quinta-feira, 19 de junho de 2008

António Vieira (V)


PALAVRAS COMO ESTRELAS

O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu. Caeli enarrant gloriam Dei, et opera manuum eius annuntiat firmamentum, diz David.[1] Suposto que o Céu é pregador, deve de ter sermões, e deve de ter palavras. Sim, tem, diz o mesmo David: tem palavras e tem sermões, e mais muito bem ouvidos: Non sunt loquellae, neque sermones, quorum non audiantur voces eorum[2]. E quais são estes sermões e estas palavras do Céu? As palavras são as estrelas: os sermões são a composição, a ordem, a harmonia, e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do Céu com o estilo de pregar que Cristo ensinou na terra! Um e outro é semear: a terra semeada de trigo; o Céu semeado de estrelas. O pregar há-de ser como quem semeia[3], e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas estão por sua ordem[4]; mas é ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras. Se de uma parte está Branco, de outra há-de estar Negro; se de uma parte está Dia, da outra há-de estar Noite; se de uma parte dizem Luz, da outra hão-de dizer sombra; se de uma parte dizem Desceu, da outra hão-de dizer Subiu. Basta que não havemos de ver num sermão duas palavras em paz? Todas hão-de estar sempre em fronteira com o seu contrário?[5] Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão-de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. Assim há-de ser o estilo da pregação, muito distinto, e muito claro. E nem por isso temais que pareça o estilo baixo: as estrelas são muito distintas, e muito claras, e altíssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto: tão claro que o entendam os que não sabem; e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. O rústico acha documentos nas estrelas para a sua lavoura, e o mareante para a sua navegação, e o matemático para as suas observações e para os seus juízos. De maneira que o rústico, e o mareante, que não sabem ler nem escrever, entendem as estrelas; e o matemático, que tem lido quantos escreveram, não alcança a entender quanto nelas há. Tal pode ser o sermão: estrelas, que todos as vêem, e muito poucos as medem.

António Vieira, Sermão da Sexagésima

[1] Os Céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia as obras de suas mãos(Sl 18,2).
[2] Não são palavras nem discursos cuja voz não se ouça (Sl 18,4)
[3] Todo o sermão se baseia na parábola do pregador como semeador, e da palavra como semente. Um pouco antes dissera Vieira que “o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte”.
[4]Juízes 5,20.
[5] Crítica ao estilo culto da pregação barroca.

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