terça-feira, 20 de julho de 2010

Uma nova célula, uma nova vida?


O trabalho publicado por Craig Venter e colegas na revista Science, uma das melhores revistas científicas do mundo, é, sem dúvida, um importante contributo não apenas para a modificação genómica bacteriana, (...) mas também para a “Biologia sintética” como área de investigação própria, plena de promessas e perspectivas. O que esta equipa conseguiu, ao fim de anos de tentativas, pode resumir-se do seguinte modo, sem entrar em pormenores técnicos especializados:
A uma bactéria banal (um micoplasma, com poucos genes) foi retirado o material genético, que foi substituído por outro, preparado pelos cientistas. A bactéria multiplicou-se e as bactérias dela descendentes continuaram a apresentar o genoma que fora inoculado à célula mãe, isto é, criou-se em boa verdade uma nova espécie bacteriana, que poderá continuar a reproduzir-se sem limite de tempo. Para aumentar a proeza, o ADN inoculado não era um ADN “natural”, isto é, existente como tal na natureza, pois fora preparado a partir de sequências de ADN nativas, juntando-as como se fossem obtidas por um sistema de cortar e colar.
São, pois, duas as grandes inovações deste trabalho: em primeiro lugar, o genoma da bactéria não foi apenas modificado, por adição de um gene (...), mas inteiramente substituído (o que é radicalmente novo); em segundo lugar, o ADN inoculado não era o de outra bactéria, antes tinha sido obtido por construção, a partir de blocos sequenciais adrede postos em contacto e, por assim dizer, encaixados uns nos outros (o que até agora ninguém conseguira fazer).
Estamos, pois, em presença de uma dupla proeza científica de elevado valor heurístico. De facto, é de prever que não apenas esta equipa, mas muitos outros cientistas tentarão avançar nesta área, a partir do modelo relativamente simples (genoma bacteriano com reduzido número de genes, reprodução assexuada, número elevado de gerações em breve lapso de tempo) para alcançar resultados de relevância prática (que este trabalho não tem), tais como a “domesticação” de bactérias ou até de seres multicelulares de modo a torná-los produtores de substâncias com interesse terapêutico (citostáticos, imunomodeladores, vacinas, antibióticos, etc.) ou comercial (matérias primas, hidrocarbonetos, combustíveis...).
Todavia, os comentários e interpretações veiculados pelos meios de comunicação transvazaram, bastantes vezes, desta área de verdade científica para difundirem noções hiperbólicas e sensacionalistas que não eram merecidas por tão importante trabalho científico (mas de que Craig Venter, há que reconhecê-lo, se não afastou suficientemente nas entrevistas que concedeu – ou fomentou). Assim, disse-se que tinha sido criada uma célula artificial ou que o ADN, código da vida, tinha sido fabricado em laboratório, o que conduzia à certeza de que o homem podia fabricar a vida, criar seres vivos, substituir-se ao Deus criador que as religiões monoteístas anunciam.
Ora, é bem de ver que tais ilações são erradas, e falsos os seus pressupostos. Como acima se fez notar, a equipa de Venter não fabricou uma célula, antes usou células bacterianas banais; é certo que as modificou geneticamente, o que fora já realizado em menor escala, pelo que se poderá, quando muito, afirmar que foi criada uma nova estirpe (ou talvez espécie) bacteriana, mas nunca que foi criada uma célula viva. Por outro lado, o ADN inoculado não foi sintetizado ou fabricado, mas antes obtido a partir de sequências pré-existentes na natureza, pelo que é abusivo partir para especulações como a de criação de vida artificial.

W. Osswald e Ana Sofia Carvalho, “Uma nova célula, uma nova vida?”, in Brotéria 5/6, vol. 170 (Maio/Junho de 2010), pp. 439-441.
SP

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