terça-feira, 20 de maio de 2008

Casamento Gay


Num momento em que várias individualidades, forças políticas e organizações favoráveis ao chamado “casamento gay” pretendem lançar, ou relançar, a discussão sobre essa tema, parece oportuno conhecer o contributo para o debate trazido por Roque Cabral, professor catedrático da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa, em artigo publicado na revista Brotéria e aqui parcialmente transcrito. (Silva Pereira)




A apologia dos casamentos gay insiste recorrentemente em dois argumentos: a liberdade das pessoas que assim pretendem viver e a igualdade de direitos de todos os cidadãos, igualdade que exclui qualquer discriminação. O significado destes argumentos é fácil de compreender. O que importa verificar é a sua solidez argumentativa.
Para começar, não parece contestável que duas pessoas do mesmo sexo, que pretendem partilhar as suas vidas numa união duradoura, o possam fazer e que o legislador deva ter em conta esse facto. Se há pessoas que querem unir-se assim, por que não respeitar essa vontade? No actual debate nos Estados Unidos, têm sido aplicadas ao nosso tema as palavras da histórica sentença do Supremo Tribunal (12.06.67) que aboliu a proibição de casamentos inter-raciais: "Casar, com quem, de que modo dar expressão à intimidade sexual, e como constituir família - são dos mais básicos direitos individuais”. Por respeito à livre decisão das pessoas, deveria consequentemente acolher-se a vontade de casamento de pessoas do mesmo sexo. Embora a "orientação sexual" homossexual seja, segundo os especialistas, quantitativamente minoritária, numerosos são os homens e as mulheres que se sentem afectivamente atraídos por pessoas do mesmo sexo, pelas quais são correspondidos e com as quais desejam partilhar a vida. Se assim o desejam, não serão livres de o realizar? Em nome de quê se pode opor uma negativa a esta vontade? Donde e com que fundamento impor uma tão sensível limitação à liberdade de cada um?
Falando em liberdade, recordo que no debate conciliar que levou à publicação do documento sobre a liberdade religiosa do Vaticano II, foi dito - e aceite pela maioria - que, sendo a liberdade algo tão essencial à pessoa humana e à sua dignidade, quem pretenda introduzir limitações à mesma é que tem o ónus de prova e não quem a afirma. Por outras palavras, tanta liberdade quanto possível, as limitações é que têm de ser demonstradas. Quem esteja de acordo com esta opinião, mas não reconheça direito de cidade aos casamentos homossexuais deverá, logicamente, estar disposto a apresentar razões para essa restrição da liberdade. Sendo este o meu caso, tentarei fundamentar racionalmente a limitação à liberdade dos homossexuais e lésbicas no que diz respeito à legalização das suas uniões sob a forma de casamento.
Não será demais lembrar que é isto que está em jogo: não se trata de negar todo e qualquer direito às uniões homossexuais e lésbicas, mas apenas a sua pretensão a serem consideradas "casamentos". Não só não se negam outros direitos, como parece de elementar justiça que o legislador tenha em conta a realidade constituída pelos pares de pessoas do mesmo sexo que pretendem partilhar vida, bens e outros direitos reconhecidos aos casados.
Mas os grupos de homossexuais e de lésbicas não pretendem apenas isso. Requerem a possibilidade de celebrar casamentos em igualdade de condições com os pares heterossexuais. O que nos leva a considerar mais detidamente este aspecto da questão, o da igualdade, e, na falta desta, o de uma eventual discriminação. Homossexuais e lésbicas pretendem poder ter um casamento igual ao dos casais heterossexuais, exigem um tratamento igual e idêntica designação para todos os casamentos. Invocam o artigo 36.º da Constituição - "todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de igualdade" - e exigem que seja alterada a definição de casamento do artigo 1577.º do Código Civil, segundo o qual "casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições do Código" Aos olhos dos homossexuais e lésbicas, esta alteração constitui um óbvio imperativo da igualdade com que a lei deve tratar todos os cidadãos.
Falando de igualdade, o que é indiscutível imperativo é que receba o mesmo tratamento o que for igual, e diferente tratamento o que for diferente. Esta tão óbvia exigência da justiça parece escapar àqueles que lutam pelo casamento para os pares de pessoas do mesmo sexo. Querem para si o mesmo tratamento, embora a relação que constituem seja profundamente diferente da que existe nos casais heterossexuais. Querem igual tratamento, mas esta sua vontade não torna iguais as situações, que são diferentes - e o legislador fará bem em não as tratar da mesma maneira.
Que as pessoas não sejam discriminadas - com base na religião, sexo, cor da pele, etc. - parece-nos, a quantos vivemos hoje, uma elementar justiça. Longos séculos levou a humanidade a reconhecer essa exigência, com inúmeras lutas e debates pelo meio, e ela está, infelizmente, muito longe de ser universal e plenamente cumprida. Sabemos que esta afirmação universal dos direitos de qualquer ser humano - que se deseja efectivamente reconhecida em toda a terra - não impede que se admitam universalmente imensas diferenças de tratamento, desigualdades que não suscitam protestos porque são obviamente razoáveis e justas. Os casos que poderiam invocar-se não teriam fim, mas o facto é tão conhecido que podemos dispensar-nos de aduzir alguns exemplos confirmativos. Parece pois claro, e é geralmente aceite, que em muitos casos desigualdade não é sinónimo de reprovável discriminação. Tanto assim é que em diversos contextos se fala de "discriminação positiva".
Não se trata de negar o casamento aos homossexuais ou às lésbicas por serem tais - o que, além de inconstitucional seria uma discriminação, inaceitável como todas as discriminações. Do que se trata é de não considerar como casamento a união de pessoas do mesmo sexo. Não se fecha a porta do casamento aos homossexuais e lésbicas, o que não se admite é o casamento homossexual, o casamento de pessoas do mesmo sexo. Porque o "direito de casar" é o direito de aderir a uma instituição com determinadas características - que eles não estão em condições de assegurar.
E é importante sublinhar, como já acima foi dito, que isso não significa não reconhecer a tais uniões nenhuns efeitos jurídicos. Não parece, com efeito, difícil perceber que o ordenamento jurídico pode atribuir muitos dos benefícios de que desfrutam os casados a pessoas do mesmo sexo que pretendem viver juntas: no âmbito da Segurança Social, do Direito do Trabalho, do Direito Fiscal, do Direito Administrativo, da protecção da casa de morada, etc. Mais ainda: tendo em conta a analogia das situações, parece que tal atribuição será justa e, portanto, devida. Na realidade, entre nós a Lei 7/2001, de 11 de Maio, alargou às uniões homossexuais o âmbito de protecção que a Lei 135/99, de 25 de Agosto, conferia às Uniões de Facto. Caberá ao legislador ampliar o reconhecimento jurídico dos pares de homossexuais e lésbicas naquilo que, sendo justo, ainda não esteja atendido pela lei.
Mas deverão esses pares ter exactamente os mesmos direitos que os casais heterossexuais, como parece claramente ser a pretensão do lobby homossexual? Uma vez que só os casais heterossexuais podem ser férteis, contribuindo assim para a propagação da humanidade, não constituirá nenhuma condenável discriminação o facto de o Estado tratar de modo diferente estes casais. Por razões óbvias. Poderá alguém objectar - e já aconteceu - dizendo que as modernas técnicas de procriação medicamente assistida tornam possível que uma das mulheres de um par de lésbicas seja artificialmente fecundada e procrie. Sem dúvida: só que a criança assim gerada não será filha desse par lésbico, mas apenas de uma das mulheres, fecundada pelo esperma de um dador exterior. Mas, insistir-se-á, duas lésbicas ou dois homossexuais podem criar uma família, não obviamente com filhos do par, mas criando para eles um bom ambiente familiar. Não se nega essa possibilidade; nem se nega que essa "família" pode, em alguns casos, criar um ambiente muito mais favorável do que algumas famílias juridicamente reconhecidas. Mas não seria honesto deduzir daí uma preferência geral pelas "famílias" criadas por pares de homossexuais ou lésbicas.
Seja como for, é fora de dúvida que os casais heterossexuais contribuem para o bem da sociedade civil de modo diferente do que o fazem os pares homossexuais e que, por esta razão, não podem os legisladores e governantes, sem grande injustiça, para com esses casais e sem prejuízo para o país - para cujo bem devem legislar -, tratar de igual maneira casais que tão diferentemente contribuem para o bem comum. A igualdade de tratamento de realidades tão profundamente diferentes é que seria uma grave injustiça e manifesta discriminação. Paradoxalmente, o argumento da não discriminação, frequentemente brandido pelos defensores do casamento homossexual, joga precisamente contra a sua pretensão. Paradoxal é também - até certo ponto - esta pretensão, num tempo em que a instituição casamento é acometida por tantos ventos contrários, num tempo em que se acentua o aspecto das relações afectivas, independentemente do estatuto jurídico.

Pretensão a adoptar

Consideração especial merece a pretensão, por parte dos pares homossexuais, a adoptar. O desejo de adoptar é facilmente compreensível. Mas importa ter presente a profunda mudança que o tema da adopção vem introduzir no debate acerca do casamento. É que, neste caso, o que se torna necessário assegurar não é já o que mais convém ao par homossexual, mas sim o que será mais conveniente à criança a adoptar. O bem do adoptando e não a conveniência ou o direito do par adoptante - seja ele, aliás, homossexual ou heterossexual. Ora bem: nos debates acerca da adopção de crianças por pares homossexuais, é frequente invocarem-se uns "estudos americanos" que demonstrariam que as crianças educadas por pares homossexuais não sofriam nada com isso. Nesses estudos, condensados por Charlotte J. Patterson, verificamos o seguinte: os questionários são poucos numerosos; claramente comportamentalistas e funcionalistas; relativos a crianças e não a adolescentes, sendo que estes é que mais são afectados pelos problemas parentais; todas as crianças estudadas nasceram no quadro de um par heterossexual; as respostas são dadas pelos "pais" heterossexuais, e não pelas crianças; a comparação faz-se com crianças de pais divorciados; por último, pormenor muito significativo: 41% destas crianças beneficiaram de acompanhamento especializado. Conclusão: os famosos estudos não reforçam a pretensão adoptante por parte de pares homossexuais, antes pelo contrário. Charlotte J. Patterson, por alguns considerada grande especialista em assuntos de homossexualidade, foi desautorizada por um tribunal da Florida, que não aceitou atender às suas opiniões, por ela se ter recusado a apresentar os dados em que as fundamentava.
Mais: admitir a adopção por parte de um par homossexual seria uma discriminação relativamente aos adoptados - por não ser assegurado a estes o que deveriam normalmente receber do par adoptante heterossexual. Em palavras de Juan López Ibor, presidente da Associação Mundial de Psiquiatria:"Um núcleo familiar com dois pais ou duas mães é claramente prejudicial ao desenvolvimento harmonioso da personalidade e à adaptação social da criança". O par adoptante deve, por isso, ser um casal heterossexual; se o não for, verificar-se-á, para a criança adoptada, uma dificuldade suplementar, a somar à dificuldade que qualquer adopção já representa. É pois a fortiori que a adopção postula um casal heterossexual.
A este respeito, poderia a alguém ocorrer a seguinte objecção: como em cada pessoa há algo de masculino e algo de feminino (animus e anima), a criança adoptada por um par homossexual poderia encontrar nesse par o "paternal" e o "maternal" de um autêntico "casal". Mas a objecção, tendo algo de válido, não o é inteiramente, uma vez que ser pai ou mãe não se reduz a ter características masculinas ou femininas - mesmo que fossem todas, o que não acontece no par homossexual. Aliás, e mais uma vez: o que é importante, quando se trata de adopções, não é saber se as crianças são capazes de se adaptar aos desejos e invenções dos adultos, mas sim quais são as melhores condições para o seu desenvolvimento.
Não se vêem razões válidas para reconhecer aos pares de homossexuais e de lésbicas o mesmo acesso ao estatuto jurídico e idêntica designação que aos casais heterossexuais, menos ainda se com a possibilidade de adopção. Mas os lobbies que lutam por conseguir esses objectivos são muito poderosos. Talvez venham a alcançar entre nós o que já conseguiram noutros países.
Lamentavelmente.

P. Roque Cabral S. J., Brotéria 165 (2007)111-118

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