terça-feira, 20 de julho de 2010

Uma nova célula, uma nova vida(cont)


Os autores do trabalho em análise referem-se expressamente, na parte final, dedicada à discussão dos resultados, às consequências de natureza ética e/ou social que a sua descoberta possa ter, sugerindo, muito correctamente, que haja ampla discussão pública acerca destas consequências. É para o que, de modo muito sucinto, tentaremos contribuir.
Pensamos que, e antes de iniciar o elenco das questões éticas em apreço, será importante sublinhar que as questões éticas relacionadas com a biologia sintética não são, na sua essência, distintas das encontradas em novas áreas emergentes. Assim, a abordagem ética à biologia sintética é em tudo similar à abordagem das grandes questões éticas que se colocam noutras áreas de desenvolvimento recente (p.e. nanotecnologia, genética, neuroimagem). Importa ainda sublinhar que (...), em nosso entender, os excepcionalismos nas análises éticas destas diferentes áreas emergentes, nanoética, genética, neuroética, devem ser evitados, uma vez que fragmentam uma mesma área do conhecimento. Assim, aceitando que a intensidade das questões se coloca de forma diferente consoante a área em apreço, os grandes princípios são os mesmos.
Em primeiro lugar, entendemos que a nova técnica descrita se exime a uma valorização ética. Na realidade, como geralmente acontece e é universalmente reconhecido, uma técnica é, em si mesma, moralmente neutra ( e só não é se envolver o recurso a passos que sejam lesivos da liberdade, dignidade e direitos humanos, ofendam os interesses dos animais ou prejudiquem o equilíbrio ecológico) e a avaliação ética transfere-se, nesta situação, para os usos que desta técnica se façam. O exemplo clássico é o da cisão do átomo, com consequências benéficas quando fornece energia a populações, com execráveis consequências quando aproveitada para fins militares.
No caso em estudo, a técnica pode resultar em benefícios importantes: se os cientistas conseguirem modificar seres vivos de modo a transformá-los em produtores celulares de substâncias com potencial terapêutico (sobretudo se inovador) ou económico, parece óbvio que só se pode saudar o avanço assim obtido. Mas mesmo nesta eventualidade, podem alguns formular reservas éticas, baseadas na intervenção humana sobre a vida vegetal ou animal, disruptiva do equilíbrio naturalmente existente: os ecologistas dirão, talvez, que assim como é vedado ao Homem contribuir para a extinção das espécies, também lhe deve ser proibido criar novas espécies. Mais importante é o risco da difusão dessas espécies modificadas fora do meio laboratorial (ou industrial, se forem utilizadas em grande escala): se uma espécie bacteriana modificada se espalhar e multiplicar no ambiente, o que acontecerá a outras bactérias, indispensáveis inclusive à vida humana? Perderão o seu espaço vital, modificar-se-ão também? Há aqui riscos óbvios que obrigarão, desde o início, à adopção de rigorosas medidas de segurança na investigação em causa.
O mau uso da técnica poderia conduzir à preparação de bactérias produtoras de toxinas letais ou de exaltada virulência ou dotadas de multi-resistência frente aos antibióticos. Espécies destas poderiam ser usadas em acções de guerra bacteriológica e conduzir à exterminação de populações inteiras, por inoculação da água de consumo ou por nebulização na atmosfera. É claro que estes cenários apocalípticos são altamente improváveis, mas a sofisticação crescente de redes fundamentalistas e terroristas aconselha à maior prudência e a uma regulação vigilante de toda a investigação que se venha a fazer nesta área.


W. Osswald e Ana Sofia Carvalho, “Uma nova célula, uma nova vida?”, in Brotéria, 5/6, vol. 170 (Maio/Junho 2010), pp. 441-443.
SP

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