terça-feira, 3 de junho de 2008

Literatura e Sagrado (2)


1. Desde tempos imemoriais que a literatura e o sagrado surgem intimamente associados. O sagrado e a transcendência transformaram-se mesmo em temas centrais das artes e em particular da literatura como arte da palavra. Entre múltiplas aproximações e resistências, literatura e sagrado são constantes intemporais, que atravessam toda a cultura humana através dos séculos, sendo incompreensíveis uma sem a outra.

Toma-se aqui sagrado na ampla acepção das investigações transdisciplinares de Mircea Eliade e Rudolf Otto, na conhecida oposição sagrado/profano. Neste sentido, a presença sagrado para o homem não é automaticamente identificável com o “religioso”; e ainda menos com a realidade histórica da religião ou religiões institucionalizadas.

2. Ao mesmo tempo, não podemos esquecer um dado histórico fundamental, em que radica a mais antiga relação de proximidade entre literatura e sagrado: nas diversas e influentes civilizações, os mais remotos textos literários conhecidos, como o “Poema da Criação” babilónica, são textos eminentemente tocados pelo sagrado.

Na sua origem, aliás, a poesia era indissociável do sagrado. Ao longo dos tempos, a palavra literária sempre sentiu ou expressou o apelo íntimo por algo que transcende o próprio homem: “L’homme dépasse infiniment l’homme” (Pascal). Consciente da sua efemeridade, o homem sente em cada tempo a existência de algo que o ultrapassa. Acreditar num transcendente é uma forma de buscar um sentido para a existência.

Esta constatação é talvez mais agudamente sentida nas chamadas “religiões do Livro” (judaísmo, cristianismo, islão), religiões reveladas e históricas onde o Livro ocupa um lugar central. O próprio uso literário enforma muitos dos textos (em sucessivas versões e traduções) foi abrindo caminho a técnicas de leitura e níveis de interpretação que tenham em conta “a letra” e “o espírito”.

3. Estamos a comemorar o IV Centenário do Nascimento do Padre António Vieira (1608-2008), figura absolutamente singular da história, da cultura e da literatura portuguesas. No próximo dia 7 de Junho, sábado, a Faculdade de Filosofia dedica um Colóquio evocativo a esta figura multifacetada de jesuíta e missionário, de diplomata e de político, de visionário e de utópico, de orador e de escritor genial.

Ora, vários escritores contemporâneos – como Fernando Luso Soares, José Saramago, Luísa Costa Gomes, Seomara da Veiga Ferreira, Maria João Martins, Inês Pedrosa, Miguel Real, bem como os brasileiros Ana Miranda ou Moacyr Scliar, entre outros, evocam a figura de Vieira nas suas obras actuais (teatro, romance, poesia), citando abundantemente os seus escritos, realçando a actualidade deste assombroso homem da palavra e da acção. A título de exemplo, num destes romances pode ler-se: “A espiritualidade e a poesia andam de mãos dadas”.

A título de exemplo, fiquemos com uma passagem do romance histórico de Seomara da Veiga Ferreira, em António Vieira, o Fogo e a Rosa [2002], onde a escritora coloca o idoso Vieira a evocar o seu passado diante de Bento de Castro, médico da rainha Cristina da Suécia, nestes termos reflexivos:

A arte é um dom de Deus e o artista, o seu mediador, aquele que cumpre os Seus desígnios pela Sua vontade e para o serviço dos homens. O Criador tudo concebeu, mas deu-nos a liberdade de escolha, essa santa liberdade pela qual tudo merece ser sacrificado. Até a vida. Eu já falei algumas vezes da arte, da arte que pode transformar o informe num ser vivo, criatura de Deus, na arte que molda a pedra bruta para lhe criar o sopro do espírito. Disse-o e escrevi-o no Sermão em que falei da forma e da matéria e dei como exemplo o estatuário...

Andava na minha peregrinação, percorrendo os inóspitos caminhos, suado, sujo, às vezes a veste rota, as botinas esfrangalhadas, topando com desconhecidos animais de um bestiário fabuloso que a Europa nunca viu. Depois, a substituição da liberdade dos trilhos da selva pela meditativa paz dos cubículos, onde cada um se refugia no silêncio da sua alma, só tocado pela palavra também silenciosa, imerso no silêncio profundo de diamante e fogo, de Deus, que reveste as nuas paredes de frases e que faz folhear os livros e embeber de paz a alma dos ascetas. E todo o pensador é um asceta porque é na solidão, no confronto comigo próprio, mas tocado sempre pelo dedo da divindade, que se enforma o seu pensamento, se afeiçoa o seu espírito à Ideia, se eleva a sua mente ao Conhecimento, à Arte, à Perfeição, à nossa peculiar perfeição que, como humanos, apesar das nossas limitações, podemos alcançar e usufruir.

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Cândido Oliveira Martins

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