segunda-feira, 22 de junho de 2009

O BAPTISTA




Sendo imperador romano
o torpe César Tibério,
ao décimo quinto ano
do seu tirânico império;

Pilatos, seu velho amigo,
então regendo a Judeia,
e Herodes, filho do antigo,
reinando na Galileia;

houve um homem no deserto,
que os povos chamavam Mestre,
de lã de cabra coberto,
vivendo de mel silvestre,

que pregava aos penitentes
jejuns, pureza, oração,
baptizando a Plebe e as gentes,
em pé, no rio Jordão.

Ora, este homem, cuja vida
fascinava a Plebe inquieta,
era o precursor Baptista,
- era o último profeta.

Era primo do Messias,
e era João o seu nome.
Tinha o dom das profecias,
faces cavadas de fome.

E pregava assim às gentes:
- “Monstros! filhos da Mentira!
Ó geração de serpentes,
Por que é que fugis da Ira?

“Em breve vereis chegar
esse de quem eu – ingratos!
nem mereço desatar
o atilho de seus sapatos.

“De que vos serve e vos medra
dos Justos ser geração?
Deus pode até duma pedra
levantar filhos de Abraão!

Em breve - poços imundos!
vereis surgir, sobre a eira,
quem traz na dextra a joeira
com que ele joeira os mundos.”


- “Mestre! O que farei, pois, bem?”
gritava-lhe o legionário.
Mas ele: “pratica o bem!
Vive só do teu salário!”

- “Rabi! que farei?” – com susto,
diz, de rojo, o Publicano.
- “Não sejas vil, desumano!
Cobra tu o que for justo!”

- “Qual a lei que mais aprovas,
Rabi?” – diz-lhe o Escriba, em suma.
- “Tens duas túnicas novas?...
Vai - e dá de esmola uma.”

Assim pregava. Anciãos,
Escribas, povo aos magotes,
Vinham vê-lo, erguendo as mãos.
- Pasmavam os Sacerdotes.

Baptizavam-se, contritos,
mulheres, crianças e velhos.
Vinham beijar-lhe os aflitos
as sandálias, de joelhos.

- Mas enquanto aos pés choravam
os povos, como uns pupilos,
pelas estrelas erravam
os seus olhos tranquilos.

Gomes Leal, História de Jesus para as criancinhas lerem.


SP

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Santo António


De maneira, meu Santo, que deixais Portugal e vos embarcais para África, porque dizeis que ides buscar o martírio? Antes por isso mesmo vós não deveis sair da vossa Pátria. Não tendes vós já encerrado no peito aquele grande tesouro de sabedoria e eloquência com que depois haveis de esclarecer e assombrar o mundo, e agora a vossa modéstia e humildade encobre e dissimula, e quase contra o conselho deste mesmo Evangelho tem escondido debaixo do meio alqueire: Neque enim accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio? Escusado é logo ir buscar o martírio incerto, por mar, em terras estranhas, se o tendes mais breve e mais seguro na mesma onde nascestes. Amanheçam em Coimbra os resplendores dessa Teologia, que depois há-de ter a primeira cadeira na segunda Religião de que tendes tomado o hábito; passai com os ecos dessa fama a Lisbo e começai logo a levar após vós a Corte com a eloquência mais que humana dessa língua imortal, e eu vos prometo (não tanto que ela falar, senão depois que for falada) que não faltem naturais vossos que vos façam mártir. Não vos asseguro rodas de navalhas nem bois de metal, porque lá não se martiriza com tanto engenho. Mas se vos contentais com martírio mais aparelhado, e mais vulgar, de seres logo um S. Sebastião, não o duvideis. Todos os raios que de si despedir a vossa luz, se hão-de converter em setas que se empreguem em vós. O vosso nome há-de ser o aplauso de todas as vozes, e o vosso corpo o alvo de todas as setas. Não vos há-de valer serdes filho de S. Francisco, uma vez que mostrardes que sois geração de Gigante: Stirpem Enac vidimus tibi.[...].
Mas como Deus não queria de António o seu martírio, a nova providência de uma furiosa tempestade o derrotou da Pátria, para onde tornava, e o levou a tomar porto em Itália. E porquê, ou para quê? Porque Deus lhe tinha mandado que luzisse a sua luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus. E para a sua luz luzir diante dos homens, era necessário que o mesmo Deus o levasse a terra onde houvesse homens, diante dos quais se pudesse luzir. Oh terra verdadeiramente bendita, Pátria da verdade, asilo da razão, Metrópole da Justiça, que não debalde te escolheu Deus para colocar em ti o seu eterno sólio![...]
Já agora, meu Santo, pode luzir a vossa luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus; porque já estais em terra de homens, diante dos quais se pode luzir. Tanto vos era necessária a ausência de uns, como a presença dos outros. Já os mesmos Sumos Pontífices vos chamam Arca do Testamento, já as vossas vozes são ouvidas como oráculos, já as vossas razões e sentenças são recebidas e veneradas como Divinas. E não porque vós hoje sejais outro do que dantes éreis, nem outros os documentos da vossa doutrina, mas porque tanto vai de lugar a lugar, e de homens a homens, Coram hominibus.
Esta felicidade de achar S. António homens diante dos quais luzisse a sua luz, como o Senhor lhe mandava, foi na minha opinião uma das maiores graças que o mesmo Senhor lhe concedeu, porque sendo muito poucos no mundo os homens que podem luzir, aqueles diante dos quais se possa luzir ainda são muito menos.

António Vieira, Sermão de Santo António, em Roma na Igreja dos Portugueses.


SP

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dia de Camões


Nesse seu mundo interior de desterro e de caos, o amor, quase sempre vivido à distância, ora geograficamente marcada no espaço, ora, sobretudo, medida e alongada pelo desdém, pela falta de correspondência ou até pelo esquecimento, interioriza-se; e o cânone poético que até então lhe servira para o cantar, altera-se profundamente: a celebração dos efeitos da beleza corpórea dá lugar à exaltação do amor suscitado por uma mulher que, vista à maneira dos neoplatonistas, lhe aparece como inefável “raio da divina formosura”. Esse será o caminho que lhe permitirá vencer as contingências do mundo e da vida, dolorosamente marcadas pelo fugaz engano do tempo passado e pelo amargo desengano do presente, através de uma ascese que o levará ao reencontro com a sua primeira essência divina. Feito este percurso, a confusão há-de transformar-se em harmonia, as falaciosas aparências do mundo visível na segura transparência do mundo inteligível, o pecado em graça, o efémero em eterno, a terrena fealdade de Babilónia na serena beleza da Jerusalém Celeste.
Mas Camões (por si e pelo homem que ele sente metonimicamente representar!) sabe que as suas forças não chegam para empreender essa ascese, preso como está às imperfeições do amor humano e à sua débil condição de pecador. É então que, entoando a sua palinódia de arrependimento, procura, sequioso, a fonte da graça no poder salvífico da Paixão de Cristo, consciente como está de que, pela fragilidade dessa sua condição, não reencontrará sem ela, na “terra da glória”, a essência divina da sua condição humana. Por isso e para isso, terá de trocar a frauta simbólica com que entoara os “cantares d’amor profano” pela lira dourada com que vai cantar “versos d’amor divino”.
Insatisfeito ou perturbado com os males do tempo presente, que a sua experiência de vida em cada dia dolorosamente lhe fazia sentir, Camões procurava superá-los no plano do transcendente e do intemporal, graças à sua extraordinária sensibilidade, à sua cultura e à sua capacidade de criação, pela qual a escrita poética se transformava num canto de desabafo, ainda que para ele não encontrasse destinatário adequado, pela singularidade desse mesmo canto ou pelo isolamento espiritual do seu emissor.
É nesta perspectiva que Os Lusíadas, apesar das características próprias do género épico, se integram perfeitamente no macrotexto da obra de Camões, visto que transpõem para o colectivo problemas semelhantes àqueles que o Poeta sentia no seu foro individual.
Ao empreender a elaboração da sua epopeia, conhecia já Camões, por experiência própria, a grave crise moral, social e política que afectava profundamente o corpo e a alma da Nação Portuguesa. Respondendo às expectativas que a consciência nacional viera desenvolvendo ao longo de mais de um século e que a teoria poética do Renascimento arvorara em requisito indispensável para a equiparação das literaturas modernas ao nível de qualidade das antigas, Camões decide celebrar na tuba canora e belicosa da epopeia “as armas e os barões assinalados” que, durante séculos, haviam construído a colectividade portuguesa; ao mesmo tempo, porém, não podia fechar os olhos à desoladora realidade que em cada dia lhe mostrava a pátria “metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza”. De novo se lhe deparava um penoso dissídio entre as glórias do passado do seu povo que, por imperativos de orgulho nacional e por necessidade de afirmação artística, desejava cantar, e os evidentes sinais de decadência de um presente onde as alturas do ideal haviam dado lugar cada vez mais amplo e fácil às baixezas do comportamento cívico dos indivíduos e da sociedade que formavam, também ela lançada no caos pelos graves pecados em toda a parte verificados contra o amor. Como conciliar o ideal com a realidade e os imperativos estéticos da poesia com a humana mesquinhez da vida? Aderindo ao preceito horaciano que fazia da beleza poética um meio de pedagogia (aut prodesse volunt aut delectare poetae!), Camões vai fazer do canto épico das glórias portuguesas uma lição de verdade cívica para os seus compatriotas de todos os tempos, tentando assim superar a tristeza colectiva do tempo que lhe estava presente.

Aníbal Pinto de Castro, Camões, Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido


LSP

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Eros, Philia, Agape


Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas, de certa forma, se impõe ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego só usa duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor – eros, philia (amor de amizade) e agape – os escritores neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), é retomado, com um significado mais profundo, no Evangelho de São João, para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota, sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado a beber veneno a eros que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim, uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não torna amarga, porventura, a coisa mais bela da vida? Porventura, não assinala ela proibições precisamente onde a alegria preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?
Mas será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos – de forma análoga, aliás, a outras culturas, viram em eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma “loucura divina” que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização de eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a “loucura divina”. Na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, “êxtase”, até ao Divino, mas queda, degradação do ser humano. Fica assim claro que eros necessita de disciplina, de purificação, para dar ao homem não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser
Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção de eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição de eros, não é o seu “envenenamento”, mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.

Bento XVI, Deus é Amor, 3-5
[Silva Pereira]