo» («Cogito, ergo sum») (Descartes). Como se vê, este homem que se arvora em senhor absoluto, liquida ao mesmo tempo a ideia de criação (Deus) e a ideia de geração (mãe), pondo Deus de lado e esquecendo a sua mãe, e pensando que se põe sozinho no ser pelo seu próprio pensamento, mais ou menos homossexual (Adriana Cavarero). Este triunfo da identidade com o normal corolário da desmedida «identificação», redução de tudo ao «eu» e ao «mesmo», produz a solidão, que sou «eu» sozinho no meio de objectos, depois de reduzir os outros a objectos (Gn 2,18) (Abraham Joshua Heschel), e faz aparecer, pela primeira vez na história da humanidade, o ateísmo, e torna-se fonte de totalitarismos e violências inauditas. É o tempo da razão forte, do discurso lógico e ideológico, do logocentrismo, do sermão inflamado, do compêndio único. Em A Gaia Ciência, aforismo 125, Nietzsche descreve plasticamente esta realidade, quando faz sair, para a praça da cidade, em plena luz do dia, um homem louco, que leva na mão uma lanterna acesa, enquanto grita pela cidade: «Deus morreu; nós matámo-lo!» Foi assim que nos tornámos os senhores do mundo. Mas começa, entretanto, a cair a noite e a fazer frio. Não é o assassinato de Deus que apoquenta Nietzsche. Apoquenta-o a orfandade em que, com esse acto desmedido e de tresloucada audácia, caiu a humanidade. A frouxa luz da lanterna que exibe e com que em plena luz do dia pretende iluminar o mundo representa ironicamente a luz da razão, da nossa pequena razão, que quer sempre dominar o mundo, retê-lo na sua mão fechada.

3. A metáfora da Noite ou a pós-modernidade
A metáfora da Noite traduz a pós-modernidade, tempo em que a razão forte da modernidade se descobre como razão frágil e fragmentada, incerta e inquieta, ao sabor do slogan rápido e afectado. A democracia cede terreno à mediocracia. O sucesso não tem a ver com a razão e o discurso bem elaborado, mas com o dizer mais afectado, mais alto e mais rápido. A noite é um tempo de naufrágio. Partindo de uma cena do Rerum Natura, de Lucrécio, que narra os sentimentos de dor e de angústia, mas ao mesmo tempo de tranquilizante conforto, de um observador que, na praia, com os pés em terra firme, assiste a um navio que se afunda, lá longe, no mar, Hans Blumenberg define a modernidade como «naufrágio com espectador». Neste sentido, o homem moderno ainda pensava que tinha um pedaço de terra firme debaixo dos pés: a sua razão. Ao contrário, o homem pós-moderno perdeu já esse naco de terra e de razão e está dentro do navio que se afunda, sendo ao mesmo tempo náufrago e espectador. A única coisa que lhe resta é tentar construir, com os restos do navio desconstruído, um jangada que lhe permita sobreviver por algum tempo. A pós-modernidade, como a noite, é um tempo sem horizontes, em que cada um se fecha na concha da sua própria solidão, no seu pequeno grupo de amigos, no seu mundo fechado, à volta de umas quantas latas de cerveja, de pequenos rituais herméticos e esotéricos e correspondente vocabulário, à mistura com uns kicks emocionais, para logo resvalar outra vez cada um para o seu naco insensato de solidão, escuridão e indiferença. A questão já nem sequer é a falta de sentido. A questão é a ausência de perguntas pelo sentido. Estamos na «noite do mundo» (Weltnacht), diz Martin Heidegger, no tempo do exílio. E diz uma velha história rabínica que «os jovens perguntaram ao velho rabino quando começou o exílio de Israel. Ao que o velho rabino respondeu que o exílio de Israel começou no dia em que Israel deixou de sofrer pelo facto de estar no exílio». Compreenda-se, portanto, que o exílio verdadeiro não consiste simplesmente em estar longe de casa ou da pátria, mas sobretudo em tornar-se indiferente e insensível, sem causas, sem sonhos e sem esperas. Os límpidos versos do poeta espanhol Antonio Machado dizem a mesma coisa de outra maneira: «En el corazón tenía/ la espina de una pasión;/ logré arrancármela un dia:/ ya no siento el corazón». A noite da pós-modernidade deixa-nos na indiferença e na insensibilidade, sem amor nem dor nem alegria, sem grandes sonhos, sem grandes causas, sem perguntas e sem esperas, perdidos no meio de fragmentos, agarrados ao nosso bocado de tempo, que há que fruir (Gianni Vattimo), de acordo com o horaciano carpe diem, documentado também na Sb 2,6-9, em Is 22,13 e em 1 Cor 15,32.

4. A metáfora da Aurora ou a Luz que vem de fora
Depois da luz e da noite, já se vislumbra no horizonte a metáfora da Aurora, luz que vem de fora. O canto de um galo rasga a noite, e Pedro sai para fora. E chora (Mt 26,74-75). O mais querigmático dos animais anuncia a Pedro que está a nascer o dia. O dia mesmo. O dia sem noite e sem série (Zc 14,7; Ap 21,23). É o que assinala o galo presente nos sarcófagos dos primeiros cristãos, donde passa para os campanários das Igrejas. O galo não se rege pelas horas do relógio, nem o seu canto pelas notas musicais. São partituras de sentido que trauteia, música nova, que vem de fora, e não entra pelo ouvido. Rombo na totalidade. Evento-Advento (Ereignis). O tudo, pelo simples facto de ser tudo, tem necessariamente de ser limitado, limitado com limite, mas sem limiar, porque o tudo, se é tudo, como é que pode ter ainda janelas para outra coisa?! A aurora é luz que vem de fora, rebenta o limite com a graça de um novo limiar. Claro convite a trans-gredir, de trans-gredior, dar um passo para além de. Transformar o limite num novo limiar. Evento-Advento para um novo Êxodo. A nova ordem é sair para fora de si, pois é de fora de ti que vem o sentido da vida. O rosto do Outro, incontrolável e inviolável, é a ordem nova e o sentido até agora insuspeitado (Emmanuel Levinas). Deus deixa-se encontrar por aqueles que não o procuram,/ manifesta-se àqueles que não se dirigem a Ele (Is 65,1; cf. Rm 10,20). Deus vem, portanto. Evento-Advento, Êxodo, escuta, encontro, espanto. «De outro modo que ser» (Emmanuel Levinas). Cogitor, ergo sum (Karl Barth). Amor, ergo sum. «Sou pensado, logo existo». «Sou amado, logo existo». Eu não sou incestuosa e tautologicamente filho de mim mesmo, como sugeria o cogito cartesiano. Um Amor me precede. Outras mãos me acolhem. Outras mãos se estendem para mim. Sair de mim. Do meu mundo, dos meus projectos, dos meus domínios e afazeres, do meu «eu» patronal, do meu esforço para permanecer no ser, o espinoziano conatus essendi. «Sair (yasa’) é o verbo emblemático do êxodo. Exprime uma saída sem retorno, que reclama a saída do bebé do ventre materno» (Ubaldo Terrinoni). Saída para uma radical confiança no outro que me precede e me acolhe. Pensar depois do Evento-Advento e do Êxodo significa, na verdade, «ser pensado», «ser amado».

5. Um percurso paradigmático
Recordamos aqui o caso sério de Martin Heidegger. Começou como estudante de teologia. A teologia é, no seu dizer, a disciplina da escuta humilde do silêncio de Deus. Decorridos dois anos, passou-se para a filosofia, que é a disciplina da interrogação radical («Por que há o ser e não o nada?»), da compreensão e do domínio da realidade. Fruto desta sua postura é o «Ser o Tempo» (Sein un Zeit), obra aparecida em 1926, que tem a sua tradução prática na sua adesão, em 1933, ao nacional-socialismo, como ideologia de domínio da realidade pela violência. O mundo esperou pela segunda Parte desta Obra, que nunca chegou a aparecer. Na verdade, Heidegger, reconhecendo a tragédia do projecto nacional-socialista, que quanto mais tentava subjugar o mundo, mais este lhe escorregava das mãos, reconheceu também o fracasso da sua filosofia, ao verificar que, se era possível dizer o ser das coisas (Dasein), já não era possível dizer o Ser (Sein) que está por detrás das coisas, pois não é possível dizer o Ser com as palavras da nossa linguagem, sempre demasiado frágeis e pequenas, capazes de dizer o fragmento, mas incapazes de dizer o abismo que sustenta e em que navega o fragmento. Por outras palavras: como dizer o «de outro modo que ser» com a linguagem do ser? Surge então, nos anos 1936-1938, em que escreve Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis) [Contributos para a Filosofia (do Evento)] – obra publicada postumamente, em 1989 –, a chamada «reviravolta» (Kehre) heideggeriana, em que Heidegger se apercebe que pensar não consiste no orgulhoso exercício de interrogar, compreender e dominar o ser, mas na atitude humilde de escutar o Ser – passagem da interrogação para a escuta –, sendo que «escutar é deixar-se dizer», e falar não é dominar, mas simplesmente re-dizer o Dizer que escutámos. Imensa mudança de perspectiva e atitude. Da luz da nossa pequena razão, que em nós mora, que tudo pretende dominar para aprisionar, à luz da aurora, que vem de fora, para nos libertar.

6. «Na tua luz veremos a luz»

É o dizer luminoso do Sl 36,10. E Paulo pode ser o ícone do homem novo nascido dessa torrente de luz que nos cega e nos acende os olhos (Act 9,1-18; 22,6-16; 26,12-23). Um vasto mar de amor me precede, me envolve, me revolve e me devolve a mim. Eu dado a mim (Claude Bruaire). O homem bíblico tem de viver de mãos abertas (kaph). Só assim se recebe das mãos de Deus para ele estendidas (Is 65,2), das palmas das mãos de Deus em que está carinhosamente tatuado (Is 49,16). É de mãos abertas que Deus governa o mundo (Ecli 18,3). O Talmud, que é a sabedoria hebraica condensada em cinco milhões de palavras, refere exemplarmente que o punho cerrado representa a sabedoria do imbecil, que pensa que detém o mundo nas malhas da sua rede. E refere depois que, quando a mão inicia o movimento de se abrir, é como as pétalas de uma flor que se abre à vida. E acrescenta: é assim que floresce a inteligência. E, quando a mão se abre completamente, é a mão do sábio, que não retém nada, mas conhece o valor do encontro e do dom. E, cruzando agora as duas mãos abertas, ficamos com a imagem do «pássaro, livre, que voa». Processo inverso ao da filosofia, desde Zenão a Platão, Descartes, Fichte e Nietzsche, que apresentam o conhecimento como a captura ou compreensão que o sujeito faz do objecto. A verdade (a-lêtheia) é assim o desvelamento ou desocultação a que o sujeito submete o objecto, para dele se apoderar, representando-o e reproduzindo-o na mente, «adequação entre a coisa e a mente» (adequatio rei et intellectus), como referem Aristóteles e Tomás de Aquino. O último Heidegger, a que já aludimos, considera que esta concepção de verdade é a matriz da violência do Ocidente, e diz as coisas de outra maneira: não é o sujeito que captura e desoculta o objecto, mas é o objecto que sai do seu esconderijo e se oferece ao homem como dom, como evento (Ereignis). Por isso, a função do sujeito já não é capturar e dominar com o que há de «prender» no compreender, mas acolher com espanto, alegria e reconhecimento. A Bíblia e a teologia estão claramente do lado do último Heidegger. Mas vão muito mais longe, trans-gredindo-o, pois não se trata de objectos que se entregam ao homem, mas de um Tu, o Tu de Deus, que, por amor, vem até ao homem e a ele se entrega por amor, debruçando-se sobre ele e abaixando-se até ao ponto de lhe lavar os pés e a alma (Von Balthasar), de cuidar dele, de o alimentar, de lhe afagar o rosto, de o ensinar a andar: «Fui Eu que ensinei a andar Efraim,/ que os ergui nos meus braços,/ mas não conheceram que era Eu que cuidava deles!/ Com vínculos humanos Eu os atraía./ Com laços de amor,/ Eu era para eles como os que erguem uma criancinha de peito contra a sua face,/ e me debruçava sobre ela para a alimentar» (Os 11,3-4). Aí está a verdade (’emet) como confiança (’emunah), derivados de ’aman, que significa segurar, firmar, fiar-se. É o mundo da mãe e do bebé, da aleitação, da lalação, da palavra antes das palavras.

7. A metáfora da tartaruga ou a transgressão
A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio nocturno. O sapo vê-a sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair, tartaruga». Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei, tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!» «Bem sei», respondeu a tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia; «Bem sei, mas é a primeira vez que estou a ver o céu estrelado!» A tartaruga ensina que não nos podemos contentar em viver mais ou menos tranquilamente com a cabeça enterrada na areia do céu ou da terra. Deduzir o céu da terra, ou o Último do penúltimo, é apenas areia. Areia é trocar o Último pelo penúltimo. O penúltimo é o mundo dos meios sem fins, da razão instrumental (Max Horkheimer), das pessoas como objectos, que se movem no tempo como os objectos se movem no espaço. Um passo em frente. É imperioso e urgente pensar. Trans-gredir. «Pensar é trans-gredir» (Denken heisst überschreiten) (Ernst Bloch). Sair de casa como a tartaruga, extasiar-se e desviar-se do caminho como Moisés (Ex 3,3-4). É o céu que vem interromper curso e percurso. O Último interrompe o penúltimo, mundo desencantado (Max Weber), outra vez visitado, amado, encantado. Pensar é trans-gredir, pensar é ser pensado, amado. A luta e o amor. «Tu és bela, minha amada,/ terrível como um exército em ordem de batalha» (Ct 6,4). Para além dos meios. Amor sem luta é posse de um objecto. O amor verdadeiro é agónico. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lc 9,24). Aí está o verdadeiro ícone do amor, Cristo, que não se salvou a si mesmo para me salvar a mim, morrendo por amor de mim, trans-gredindo assim a morte. Ícone do amor. Ícone também da trans-gressão, do advento e do êxodo: sai de Deus, sai de si, sai para Deus.

8. A partir da esperança
Paulo diz aos cristãos de Éfeso que, antes de terem sido encontrados por Cristo, viviam «sem esperança e sem Deus no mundo (elpída mê échontes kaì átheoi en tô kósmô)» (Ef 2,12). Este marcador Paulino atravessa a Encíclica Spe salvi, de Bento XVI. Sem Deus no mundo, habitação desabitada, não há esperança. Pode haver apenas pequenas deduções, como quem deduz o céu da terra ou o Último do penúltimo. No mundo grego, esperança é elpís, e tem o significado de «previsão», «lícita expectativa», sempre assente nos nossos calculismos e exercícios racionais, pequenas deduções. Ao contrário, a esperança bíblica e cristã, de que fala Paulo (e Bento XVI), é sem medida, tem a ver com o nunca antes visto, aponta para além das leis da natureza, está em luta aberta contra as evidências. Trata-se de «esperar contra a esperança» (par’ elpída ep’ elpídi = contra a esperança na esperança) (Rm 4,18). É assim que Paulo define a atitude de Abraão. No mundo hebraico, esperança é tiqwah, e deriva de qaw, que pode significar «fio», «fita métrica», «cordel para medir». Percebe-se que tem a ver com o «fio» que se estica para medir, até chegar à medida ainda sem medida e sem solução à vista, mas que tem solução recebida de Deus. É como o «fio», a «corda», o «arame» estendido entre a dor e a consolação esperada, entre a humanidade e Deus, fio tenso, não abaulado, e seguro entre duas mãos, a de Deus e a nossa. Única maneira de se poder atravessar, com segurança e confiança, o vau da morte. Paulo transfere esta imagem do «fio» ou da «corda» para o mundo e para o homem, e coloca-os nesta tensão esperante, através do recurso ao nome apokaradokía (Rm 8,19; Fl 1,20), de apò + kara + dokéô [= fora de + cara (rosto) + esperar] que só ele usa no NT, e que é desconhecido no grego antes do Cristianismo. Apokaradokía traduz a atitude de quem alonga o pescoço o mais possível para tentar ver o que ainda não se vê, atitude muito próxima da traduzida por apekdéchomai (Rm 8,25), de apò-ek-déchomai, que implica uma forte conotação de recepção, tensão para receber a salvação de Deus, tensão para o dom, pois um dom, não o podemos produzir com as nossas mãos; só o podemos receber de outras mãos. A esperança bíblica e cristã consiste na dupla atitude amante de estarmos sempre à espera de Alguém, e de sabermos que Alguém espera por nós. Habitação habitada, êthos e éthos. É Deus que constrói a casa, a habitação (êthos); é dele que recebemos o hábito, a ética (éthos).

António Couto

sábado, 2 de agosto de 2008

Interpelação-Resposta

Caravaggio - Vocação de Mateus


“Como vemos nós que este gesto realiza, de facto, uma interpelação, que essa interpelação origina uma vocação e, portanto, se dirige a um apenas, que o identifica e o reconhece? Nós vemo-la – a esta interpelação – manifestar-se no olhar de Mateus, infinitamente mais do que no gesto do próprio Cristo; porque Mateus, que levanta os olhos da mesa e se desvia das moedas, não se apercebe tanto de Cristo, mas sim do seu olhar, que o atinge; … Então – e nisso está o momento decisivo – apanhado no cruzamento dos olhares, Mateus tenta, com a sua mão esquerda, o gesto de se designar a si mesmo, em silenciosa resposta à interpelação, que não podia ser dita, nem escutada, e pergunta, ou melhor, anuncia: «Eu?» O que faz ver a vocação, isto é, a interpelação duplamente invisível, não resulta de um sinal visível (de facto, sempre indistinto), mas da própria resposta”.

Jean-Luc Marion, Étant donné, Paris 1997, 392-393.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Crer é razoável

Moretto de Brescia,


A fé não é o mesmo que perder a confiança na razão, ao ver os limites do nosso conhecimento; não é a entrega ao irracional, em face dos perigos de uma razão meramente instrumental. A fé não é também expressão de cansaço ou de fuga, mas sim afirmação corajosa do ser, e abertura à grandeza e complexidade da realidade. A fé é um acto de afirmação. Apoia-se na força de um novo sim que o homem se torna capaz de pronunciar em virtude da iniciativa com que Deus vai ao seu encontro.
Precisamente na situação hodierna, de aberto e vasto ressentimento contra a racionalidade da técnica, parece-me importante evidenciar a razoabilidade essencial da fé. Nem a releitura crítica, desde há tempos em curso, poderia legitimamente censurar à modernidade a confiança na razão enquanto tal, mas apenas a redução do conceito de razão, visto que esta redução é que acabou por abrir a porta às ideologias irracionais. O mistério, tal como o alcança a fé, não é o irracional, mas sim a máxima profundidade da razão divina, que nós, com a nossa fraca vista, não temos capacidade para penetrar. Sempre foram e continuam a ser afirmação fundamental da fé as palavras com que João, retomando e aprofundando a narrativa da Criação contida no Antigo Testamento, abre o seu Evangelho: “No princípio era o Logos”, a razão criadora, a energia da inteligência de Deus, que enche de significado todas as coisas. Só poderemos compreender rectamente o mistério de Cristo a partir deste início, em que a razão se manifesta também como amor.
A primeira afirmação da fé diz-nos, portanto: tudo o que existe é pensamento feito realidade. O Espírito criador é a origem e o princípio que funda todas as coisas. Tudo o que existe é, na origem, racional, porque procede da razão criadora.
Novamente nos encontramos perante a oposição fundamental entre materialismo e fé. O credo do materialismo postula que ao princípio se encontra o irracional, e que só as leis do acaso produziram a racionalidade sobre a base da irracionalidade. A razão é, pois, um subproduto da ausência de razão, e a sua estrutura, assim como as suas leis, são simplesmente resultado de combinações produizdas por uma instância alheia, privada de conteúdo ético ou estético. Assim o homem se torna um adepto da engrenagem do mundo que ele faz progredir de acordo com os seus fins. E o irracional continua a ser a autêntica potência originária.
A fé ensina exactamente o oposto: o Espírito é a origem criadora de todas as coisas, e por isso elas têm em si uma razão não derivada de si mesmas e que as ultrapassa infinitamente, embora constituindo a sua mais íntima lei. A razão criadora, que dota as coisas de uma racionalidade objectiva, de uma lógica oculta e de uma ordem intrínseca, é ao mesmo tempo razão moral e Amor.(...)
Perante a actual crise da razão, é bom que volte a brilhar claramente esta natureza essencialmente razoável da fé. A fé salva a razão, até porque a abraça em toda a sua amplitude e profundidade e a protege contra as tentativas para a reduzir àquilo que pode ser verificado experimentalmente. O mistério não se apresenta como inimigo da razão; pelo contrário, salva e defende a íntima racionalidade do ser e do homem.

Cardeal Ratzinger, A Igreja e a Nova Europa
[Silva Pereira]