sábado, 31 de maio de 2008

António Vieira II

Púlpito onde o Pe. António Vieira pregava, em S. Salvador da Baía
AMOR E ÓDIO

As paixões do coração humano, como as divide e numera Aristóteles, são onze, mas todas elas se reduzem a duas capitais: amor e ódio. E estes dois afectos cegos são os dois pólos em que se resolve o mundo, por isso tão mal governado. Eles são os que pesam os merecimentos, eles os que qualificam as acções, eles os que avaliam as prendas, eles os que repartem as fortunas. Eles são os que enfeitam ou descompõem, eles os que fazem ou aniquilam, eles os que pintam ou despintam os objectos, dando e tirando a seu arbítrio a cor, a figura, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem outra distinção ou juízo que aborrecer e amar.
Se os olhos vêem com amor, o corvo é branco; se com ódio, o cisne é negro; se com amor, o demónio é formoso; se com ódio, o anjo é feio; se com amor, o pigmeu é gigante; se com ódio, o gigante é pigmeu; se com amor, o que não é tem ser; se com ódio, o que tem ser, e é bem que seja, não é nem será jamais. Por isso se vêem, com perpétuo clamor da justiça, os indignos levantados e as dignidades abatidas; os talentos ociosos, e as incapacidades com mando; a ignorância graduada, e a ciência sem honra; a fraqueza com o bastão, e o valor posto a um canto; o vício sobre os altares, e a virtude sem culto; os milagres acusados, e os milagrosos réus. Pode haver maior violência da razão? Pode haver maior escândalo da natureza? Pode haver maior perdição da república? Pois tudo isto é o que faz e desfaz a paixão dos olhos humanos, cegos quando se fecham, e cegos quando se abrem; cegos quando amam, e cegos quando aborrecem; cegos quando aprovam, e cegos quando condenam; cegos quando não vêem, e quando vêem muito mais cegos.
António Vieira

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