terça-feira, 17 de junho de 2008

Literatura e Sagrado (3)

DÜRER, Albrecht: Hand Study with Bible

1. O sagrado manifesta-se literariamente na linguagem metafórica, bem como na referência a certos mitos e símbolos. E não necessariamente na presença de elementos dogmáticos, de textos ou de doutrina teológica, pertencentes às várias religiões institucionalizadas.

O ser humano é um animal simbólico por natureza. E a própria expressão artística não é inteligível fora do contínuo recurso a um certo imaginário – conjunto de mitos, imagens e modelos de representação humana e cultural do mundo. Essas estruturas antropológicas do imaginário impregnam todas as criações e as interpretações humanas. E nem certos racionalismos mais estreitos conseguiram diminuir a importância desse imaginário enformador de sentido.

Ora, no âmbito desse imaginário colectivo, a linguagem humana, sobretudo na sua dimensão artística, está repleta de referências e manifestações hierofânicas, de ressonância transcendental. É, pois, neste sentido (acentuado por Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano) que devemos falar no princípio de sacralidade aplicado à literatura:

“A fim de indicarmos o acto da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania. Este termo (...) exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de sagrado se nos revela. Pode dizer-se que a história das religiões – desde as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo”.

Ao longo da história, o ser humano procura atribuir um sentido à vida e aos seus tempos cíclicos, sentindo-se atraído pelo transcendental. A esperança de encontro com o transcendente após a morte redime o homem do sentimento de efemeridade.

2. A presença do sagrado na escrita literária contemporânea pode revestir-se de uma enorme variedade de registos – adesão total e manifesta; presença débil ou disfarçada; havendo também lugar para a tentativa de esvaziamento ou mesmo de negação.

Genericamente, nas várias tendências enunciadas, predomina uma atitude de inquietação; muitas vezes sobrevém uma postura inquiridora e dubitativa; enfim quase sempre se desenrola um diálogo (implícito ou visível) com uma riquíssima tradição aberta ao sagrado.

Por mais generalizadas que sejam as ofensivas de um positivismo estreito, ou do laicismo e da anti-religiosidade militantes de hoje, é quase impossível a erosão de séculos de história: um imenso legado artístico-cultural sempre aproximou o homem do transcendente; e confrontou-o reiteradamente com o mistério da vida e da morte. É através dessa linguagem artística, grávida de sentidos, que o homem se pensou; se relacionou com o sagrado e projectou outras dimensões; enfim, se redimiu do agudo sentimento de efemeridade.

Por tudo isto, a leitura do sagrado nos textos literários – de ontem ou de hoje – mostra-se um caminho hermenêutico bastante fecundo, revelador de temáticas centrais e riquezas semânticas insuspeitadas. Sobretudo quando a leitura crítica se detém na interpretação de determinadas ocorrências simbólicas, metafóricas e imagéticas. É justamente essa linguagem mais densa e carregada de significados que estabelece a ponte com a dimensão do sagrado.
| Cândido Oliveira Martins

Sem comentários: