quinta-feira, 16 de julho de 2009

Testamento Vital II

Hieronimus Bosch,1475-80, Extracção da Pedra da Loucura

O projecto de lei

O projecto de lei, celeremente aprovado na generalidade, intitula-se “Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado”. Mas, pese embora a esta restritiva designação, trata ainda de outros temas de grande relevância ética, que são a criação legal da figura do procurador de cuidados de saúde (Art.º 16), a instituição das declarações antecipadas de vontade (Art.º 14 e 15) e, finalmente, o acesso do doente ao processo clínico (Art.º 20). Se este último aspecto pode ser relacionado com a informação, não se vislumbra qualquer nexo lógico entre este último, os testamentos vitais e a figura do provedor de cuidados de saúde. Relembremos que o consentimento pressupõe informação e proposta de actuação, por parte do médico; proposta essa a que o doente informado dá ou não o seu acordo. Já no testamento vital é inexistente a proposta médica, e a intervenção pertence totalmente à iniciativa do doente. Ou seja, num caso existe um momento alto do diálogo intersubjectivo que é a relação médico-doente; no outro, há apenas o doente, que expressa as suas indicações para uma eventual situação futura. Convém, por isso, analisar separadamente estes temas.

1. Os artigos 1º a 13º dizem respeito ao consentimento informado e não contêm nada que se não encontre descrito como eticamente correcto e aconselhável. Pode todavia observar-se que uma excessiva regulamentação e a preocupação de tudo legislar são potencialmente nocivas para o bem que se deseja promover. O consentimento informado não sai beneficiado por um espartilho jurídico que ameaça sufocar a sua nobreza humana e ética; mais, receia-se que, a fim de cumprir a lei, se burocratize e desumanize o procedimento, transformando o consentimento informado num mero documento legalmente útil, um formulário que o doente terá que assinar antes de ser objecto de qualquer cuidado de saúde. Ora, isto é o que se deve evitar a todo o custo.

2. Quanto ao testamento vital, o Projecto é inovador, ao estabelecer o direito do doente “a determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso…de se encontrar incapaz”. Trata-se de um documento escrito, revogável, considerado “fundamental”, mas cuja eficácia vinculativa é fortemente restringida pela existência de uma série de circunstâncias, entre as quais avultam o grande conhecimento da doença, da sua evolução, dos processos terapêuticos que se pretende recusar ou aceitar, etc. Refere-se ainda o Projecto à data do documento como factor a ter influência na sua eficácia, mas não se indica um prazo de validade. Conclui-se que estas diversas circunstâncias permitem avaliar “o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”, abstrusa redacção que põe em causa a seriedade do documento e encarrega um terceiro (quem? O médico? Um jurista?) de avaliar da “convicção” do declarante.
Se o Art.º 14º levanta fortes restrições ao carácter vinculativo do testamento vital, o 15º representa uma porta escancarada para a anulação desta declaração, quando determina que o médico “nunca respeita a declaração antecipada quando seja contrária à lei…, quando determina uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão” ou quando esteja evidentemente desactualizada. Em face destas reservas e limitações, pode dizer-se que nenhuma declaração antecipada tem probabilidades de ser eficaz, se o médico a interpretar como estando ferida por alguma ou algumas destas restrições; ou seja, em última análise, será o médico a decidir, invertendo-se assim o objectivo em mente do legislador.
3. O procurador de cuidados de saúde é uma figura enigmática, já que o Projecto nada diz sobre as suas características, condicionamentos e âmbito de competências, embora se refira (no Art.º 18) às “decisões” do procurador. Isto configurará um imenso poder atribuído a uma pessoa escolhida de entre o círculo de amigos ou familiares do declarante, mas que na realidade só deveria ser um curador do enfermo incapaz, decidindo no seu melhor interesse e no conhecimento da sua postura e opções. Porém, se o seu poder decisório for ilimitado, poderá optar por soluções que lesem o interesse do doente, por motivações várias (interesse económico, convicções religiosas ou ideológicas próprias, estado depressivo, etc.). Aqui não se apresentam circunstâncias restritivas, como se fez em relação ao testamento vital; significa isto que o procurador terá mais margem de manobra e poder decisório do que o próprio doente. Em relação a ambos poderá o médico declarar-se objector de consciência, o que está correcto, desde que tal objecção tenha carácter casuístico, já que haverá certamente decisões do doente ou do procurador que farão todo o sentido e que nenhum médico responsável e competente poderá rejeitar.

4. Finalmente, o acesso ao processo clínico (com excepção das anotações subjectivas feitas pelo profissional) é um direito do doente e não merece reparos substantivos, embora levante legítimas dúvidas quanto à aparente intenção de excluir o médico de um processo em que é legítimo participante; mas esse não é tema do que me deva ocupar, neste contexto

Observações conclusivas

Este Projecto é, como vimos, heterogéneo na sua constituição. No que concerne ao consentimento informado, nada acrescenta de verdadeiramente inovador em relação às normas deontológicas consagradas, frente às claras normas constantes do Código Penal, essas sim acompanhadas do enunciado das penas a cominar aos infractores (aspecto ausente deste Projecto). Parece pois inócua e dispensável esta tábua do políptico configurado pelo Projecto.
No que à declaração antecipada de vontade (ou testamento vital) diz respeito, temos de facto inovação. Perante as limitações que são inerentes ao próprio conceito (e às suas ambiguidades) e às fortes restrições previstas ao seu carácter vinculativo, são legítimas as dúvidas quanto ao seu real alcance e exequibilidade. Acontece ainda que se antevê um pronunciado aumento de conflitualidade entre paciente (e/ou família) e profissional de saúde, sempre que o testamento vital contenha indicações prescritivas ou, mais vezes, proscritivas de técnicas ou atitudes terapêuticas que sejam, na opinião médica, desajustadas, erradas ou lesivas da integridade ou até da vida do paciente; ou, pelo contrário, úteis e adequadas. Imaginemos só que o testamento vital interdita o recurso à reanimação e que o médico, perante a situação clínica de paragem respiratória, considera obrigatório o recurso à reanimação, com francas possibilidades de recuperação (integral ou parcial) do doente. Vai o clínico assistir de braços cruzados à morte de um doente que podia salvar, por lhe ter sido exibido um documento velho de anos? Se obedecer ao seu código e reanimar o doente, arrisca-se a ser duramente sancionado? Se assistir inerme à sua morte pode igualmente ser condenado por omissão de auxílio a doente em situação aguda…Esses conflitos serão ainda mais graves quando exista o procurador de cuidados de saúde (cujas decisões podem não ser conformes aos verdadeiros interesses do doente), já que nessas condições teremos oposição entre duas pessoas vivas e sãs, o profissional de saúde e o procurador. A objecção de consciência prevista no texto não poderá resolver o pleito, pois o médico lavará as mãos quanto ao problema do doente, ficando a resolução a cargo de terceiros que serão chamados a intervir, sem conhecimento da situação e do seu enquadramento.
São estes os fundamentos para considerar inoportuna e eventualmente nociva a iniciativa legislativa ora tomada. Acresce que dificilmente se poderá defender a necessidade e a urgência de legislar nesta matéria, no fim de um ciclo parlamentar, sem qualquer audição prévia dos mais directamente interessados (Ordens profissionais, associações de doentes, sindicatos, juristas, etc.) e sem debate público de uma questão que a todos diz respeito. Mais grave ainda é a total omissão de um pedido de parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que a própria lei estatui como obrigatório. Afirmei já que a aprovação desta lei constitui um erro político e um descaminho ético: por não ter sido precedida de audição e debate; e por não servir os interesses do doente, tornando mais difícil e potencialmente conflituosa a relação médico-doente, que se desejaria fosse o encontro de uma competência compassiva com uma confiança crítica. (…)
Não duvido das excelentes intenções dos proponentes, mas ponho directamente em causa a relevância e a urgência desta iniciativa. É de esperar que o Projecto não passe o crivo da discussão na especialidade e assim se evite mais uma lei inútil, geradora de conflitualidade, aberta a interpretações diversas ou até opostas, que embrulha no invólucro inócuo do consentimento informado os polémicos temas das declarações avançadas de vontade e da procuradoria de cuidados de saúde, com o fatal surgimento da questão da eutanásia passiva. Trata-se, afinal, de um cavalo de Tróia jurídico.

Walter Osswald, “ ‘Testamento Vital – Perspectiva Médica’”, Brotéria 168(2009) 432-436.

SP

Testamento Vital I

Domenico di Bartoli,1441-44, Cuidar dos Doentes

Consentimento informado

O reconhecimento dos direitos do doente, a análise e revisão da doutrina hipocrática, a crescente importância atribuída à autonomia da pessoa, também no campo da saúde e no da relação médico-doente, convergiram para a definição do conceito do consentimento informado e sua aceitação como imprescindível pré-condição para qualquer acto médico. Todas as organizações médicas, a nível mundial e nacional, subscrevem esta afirmação e propugnam pelo cabal respeito por esta peça fundamental na relação do profissional de saúde com o paciente. Qualquer intervenção, com fim diagnóstico ou terapêutico, exige a prévia explicação do procedimento e a obtenção do assentimento, concordância, autorização ou consentimento, a cargo da pessoa que é o sujeito, são ou doente, dos cuidados a prestar. O acto médico tem por óbvia motivação a intenção de beneficiar (“fazer bem ao”) o doente, mas este não pode sujeitar-se passivamente ao que lhe é proposto: tem-se aqui como ideal a conjugação e articulação da beneficência do prestador de cuidados com a autonomia daquele que os recebe. Claro que nesta relação de complementaridade podem facilmente surgir tensões ou até conflitos, quando uma das polaridades pressupostas pela relação se erige em força absoluta, ignorando ou subestimando a outra, na ânsia de um exercício do poder médico autoritário, na atitude muitas vezes designada por paternalista; e, por outro lado, é consensual não ser aceitável que o doente exerça a sua vontade de modo irresponsável, irreflectido ou caprichoso, convertendo o profissional de saúde num funcionário tecnicamente competente para a execução das ordens do paciente. O que se pretende não é mais do que associar o doente ao processo de tratamento, transformando-o de um sujeito passivo das resoluções de outrem num colaborador activo, responsável e capaz de tomar decisões.
O consentimento informado é hoje considerado como peça fundamental na relação médico-doente e encontra-se respaldado nos Códigos Penais de quase todos os países; entre nós, o Código Penal (artigos 150, 156 e 157) classifica de abusiva e ilegítima qualquer intervenção médica sobre quem não tenha dado o consentimento ou assentimento, depois de informado sobre as circunstâncias da intervenção proposta e em plena liberdade; e são pesadas as penas que sancionam o desrespeito por estes processos legais.

“Testamento vital”

Não havendo uma escolha terminológica unívoca, designaremos deste modo o documento também conhecido por declaração antecipada de vontade, por motivo da brevidade e da popularidade daquela designação, tão imprópria quanto esta. Trata-se de um documento em que a pessoa, antecipando uma situação clínica em que não possa exprimir a sua vontade (por estar inconsciente, demente ou incapaz por outro motivo), declara qual ou quais os tratamentos ou as técnicas que não deseja que lhe sejam aplicados. Afirmam os seus paladinos que assim se respeita cabalmente a autonomia da pessoa doente: incapaz de se pronunciar por ter perdido faculdades, faz-se ouvir através de uma declaração anteriormente exarada, com consequências a prazo mais ou menos longo. Este “testamento vital”, obrigatório nos Estados Unidos, não tem recolhido aplauso nem acolhimento no sistema jurídico da maior parte dos países. Para tal atitude negativa têm sido invocados os seguintes argumentos:
1. A pessoa que, em plena saúde ou estado inicial de doença progressiva, declara rejeitar determinadas medidas consideradas “heróicas” (tais como reanimação cardio-respiratória, diálise renal, quimioterapia citostática, etc.), por as entender como indignificantes ou lesivas da sua integridade, não pode ter uma noção clara de qual o seu real peso ou custo psicológico nem de qual será a sua vontade e desejos na situação que apenas antecipa, mas não experiencia.

2. A valia legal do testamento vital implicaria a total sujeição do médico ao paciente e obrigaria o profissional a assegurar-se da não existência de uma oposição consignada em eventual testamento vital antes de iniciar qualquer manobra, mesmo se urgente, num doente inconsciente ou incapaz – e a actuar já não segundo as normas médicas, mas de acordo com o prescrito pelo doente.

3. O testamento vital pode dar origem a sérios conflitos, se nele se exarar uma disposição que ponha em causa bens indisponíveis ou os bons costumes, a que expressamente se refere o Código Penal, tais como a vida ou a integridade física do doente. Por exemplo, se no testamento o declarante proibir o recurso à reanimação, o doente acometido de paragem cardio-respiratória morrerá, embora fosse perfeitamente recuperável. Neste caso, um bem indisponível, a vida, seria sacrificada, e o médico poderia ser considerado como homicida por negligência. Por outras palavras, o testamento vital, pode abrir uma porta à prática da eutanásia (neste caso, passiva, por a morte resultar de omissão de um acto indispensável à manutenção da vida; mas a distinção entre eutanásia passiva e activa não tem, como se sabe, qualquer relevância ética).

(cont.)

Walter Osswald,“ ‘Testamento vital’. Perspectiva médica”, Brotéria 168(2009) 429-432.


SP

terça-feira, 14 de julho de 2009

O Milagre Possível


Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.
Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar. Senhor, imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, diz-se que lá ele foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Senão, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha.
Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale de Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não doi até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não doi sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo, mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos.


João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

SP

sábado, 4 de julho de 2009

Bíblia e Violência


Na história de Israel, a partir da emergência de uma autocompreensão da Nação como sociedade-alternativa verificou-se igualmente uma transformação ao nível da própria imagem de Deus. Verificou-se, antes de mais, da afirmação de um Deus único, o qual, por isso mesmo, se contrapõe ao panteão dos deuses em que fundavam a sua legitimidade os sistemas sociais das cidades-estado de Canaã. Necessariamente, este Deus começou por ser um deus-guerreiro: Javé, senhor dos exércitos. Só depois da experiência do exílio é que Israel começou a compreender que o caminho que conduz à sociedade justa passa também pela perseguição e pelo sofrimento; ou seja, só então é que as projecções guerreiras do Deus de Israel começaram a ser postas em causa. Tornava-se então possível que, a partir daí, e pelo menos em breves momentos profeticamente privilegiados, o rosto do verdadeiro Deus começasse a vir ao de cima – assim expressamente, de forma paradigmática, na figura do Servo de Javé, que encontramos no quarto poema do Servo Sofredor.(...)
A imagem de um Deus próximo dos perseguidos começa a manifestar-se apenas em associação com a experiência daqueles a quem os Salmos designam ora por “justos perseguidos” ora por “sofredores inocentes”. Com estes, porém, não devemos identificar apenas um ou outro caso excepcional. A esta classe de homens pertence todo aquele que, qual bode expiatório, se descobre vítima de perseguição e até mesmo de expulsão. Quando a um ser humano transformado em bode expiatório é dada a compreensão de ser apenas por puro acaso que ele, e precisamente mais ninguém, se encontra na posição de ser portador da culpa que recai sobre todo o grupo humano a que pertence, e de que desta ou de outra forma cada um dos membros do respectivo grupo se tornou corresponsável pelo caos existente na respectiva sociedade, ele transforma-se simultaneamente na figura do homem justo perseguido ou no sofredor inocente no sentido mais estrito destas expressões. Entre os seres humanos, o bode expiatório representa sempre aquele que é perseguido em favor de um mecanismo violento de pacificação social. Mas na medida em que a própria vítima cai na conta deste mecanismo e a Deus levanta a sua voz de protesto, o que se dá é, nem mais nem menos, a possibilidade de um novo conhecimento de Deus.
Por outras palavras, quando, por exemplo, nos Salmos, um clamor se levanta por parte dos inocentes ou daqueles que simplesmente se sabem perdoados por Deus e a este fazem saber o seu sentir, o que está em causa é já a aurora de um mundo novo. Ainda que, pelo menos em certa medida, este Deus por quem se clama continue ainda a recorrer a processos de morte na implantação da justiça, a grande novidade é que, a partir destes momentos especiais, Deus se revela claramente não afectado pela projecção sacrificial dos vitimadores. Desta forma, vai-se aproximando o momento em que o anseio de vingança se começa a transmutar em acto de pura confiança em relação ao Deus que, por fim, se revelará ser das vítimas e não dos algozes. Quando isto acontece, dá-se o fim da era de Deus como projecção do homem. No rosto do homem perseguido manifesta-se a luz do Deus verdadeiro.(...)
Baseando-nos no contributo de René Girard, a presente reflexão leva-nos antes de mais à conclusão de que, de forma alguma, nos devemos envergonhar quer do Antigo Testamento quer da imagem de Deus que ele nos dá. Ou seja, não precisamos de definir qualquer novo cânone bíblico em que praticamente se arrume o Antigo Testamento. Pelo contrário, o que se afirma é precisamente que a Bíblia na sua totalidade, ou seja, aquilo a que René Girard chama “revelação judaico-cristã” não visa senão libertar-nos da opressão da violência, dando realização aos nossos sonhos humanos mais profundos.(...)

Dado que no conjunto da Sagrada Escritura o Antigo Testamento representa, pelo menos, de uma ou outra forma, as sociedades do mundo, de modo algum nos deve admirar o facto de o mesmo revelar a sua profunda afectação pela violência, mesmo no que diz respeito à imagem de Deus. Todas as suas aportações no que se refere à imagem de Deus exigem, por isso, um esforço de relativização. A partir das afirmações do Novo Testamento podemos olhar para o Antigo e reconhecer que muitas das coisas que aí se dizem acerca de Deus devem ser simplesmente relegadas para o campo da história no que se refere ao processo mediante o qual a humanidade, desde o início, se encontra a caminho da imagem de um Deus não contaminado pela violência. Num contexto profundamente marcado por uma visão evolutiva das coisas, podemos também falar de uma sociedade em processo de libertação em relação à violência e em transição para a não-violência.(...)
É sobretudo por estas razões, portanto, que a parte da Bíblia a que damos o nome de Antigo Testamento constitui caminho importante no que diz respeito ao desmascaramento da violência. Justamente na medida em que nos dispomos a percorrer o mesmo caminho que nele se faz e, ao mesmo tempo, não nos envergonhamos da descoberta que fazemos de estar do lado dos perseguidores e violentos do mundo, o resultado será não apenas um desvelamento do nosso próprio pendor para a violência, o qual sempre gostaríamos de poder dissimular, mas também a transformação da própria imagem que temos de Deus, sobretudo quando o envolvemos em actos ou atitudes de violência.(...)
É sobre as vítimas não-violentas que a fúria do mundo alastra até à exaustão. Mas Deus surge, no fim, como vencedor, pois dele nos fala a Bíblia como triunfador sobre a morte. Só que o triunfo do Deus do amor não se separa do Deus que é vítima do terror. Assim, toda a tentativa de ler o Novo sem o Antigo Testamento não é mais do que o resultado de uma estratégia, ainda que inconsciente, de encobrimento da violência em todas as suas formas.

Norbert Lohfink, “Deus e a Violência: o Antigo Testamento à Luz de René Girard”, Revista Portuguesa de Filosofia 56(2000), 37-52
SP