quarta-feira, 4 de junho de 2008

O axioma de Amos Oz!

“Faz a paz e não o amor”. É este o axioma proposto pelo conhecido escritor Amos Oz, no seu livro Contra o Fanatismo1, para que se estabeleça uma verdadeira comunidade humana. Esta aparente inofensiva expressão coloca-nos perante dois conceitos chave relativos ao comportamento do ser humano na sua relacionalidade com a alteridade.
Esta posição entendida no seu todo coloca uma série de interrogações que cada um poderá responder interiormente. Será possível a paz sem a lógica do amor? Não será ela uma atitude convertida do amor? Como estar em paz sem amar? Será a paz algo abstracto e conceptual ou será feita com e para pessoas que em si mesmas já são manifestação do amor? Ao ceder aos nossos clichés sociais habituámo-nos a compartimentar tudo em sistemas estanques e isolados que não raramente resultaram e resultam em sistemas totalitários e totalizantes. Será que basta haver paz mesmo quando ser humano entre si não se ame? O conceito de amor é bastante amplo e complexo porque implica sempre um jogo de relações. Amar não é estar subvertido ao outro. O amor diz a relação com a alteridade e permite que o outro se torne transcendente a todos particularismos manipuladores. Amar é estar já em situação de paz. Sem amor, como é que se pode realizar a paz sem sentir ódio pelo outro (uma vez que não se ama)? Pior de tudo é a indiferença, porque uma relação feita sem olhares e sem amor, ainda que incómoda, perturbante, leva ao caos, a uma vida excessivamente melodramática.
Perante isto, não seria melhor dizer ‘faz a paz no amor’, ainda que se tenha de viver muitas vezes sob o signo do paradoxo? Aliás, não será o paradoxo aquilo que dá sentido à nossa existência? Amar significa estar em paz, em diálogo, em relação edificante, e paz significa promover o amor em situações humanamente incompreensíveis. Mas de que paz se trata? Meramente humana? Se sim, ela é tão débil quanto é a força e a vontade humanas. O amor é, por isso, aquela possibilidade que nos faz transcender a nós mesmos, que está para além das nossas vontades e desejos, é possibilidade de afrontar e confrontar dignamente determinados contextos (é o que algumas vezes nos faz fugir indignamente da terra para subir à dignidade do alto dos céus!). A partir da lógica do amor lutamos pelo outro contra todas as formas de injustiça e rejeição (de uma pátria, de uma terra, de uma dignidade, de um nome, de uma identidade…), sacrificamo-nos pelo outro, morremos pelo outro… e será isto um “amor altruisticamente fanático”? O que fazemos pelo amor do outro fazemo-lo também por amor a nós mesmos porque acreditamos que isso é verdade e possível. O amor é um pleroma concreto onde a diferença de cada um e de todos é respeitada numa diferença substancial e pluricultural.
A paz não se faz apenas com ausência de guerra; faz-se por aquilo que se pode ir construindo, pelo que se pode “salvar salvando”, e isso dá-se na sublimidade do amor como acto de entrega profunda acima de todos os interesses e utilitarismos individuais. Um amor que nos interpela face ao rosto do humano comum, que por vezes é sofrimento e que exige sacrifícios, não por cada homem concebido singularmente, mas pelo amor universal que contém cada ser humano na sua particularidade. Assim, o amor torna-se uma interessante luta pela paz. Se esta não for consequência do amor, simplesmente se converte numa guerra silenciosa, de bastidores, de aniquiladores cirúrgicos, de franco-atiradores, pronta a rebentar ao mínimo impasse dissonante (vejamos a barbárie que assistimos nos confrontos actuais no panorama mundial). Uma paz sem os fundamentos do coração seria gélida, fria e demasiadamente débil, e até desumaizante, porque consagrada a todo o custo, em virtude da morte física do outro.
Com esta proposta de Amos Oz seria o mesmo que dizer: a partir da agora haverá paz para sempre, mas teremos de deixar de nos amar, o importante é a boa vizinhança, ou nas suas próprias palavras “se vier a haver o Estado de Israel e o Estado da Palestina a viverem lado a lado como vizinhos honestos, sem opressão, sem exploração, sem derramamento de sangue, sem terror, sem violência, ficarei satisfeito mesmo que não prevaleça o amor”. O que é que aconteceria caso isto se sucedesse…? Uma revolução silenciosa em que os fracos (universalmente considerados) jamais teriam voz. Seriam aniquilados, não teriam lugar neste mundo… Padeceriam por serem fracos! Este estar em paz não faria sentido, porque ao mínimo abalo ruiria, e então nesse caso seria melhor uma “guerra declarada”, de rostos visíveis. Assim, pelo menos, saberíamos quem era o atirador, daríamos conta que existe mais alguém para além de nós mesmos e que na vida há muita coisa pela qual vale a pena lutar.
O desejo da paz é já um desejo impulsionado pelo amor que une o género humano ao resto da criação. A paz só surge quanto brota do amor profundo que a todos nos une. Mas de que amor falámos? Egoísta, “fanático altruísta”? Certamente que não. É um amor total que com-partilha amores diferentes e é capaz de unir o género humano à grande causa da vida que, ao fim e ao cabo, é a sua própria causa.
Sem amor, ilusão das ilusões, a paz é ilusão!
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1 Amos Oz, Contra o Fanatismo, Asa, 2007,44.

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