segunda-feira, 5 de maio de 2008

Padre António Vieira


Uma boa maneira de celebrar os 400 anos do nascimento do P. António Vieira, vulto cimeiro da cultura portuguesa, será ler mais alguns dos seus sermões ou, pelo menos, trechos deles que ficaram famosos. Por isso propomos hoje este texto absolutamente brilhante.
(Silva Pereira)

A ALMA

Quereis ver o que é uma alma? Olhai (diz S. Agostinho) para um corpo sem alma.
Se aquele corpo era de um sábio, onde estão as ciências? Foram-se com a alma, porque eram suas. A retórica, a poesia, a filosofia, as matemáticas, a teologia, a jurisprudência, aquelas razões tão fortes, aqueles discursos tão deduzidos, aquelas sentenças tão vivas, aqueles pensamentos tão sublimes, aqueles escritos humanos e divinos que admiramos, e excedem a admiração - tudo isso era a alma.
Se o corpo é de um artífice, quem fazia viver as tábuas e os mármores? Quem amolecia o ferro, quem derretia os bronzes, quem dava nova forma e novo ser à mesma natureza? Quem ensinou naquele corpo regras ao fogo, fecundidade à terra, caminhos ao mar, obediência aos ventos, e a unir as distâncias do universo e meter todo o mundo venal em uma praça? A alma.
Se o corpo morto é de um soldado, a ordem dos exércitos, a disposição dos arraiais, a fábrica dos muros, os engenhos e as máquinas bélicas, o valor, a bizarria, a audácia, a constância, a honra, a vitória, o levar na lâmina de uma espada a vida própria e a morte alheia, quem fazia tudo isto? A alma.
Se o corpo é de um príncipe, a majestade, o domínio, a soberania, a moderação no próspero, a serenidade no adverso, a vigilância, a prudência, a justiça, todas as outras virtudes políticas com que o mundo se governa, de quem eram governadas e de quem eram? Da alma.
Se o corpo é de um santo, a humildade, a paciência, a temperança, a caridade, o zelo, a contemplação altíssima das coisas divinas, os êxtases, os raptos, subindo o mesmo peso do corpo, e suspenso no ar - que maravilha! Mas isso é a alma.
Finalmente, os mesmos vícios nossos nos dizem o que ela é. Uma cobiça que nunca se farta; uma soberba que sempre sobe; uma ambição que sempre aspira; um desejo que nunca aquieta; uma capacidade que todo o mundo a não enche, como a de Alexandre; uma altiveza como a de Adão, que não se contenta menos que com ser Deus: tudo isto, que vemos com os nosso olhos é aquele espírito sublime, ardente, grande, imenso - a alma.
Até a mesma formosura, que parece dote próprio do corpo, e tanto arrebata e cativa os sentidos humanos: aquela graça, aquela proporção, aquela suavidade de cor, aquele ar, aquele brio, aquela vida, que é tudo senão a alma?
E senão, vede o corpo sem ela, insta Agostinho. Aquilo que amáveis e admiráveis, não era o corpo, era a alma. Apartou-se o que se não via, ficou o que se não pode ver.
A alma levou tudo o que havia de beleza, como de ciência, de arte, de valor, de majestade, de virtude; porque tudo, ainda que a alma se não via, era a alma.

António Vieira

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