terça-feira, 15 de julho de 2008

Canto litúrgico




Não sabemos como há-de ser feita nem quem deverá tomar a iniciativa de fazê-la, mas é urgente uma revisão do canto litúrgico. É necessário reflectir sobre o que de bom e de menos bom se foi fazendo, para melhorarmos o que houver a melhorar.
Antes de mais, convém deixar claro que podemos estar profundamente unidos com Deus enquanto cantamos um cântico sem qualidade. Deus não é propriamente um crítico musical ou literário. Ele olha, antes de mais, para o amor com que fazemos as coisas. Sabemos, porém, que um belo canto ajuda o homem a elevar-se para Deus. Pelo contrário, a má qualidade, com muita frequência, não só distrai as pessoas da oração como até as pode deixar à beira de um ataque de nervos. Se Deus é beleza, as nossas linguagens da beleza, que são as linguagens artísticas, serão até as mais adequadas para falarmos com Ele. Sempre assim o entenderam os homens de todos os tempos e de todas as culturas. Por isso nos devemos esforçar por cantar belas melodias, belos textos, e cantá-los o melhor que soubermos.
1. Temos encontrado muita diversidade de estilos nas celebrações: música country, música pop, música rock, gospells, bossa nova, samba, música de westerns, com banjo em fundo e harmónica de boca fazendo solos, o que nos faz lembrar cow-boys afastando-se a cavalo nas imensas pradarias americanas. Já encontrámos interpretações muito próximas do heavy metal, assim como coisas que podiam ser cantadas pelo Marco Paulo ou pelo Tony Carreira. Já ouvimos meninas a cantar ao estilo da Ágata e dos outros cantores de música pimba. Já ouvimos cantar em italiano. Ainda não encontrámos nenhum exemplo de rap, mas não tardará muito. Frequentes vezes, demasiadas vezes, o estilo dos cânticos e da música que os acompanha leva-nos para um ambiente de discoteca ou de festa de cerveja. Não pode ser.
A justificação que vulgarmente se dá é a de que tal género de música atrai mais os jovens. Poderá ser verdade. No entanto, convém recordar que os jovens não são os únicos que participam na liturgia. Participam pessoas de todas as idades, crianças, pessoas menos jovens, pessoas de idade mais avançada. E muitas das coisas que se cantam são inquestionavelmente inadequadas para uma assembleia numerosa e heterogénea. Não me refiro apenas às melodias, frequentemente afectadas, mas também ao andamento, por exemplo. Os cânticos litúrgicos não podem ter um andamento demasiado rápido nem sincopado. São inadequados para uma assembleia onde podem estar centenas de pessoas e que, por natureza, é mais lenta a cantar. Pode haver momentos em que o coro ou o solista a represente, sem dúvida. Acontece, porém, demasiadas vezes, que a assembleia permanece muda durante toda a celebração.
2. Parece-nos inconveniente o lançamento constante de cânticos novos. É óptimo que haja variedade. No entanto, o excesso faz com que as pessoas tenham dificuldade em fixar tudo o que de novo vai aparecendo.
3. Se vamos, por acaso, a outra igreja que não a da nossa paróquia; se participarmos na eucaristia numa outra cidade, corremos o risco de ficar calados porque os cânticos são quase sempre diferentes dos que sabemos. Devia haver um reportório que toda a gente conhecesse. Não sabemos como se há-de resolver a situação, mas, ao fim de todos estes anos, já deve haver um numeroso grupo de melodias, de reconhecida qualidade, que pudesse ser adoptado por toda a igreja portuguesa. E, já agora, nele deveriam figurar cânticos mais antigos, alguns belíssimos, que deixaram de se ouvir. Foi uma pena.
4. Nenhum cântico deveria ser cantado sem a aprovação de uma comissão que, aliás, julgo existir, e sob cuja responsabilidade se publica uma revista de música sacra. A justificação é simples: teríamos a garantia de um mínimo de qualidade.
5. Nenhum dos textos litúrgicos fixos– não sei se é assim que se diz - que são cantados durante a Eucaristia deveria poder ser substituído por outros. Por exemplo: não se deveria substituir nunca o texto do “Cordeiro de Deus” ou do “Santo”. A razão é simples: são de uma beleza e de uma profundidade espiritual de tal maneira grandes, que dificilmente poderão encontar-se outros equivalentes.
7. Deveriam ser banidos da liturgia cantos em tom menor. Bem sabemos que há momentos - os cânticos penitenciais, por exemplo – em que o tom menor parece o mais adequado. Contudo, mesmo nesses casos, deveriam evitar-se melodias que mais parecem convidar-nos à depressão ou ao desespero suicida do que à sentida penitência. A liturgia é alegria íntima e serena, não tristeza melancólica.
8. Deveriam escolher-se cânticos que não façam subir a voz a notas muito agudas. Brincando um pouco, alguns nem o Pavarotti seria capaz de cantar. É problema nem sempre de fácil resolução porque a maior parte dos acompanhantes no órgão não são capazes de fazer a transposição para um tom mais baixo. Havia em tempos harmónios em que era possível movimentar o teclado para a esquerda ou para direita, precisamente para se poder descer ou subir o tom. Não sei se ainda existem.
9. E já que falámos do acompanhamento dos cânticos no órgão, gostaríamos de deixar aqui algumas observações:
- Por favor, não se utilize o registo “Trémulo”. Não sabemos por que razão, em quase todas as igrejas, põem o órgão a tremelicar, como se estivesse com problemas de corrente eléctrica ou atacado de delirium tremens. Revela um péssimo gosto. Ficamos imediatamente com a sensação de estar num salão de dança.
- Parece mil vezes preferível cantar sem acompanhamento do que ouvir um organista impreparado. Ora põe o órgão num volume que abafa a voz dos solistas e da assembleia, o que ainda é o menos, ora não acerta nas notas nem tem a mínima noção de harmonia nem de tonalidade. O canto está construído num tom e ele acompanha noutro ou até em nenhum. Tudo isto se faz com a maior das boas intenções, certamente, mas não deve haver maneira mais eficaz de afastar pessoas da missa do que a inépcia de alguns acompanhantes.
- Quem diz órgão diz outros instrumentos. Não nos custa nada admitir que se utilizem na liturgia outros instrumentos, embora alguns nos pareçam completamente inadequados. No entanto, o mínimo que se exige é que sejam bem tocados e não abafem a voz da assembleia. A voz humana é o mais importante de todos os instrumentos. Quando ela intervém, todos os outros devem baixar o volume.
- Dispensaríamos perfeitamente a bateria em cerimónias litúrgicas. Não acrescenta absolutamente nada nem ao canto nem à música. Pelo contrário, só atrapalha, impondo uma rigidez de compasso e um ruído de fundo incompatíveis quer com a maleabilidade expressiva dos cânticos, quer com a natureza de uma assembleia numerosa e heterogénea que tende a cantar lentamente. Além disso, é perfeitamente erróneo pensar que um cântico tem mais ritmo só porque é acompanhado por uma bateria.
- Já ouvimos, em algumas cerimónias, batuques discretamente percutidos, aliás. Não custa nada admitir que se utilizem, mas parece-nos que ficariam muito melhor numa celebração litúrgica africana, por exemplo.

São estas as observações que hoje temos para apresentar. Oxalá possam contribuir para a solução de um problema que necessita de solução urgente.


Silva Pereira

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