sexta-feira, 6 de junho de 2008

Sarça ardente, António Vieira (IV)

Nicolas Froment, Sarça ardente, 1476

Vê Moisés no deserto uma sarça, que ardia em fogo e não se queimava. Pasma da visão, parte a vê-la de mais perto; e quanto mais caminha, e vê, tanto mais pasma. Ser fogo, o que estou vendo, não há dúvida: aquela luz intensa, aquelas chamas vivas, aquelas lavaredas ardentes, de fogo são; mas a sarça não se consome; a sarça está inteira; a sarça está verde. Que maravilha é esta? Grande maravilha para quem não conhecia o fogo, nem a sarça; mas para quem sabe que o fogo era Deus, e a sarça Maria, ainda era maravilha maior, ou não era maravilha. O fogo era Deus, que vinha libertar o povo. Assim o diz o Texto. A sarça era Maria, em quem Deus tomou forma visível, quando veio libertar o género humano. Assim o diz S. Jerónimo, Santo Atanásio, S. Basílio, e a mesma Igreja. Como o fogo estava na sarça como Deus estava em Maria, já o seu fogo não tinha actividades para queimar; luzir sim, resplandecer sim, que são efeitos de luz; mas queimar, abrasar, consumir, que são efeitos de fogo, isso não, que já lhos tirou Maria. Já Maria despontou os raios ao Sol; por isso luzem, e não ferem; ardem, e não queimam; resplandecem, e não abrasam. Parece-vos maravilha, que assim abrandasse aquela benigna Luz os rigores do Sol? Parece-vos grande maravilha que assim lhe apagasse o fogoso e abrasado, e lhe deixasse só o resplandecente e luminoso? Pois ainda fez mais.
Não só abrandou, ou apagou no Sol os rigores do do fogo, senão também os rigores da luz. O Sol não é só rigoroso, e terrível no fogo com que abrasa, senão também na luz com que alumia. Em aparecendo no Oriente os primeiros raios do Sol, como se foram archeiros da guarda do grande Rei dos Planetas, vereis como vão diante fazendo praça, e como em um momento alimpam o campo do Céu, sem guardar respeito, nem perdoar a cousa luzente. O vulgo de Estrelas que andavam como espalhadas na confiança da noite, as pequeninas somem-se, as maiores retiram-se, todas fogem, todas se escondem, sem haver nenhuma (por maior luzeiro que seja) que se atreva a parar, nem a aparecer diante do Sol descoberto. Vedes esta majestade severa? Vedes este rigor da luz do Sol, com que nada lhe pára, com que tudo escurece em sua presença? Ora deixai-o vir ao signo de Virgem, e vereis como essa mesma luz fica benigna e tratável.
António Vieira, Sermão do Nascimento da Virgem Maria

Sem comentários: