
1. Vergílio Ferreira defendeu em diversos escritos que a Arte ocupa em grande medida, contemporaneamente, o vazio de uma sociedade pós-secular e agonicamente racional. Numa cultura que abandonou Deus e os valores cristãos, mas que continua a ser confrontada com as limitações e angústias da condição humana, a Arte e a sua funda expressão simbólica preenchem o lugar do sagrado.
Tal como outras artes, a literatura actual dá voz à plangente interrogação existencialista do homem, desamparado na sua incomunicabilidade e solidão, bem como na irredutibilidade de ser confrontado perante a inexorabilidade da morte. Através da expressão artística, reencontram-se o sagrado e o estético: o ser humano eleva-se de forma transcendente; e recupera as marcas perdidas do homem religioso. A noite do mundo é iluminada pelo brilho inquietante e eterno da palavra inspirada.
2. A título de breve ilustração dos pensamentos anteriores neste blog – sobre as manifestações de sacralidade contidas na expressão literária – e sem desnecessários comentários críticos, leiam-se dois poemas de Ana Luísa Amaral*, retirados do seu mais recente livro de poesia:
Tal como outras artes, a literatura actual dá voz à plangente interrogação existencialista do homem, desamparado na sua incomunicabilidade e solidão, bem como na irredutibilidade de ser confrontado perante a inexorabilidade da morte. Através da expressão artística, reencontram-se o sagrado e o estético: o ser humano eleva-se de forma transcendente; e recupera as marcas perdidas do homem religioso. A noite do mundo é iluminada pelo brilho inquietante e eterno da palavra inspirada.
2. A título de breve ilustração dos pensamentos anteriores neste blog – sobre as manifestações de sacralidade contidas na expressão literária – e sem desnecessários comentários críticos, leiam-se dois poemas de Ana Luísa Amaral*, retirados do seu mais recente livro de poesia:
VISITAÇÃO
Um anjo aqui desceu (terá descido?),
dizendo que o silêncio humano outrora
fazia agora parte do divino,
e o que o templo maior, rasgado o pano,
tinha passado a ser culto de nós.
Do éter rarefeito veio a voz,
queixando-se das sombras da cidade:
que o mundo era só verde, e que o azul
só o azul do céu, com letra humana
gravada numa mesa de madeira.
Um anjo desceu (há provas mais)
e aqui ficou, exausto das canseiras
de ser mediador entre dois mundos,
de ter em dois segundos que voar
e mergulhar depois em três segundos.
E aqui ficado, o anjo adormeceu,
sonhando com estações e com instantes,
aos poucos esquecendo tempos dantes
e a água densa do eterno mar.
E quando se rasgou o tempo outro
e ele acordou, refeito e bocejante,
viu que era bom ter nome, e sede, e fome,
cinco dedos nas mãos – algum olhar.
OS TEARES DA MEMÓRIA:
MNEMÓSINE E SUAS FILHAS
Desejava esquecer, mas elas não me deixam:
chegam com seu tear e sua mão cruel,
e sobre mim ensaiam um cansaço
que há séculos lhes tem sido alimento
Têm dentes ferozes e poderosas unhas
com que tocam a flauta e festejam o fuso,
e uns olhos muitos belos, com íris poderosas,
de sobressair ondas, de desesperar ventos.
E as fontes enganosas onde encontram guarida
tingem-se com as cores da sombria memória
Não me deixam esquecer: só me trazem
a história dentro da própria história,
desejo incontrolável de contra mim ficar,
a horas muito breves, de desespero fundo,
a falar nem de nada, desejando por dentro
deixar de me sentir, ou então sentir tudo.
Não me deixam esquecer, e o seu tear agudo:
herança dessa mãe que sobre elas pousou,
que as fadou frias, belas, e ao gerá-las assim,
lançou no meu olhar a memória do mundo.
Pertencem-lhes as fontes, tão falsas e funestas
como funestos são os seus gritos sem som,
delas fazem brotar as águas mais avessas
com algas que me entrançam palavras e cabelos.
E eu que queria esquecer, viver num outro mar,
atravessar a nado os pinheiros mais altos,
sou condenada a dar-lhes o alimento azul
de que elas se alimentam: um cansaço de séculos.
Sou condenada a ver para além deste tempo,
através dos seus olhos de poderosa luz,
e as flautas que elas tocam e o fuso que festejam
não são flautas só fusos, mas lanças e muralhas.
Com elas me recordo, por elas me relembro
e invade-me a lembrança, exasperada, impura.
Desejava esquecer, mas elas não me deixam,
e a memória do mundo: uma pesada herança,
legado que não devo deixar a mais ninguém,
que não posso gastar conforme me apetece,
porque elas o governam em mil sabedoria:
obrigam-me a usá-lo contrário ao meu desejo,
e se o desejo às vezes, desviam-no de mim.
É sua mãe cruel que as governa e a mim.
E todas enredadas nesta teia de espelhos
sofremos igual sorte, temos o mesmo fim,
partilhamos da mesma vontade de esquecer.
Mas não o deixa ela, nem o permite a morte –
* Breve nota informativa:
Ana Luísa Amaral (n. 1956, Lisboa) é autora de nove livros de poesia e de dois livros infantis. É também professora da Faculdade de Letras do Porto. Representada em inúmeras antologias portuguesas e estrangeiras, a sua poesia encontra-se traduzida para várias línguas. Em 2007, obteve o Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d’Escritas. Também foi distinguida em Itália, com o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi.
Em Junho de 2008, a autora foi galardoada com o Grande Prémio de Poesia APE/CTT, distinguindo por unanimidade o melhor livro publicado no ano de 2007: Entre Dois Rios e Outras Noites (Porto, Campo das Letras). Foram membros do júri: Ana Paula Arnaut, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; Nuno Júdice, professor da Universidade Nova de Lisboa, e também ele escritor; e Cândido Oliveira Martins, professor da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa (UCP).
Na acta da reunião, o júri deixou resumida a justificação da sua escolha nestes termos: “De entre um conjunto de obras poéticas de qualidade indiscutível a concurso, a escolha do júri recaiu por unanimidade sobre o livro Entre Dois Rios e Outras Noites, de Ana Luísa Amaral. Destaca-se pela coerência temática e pela capacidade de encontrar uma forma precisa para tratar o mundo pessoal e a realidade contemporânea sem abdicar da justeza de expressão e da qualidade poética que caracterizam uma obra que se tem vindo a afirmar com uma das mais significativas da nossa actual poesia”.
| Cândido Oliveira Martins
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