quinta-feira, 16 de julho de 2009

Testamento Vital I

Domenico di Bartoli,1441-44, Cuidar dos Doentes

Consentimento informado

O reconhecimento dos direitos do doente, a análise e revisão da doutrina hipocrática, a crescente importância atribuída à autonomia da pessoa, também no campo da saúde e no da relação médico-doente, convergiram para a definição do conceito do consentimento informado e sua aceitação como imprescindível pré-condição para qualquer acto médico. Todas as organizações médicas, a nível mundial e nacional, subscrevem esta afirmação e propugnam pelo cabal respeito por esta peça fundamental na relação do profissional de saúde com o paciente. Qualquer intervenção, com fim diagnóstico ou terapêutico, exige a prévia explicação do procedimento e a obtenção do assentimento, concordância, autorização ou consentimento, a cargo da pessoa que é o sujeito, são ou doente, dos cuidados a prestar. O acto médico tem por óbvia motivação a intenção de beneficiar (“fazer bem ao”) o doente, mas este não pode sujeitar-se passivamente ao que lhe é proposto: tem-se aqui como ideal a conjugação e articulação da beneficência do prestador de cuidados com a autonomia daquele que os recebe. Claro que nesta relação de complementaridade podem facilmente surgir tensões ou até conflitos, quando uma das polaridades pressupostas pela relação se erige em força absoluta, ignorando ou subestimando a outra, na ânsia de um exercício do poder médico autoritário, na atitude muitas vezes designada por paternalista; e, por outro lado, é consensual não ser aceitável que o doente exerça a sua vontade de modo irresponsável, irreflectido ou caprichoso, convertendo o profissional de saúde num funcionário tecnicamente competente para a execução das ordens do paciente. O que se pretende não é mais do que associar o doente ao processo de tratamento, transformando-o de um sujeito passivo das resoluções de outrem num colaborador activo, responsável e capaz de tomar decisões.
O consentimento informado é hoje considerado como peça fundamental na relação médico-doente e encontra-se respaldado nos Códigos Penais de quase todos os países; entre nós, o Código Penal (artigos 150, 156 e 157) classifica de abusiva e ilegítima qualquer intervenção médica sobre quem não tenha dado o consentimento ou assentimento, depois de informado sobre as circunstâncias da intervenção proposta e em plena liberdade; e são pesadas as penas que sancionam o desrespeito por estes processos legais.

“Testamento vital”

Não havendo uma escolha terminológica unívoca, designaremos deste modo o documento também conhecido por declaração antecipada de vontade, por motivo da brevidade e da popularidade daquela designação, tão imprópria quanto esta. Trata-se de um documento em que a pessoa, antecipando uma situação clínica em que não possa exprimir a sua vontade (por estar inconsciente, demente ou incapaz por outro motivo), declara qual ou quais os tratamentos ou as técnicas que não deseja que lhe sejam aplicados. Afirmam os seus paladinos que assim se respeita cabalmente a autonomia da pessoa doente: incapaz de se pronunciar por ter perdido faculdades, faz-se ouvir através de uma declaração anteriormente exarada, com consequências a prazo mais ou menos longo. Este “testamento vital”, obrigatório nos Estados Unidos, não tem recolhido aplauso nem acolhimento no sistema jurídico da maior parte dos países. Para tal atitude negativa têm sido invocados os seguintes argumentos:
1. A pessoa que, em plena saúde ou estado inicial de doença progressiva, declara rejeitar determinadas medidas consideradas “heróicas” (tais como reanimação cardio-respiratória, diálise renal, quimioterapia citostática, etc.), por as entender como indignificantes ou lesivas da sua integridade, não pode ter uma noção clara de qual o seu real peso ou custo psicológico nem de qual será a sua vontade e desejos na situação que apenas antecipa, mas não experiencia.

2. A valia legal do testamento vital implicaria a total sujeição do médico ao paciente e obrigaria o profissional a assegurar-se da não existência de uma oposição consignada em eventual testamento vital antes de iniciar qualquer manobra, mesmo se urgente, num doente inconsciente ou incapaz – e a actuar já não segundo as normas médicas, mas de acordo com o prescrito pelo doente.

3. O testamento vital pode dar origem a sérios conflitos, se nele se exarar uma disposição que ponha em causa bens indisponíveis ou os bons costumes, a que expressamente se refere o Código Penal, tais como a vida ou a integridade física do doente. Por exemplo, se no testamento o declarante proibir o recurso à reanimação, o doente acometido de paragem cardio-respiratória morrerá, embora fosse perfeitamente recuperável. Neste caso, um bem indisponível, a vida, seria sacrificada, e o médico poderia ser considerado como homicida por negligência. Por outras palavras, o testamento vital, pode abrir uma porta à prática da eutanásia (neste caso, passiva, por a morte resultar de omissão de um acto indispensável à manutenção da vida; mas a distinção entre eutanásia passiva e activa não tem, como se sabe, qualquer relevância ética).

(cont.)

Walter Osswald,“ ‘Testamento vital’. Perspectiva médica”, Brotéria 168(2009) 429-432.


SP

terça-feira, 14 de julho de 2009

O Milagre Possível


Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.
Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar. Senhor, imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, diz-se que lá ele foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Senão, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha.
Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale de Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não doi até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não doi sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo, mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos.


João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

SP

sábado, 4 de julho de 2009

Bíblia e Violência


Na história de Israel, a partir da emergência de uma autocompreensão da Nação como sociedade-alternativa verificou-se igualmente uma transformação ao nível da própria imagem de Deus. Verificou-se, antes de mais, da afirmação de um Deus único, o qual, por isso mesmo, se contrapõe ao panteão dos deuses em que fundavam a sua legitimidade os sistemas sociais das cidades-estado de Canaã. Necessariamente, este Deus começou por ser um deus-guerreiro: Javé, senhor dos exércitos. Só depois da experiência do exílio é que Israel começou a compreender que o caminho que conduz à sociedade justa passa também pela perseguição e pelo sofrimento; ou seja, só então é que as projecções guerreiras do Deus de Israel começaram a ser postas em causa. Tornava-se então possível que, a partir daí, e pelo menos em breves momentos profeticamente privilegiados, o rosto do verdadeiro Deus começasse a vir ao de cima – assim expressamente, de forma paradigmática, na figura do Servo de Javé, que encontramos no quarto poema do Servo Sofredor.(...)
A imagem de um Deus próximo dos perseguidos começa a manifestar-se apenas em associação com a experiência daqueles a quem os Salmos designam ora por “justos perseguidos” ora por “sofredores inocentes”. Com estes, porém, não devemos identificar apenas um ou outro caso excepcional. A esta classe de homens pertence todo aquele que, qual bode expiatório, se descobre vítima de perseguição e até mesmo de expulsão. Quando a um ser humano transformado em bode expiatório é dada a compreensão de ser apenas por puro acaso que ele, e precisamente mais ninguém, se encontra na posição de ser portador da culpa que recai sobre todo o grupo humano a que pertence, e de que desta ou de outra forma cada um dos membros do respectivo grupo se tornou corresponsável pelo caos existente na respectiva sociedade, ele transforma-se simultaneamente na figura do homem justo perseguido ou no sofredor inocente no sentido mais estrito destas expressões. Entre os seres humanos, o bode expiatório representa sempre aquele que é perseguido em favor de um mecanismo violento de pacificação social. Mas na medida em que a própria vítima cai na conta deste mecanismo e a Deus levanta a sua voz de protesto, o que se dá é, nem mais nem menos, a possibilidade de um novo conhecimento de Deus.
Por outras palavras, quando, por exemplo, nos Salmos, um clamor se levanta por parte dos inocentes ou daqueles que simplesmente se sabem perdoados por Deus e a este fazem saber o seu sentir, o que está em causa é já a aurora de um mundo novo. Ainda que, pelo menos em certa medida, este Deus por quem se clama continue ainda a recorrer a processos de morte na implantação da justiça, a grande novidade é que, a partir destes momentos especiais, Deus se revela claramente não afectado pela projecção sacrificial dos vitimadores. Desta forma, vai-se aproximando o momento em que o anseio de vingança se começa a transmutar em acto de pura confiança em relação ao Deus que, por fim, se revelará ser das vítimas e não dos algozes. Quando isto acontece, dá-se o fim da era de Deus como projecção do homem. No rosto do homem perseguido manifesta-se a luz do Deus verdadeiro.(...)
Baseando-nos no contributo de René Girard, a presente reflexão leva-nos antes de mais à conclusão de que, de forma alguma, nos devemos envergonhar quer do Antigo Testamento quer da imagem de Deus que ele nos dá. Ou seja, não precisamos de definir qualquer novo cânone bíblico em que praticamente se arrume o Antigo Testamento. Pelo contrário, o que se afirma é precisamente que a Bíblia na sua totalidade, ou seja, aquilo a que René Girard chama “revelação judaico-cristã” não visa senão libertar-nos da opressão da violência, dando realização aos nossos sonhos humanos mais profundos.(...)

Dado que no conjunto da Sagrada Escritura o Antigo Testamento representa, pelo menos, de uma ou outra forma, as sociedades do mundo, de modo algum nos deve admirar o facto de o mesmo revelar a sua profunda afectação pela violência, mesmo no que diz respeito à imagem de Deus. Todas as suas aportações no que se refere à imagem de Deus exigem, por isso, um esforço de relativização. A partir das afirmações do Novo Testamento podemos olhar para o Antigo e reconhecer que muitas das coisas que aí se dizem acerca de Deus devem ser simplesmente relegadas para o campo da história no que se refere ao processo mediante o qual a humanidade, desde o início, se encontra a caminho da imagem de um Deus não contaminado pela violência. Num contexto profundamente marcado por uma visão evolutiva das coisas, podemos também falar de uma sociedade em processo de libertação em relação à violência e em transição para a não-violência.(...)
É sobretudo por estas razões, portanto, que a parte da Bíblia a que damos o nome de Antigo Testamento constitui caminho importante no que diz respeito ao desmascaramento da violência. Justamente na medida em que nos dispomos a percorrer o mesmo caminho que nele se faz e, ao mesmo tempo, não nos envergonhamos da descoberta que fazemos de estar do lado dos perseguidores e violentos do mundo, o resultado será não apenas um desvelamento do nosso próprio pendor para a violência, o qual sempre gostaríamos de poder dissimular, mas também a transformação da própria imagem que temos de Deus, sobretudo quando o envolvemos em actos ou atitudes de violência.(...)
É sobre as vítimas não-violentas que a fúria do mundo alastra até à exaustão. Mas Deus surge, no fim, como vencedor, pois dele nos fala a Bíblia como triunfador sobre a morte. Só que o triunfo do Deus do amor não se separa do Deus que é vítima do terror. Assim, toda a tentativa de ler o Novo sem o Antigo Testamento não é mais do que o resultado de uma estratégia, ainda que inconsciente, de encobrimento da violência em todas as suas formas.

Norbert Lohfink, “Deus e a Violência: o Antigo Testamento à Luz de René Girard”, Revista Portuguesa de Filosofia 56(2000), 37-52
SP

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O BAPTISTA




Sendo imperador romano
o torpe César Tibério,
ao décimo quinto ano
do seu tirânico império;

Pilatos, seu velho amigo,
então regendo a Judeia,
e Herodes, filho do antigo,
reinando na Galileia;

houve um homem no deserto,
que os povos chamavam Mestre,
de lã de cabra coberto,
vivendo de mel silvestre,

que pregava aos penitentes
jejuns, pureza, oração,
baptizando a Plebe e as gentes,
em pé, no rio Jordão.

Ora, este homem, cuja vida
fascinava a Plebe inquieta,
era o precursor Baptista,
- era o último profeta.

Era primo do Messias,
e era João o seu nome.
Tinha o dom das profecias,
faces cavadas de fome.

E pregava assim às gentes:
- “Monstros! filhos da Mentira!
Ó geração de serpentes,
Por que é que fugis da Ira?

“Em breve vereis chegar
esse de quem eu – ingratos!
nem mereço desatar
o atilho de seus sapatos.

“De que vos serve e vos medra
dos Justos ser geração?
Deus pode até duma pedra
levantar filhos de Abraão!

Em breve - poços imundos!
vereis surgir, sobre a eira,
quem traz na dextra a joeira
com que ele joeira os mundos.”


- “Mestre! O que farei, pois, bem?”
gritava-lhe o legionário.
Mas ele: “pratica o bem!
Vive só do teu salário!”

- “Rabi! que farei?” – com susto,
diz, de rojo, o Publicano.
- “Não sejas vil, desumano!
Cobra tu o que for justo!”

- “Qual a lei que mais aprovas,
Rabi?” – diz-lhe o Escriba, em suma.
- “Tens duas túnicas novas?...
Vai - e dá de esmola uma.”

Assim pregava. Anciãos,
Escribas, povo aos magotes,
Vinham vê-lo, erguendo as mãos.
- Pasmavam os Sacerdotes.

Baptizavam-se, contritos,
mulheres, crianças e velhos.
Vinham beijar-lhe os aflitos
as sandálias, de joelhos.

- Mas enquanto aos pés choravam
os povos, como uns pupilos,
pelas estrelas erravam
os seus olhos tranquilos.

Gomes Leal, História de Jesus para as criancinhas lerem.


SP

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Santo António


De maneira, meu Santo, que deixais Portugal e vos embarcais para África, porque dizeis que ides buscar o martírio? Antes por isso mesmo vós não deveis sair da vossa Pátria. Não tendes vós já encerrado no peito aquele grande tesouro de sabedoria e eloquência com que depois haveis de esclarecer e assombrar o mundo, e agora a vossa modéstia e humildade encobre e dissimula, e quase contra o conselho deste mesmo Evangelho tem escondido debaixo do meio alqueire: Neque enim accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio? Escusado é logo ir buscar o martírio incerto, por mar, em terras estranhas, se o tendes mais breve e mais seguro na mesma onde nascestes. Amanheçam em Coimbra os resplendores dessa Teologia, que depois há-de ter a primeira cadeira na segunda Religião de que tendes tomado o hábito; passai com os ecos dessa fama a Lisbo e começai logo a levar após vós a Corte com a eloquência mais que humana dessa língua imortal, e eu vos prometo (não tanto que ela falar, senão depois que for falada) que não faltem naturais vossos que vos façam mártir. Não vos asseguro rodas de navalhas nem bois de metal, porque lá não se martiriza com tanto engenho. Mas se vos contentais com martírio mais aparelhado, e mais vulgar, de seres logo um S. Sebastião, não o duvideis. Todos os raios que de si despedir a vossa luz, se hão-de converter em setas que se empreguem em vós. O vosso nome há-de ser o aplauso de todas as vozes, e o vosso corpo o alvo de todas as setas. Não vos há-de valer serdes filho de S. Francisco, uma vez que mostrardes que sois geração de Gigante: Stirpem Enac vidimus tibi.[...].
Mas como Deus não queria de António o seu martírio, a nova providência de uma furiosa tempestade o derrotou da Pátria, para onde tornava, e o levou a tomar porto em Itália. E porquê, ou para quê? Porque Deus lhe tinha mandado que luzisse a sua luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus. E para a sua luz luzir diante dos homens, era necessário que o mesmo Deus o levasse a terra onde houvesse homens, diante dos quais se pudesse luzir. Oh terra verdadeiramente bendita, Pátria da verdade, asilo da razão, Metrópole da Justiça, que não debalde te escolheu Deus para colocar em ti o seu eterno sólio![...]
Já agora, meu Santo, pode luzir a vossa luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus; porque já estais em terra de homens, diante dos quais se pode luzir. Tanto vos era necessária a ausência de uns, como a presença dos outros. Já os mesmos Sumos Pontífices vos chamam Arca do Testamento, já as vossas vozes são ouvidas como oráculos, já as vossas razões e sentenças são recebidas e veneradas como Divinas. E não porque vós hoje sejais outro do que dantes éreis, nem outros os documentos da vossa doutrina, mas porque tanto vai de lugar a lugar, e de homens a homens, Coram hominibus.
Esta felicidade de achar S. António homens diante dos quais luzisse a sua luz, como o Senhor lhe mandava, foi na minha opinião uma das maiores graças que o mesmo Senhor lhe concedeu, porque sendo muito poucos no mundo os homens que podem luzir, aqueles diante dos quais se possa luzir ainda são muito menos.

António Vieira, Sermão de Santo António, em Roma na Igreja dos Portugueses.


SP

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dia de Camões


Nesse seu mundo interior de desterro e de caos, o amor, quase sempre vivido à distância, ora geograficamente marcada no espaço, ora, sobretudo, medida e alongada pelo desdém, pela falta de correspondência ou até pelo esquecimento, interioriza-se; e o cânone poético que até então lhe servira para o cantar, altera-se profundamente: a celebração dos efeitos da beleza corpórea dá lugar à exaltação do amor suscitado por uma mulher que, vista à maneira dos neoplatonistas, lhe aparece como inefável “raio da divina formosura”. Esse será o caminho que lhe permitirá vencer as contingências do mundo e da vida, dolorosamente marcadas pelo fugaz engano do tempo passado e pelo amargo desengano do presente, através de uma ascese que o levará ao reencontro com a sua primeira essência divina. Feito este percurso, a confusão há-de transformar-se em harmonia, as falaciosas aparências do mundo visível na segura transparência do mundo inteligível, o pecado em graça, o efémero em eterno, a terrena fealdade de Babilónia na serena beleza da Jerusalém Celeste.
Mas Camões (por si e pelo homem que ele sente metonimicamente representar!) sabe que as suas forças não chegam para empreender essa ascese, preso como está às imperfeições do amor humano e à sua débil condição de pecador. É então que, entoando a sua palinódia de arrependimento, procura, sequioso, a fonte da graça no poder salvífico da Paixão de Cristo, consciente como está de que, pela fragilidade dessa sua condição, não reencontrará sem ela, na “terra da glória”, a essência divina da sua condição humana. Por isso e para isso, terá de trocar a frauta simbólica com que entoara os “cantares d’amor profano” pela lira dourada com que vai cantar “versos d’amor divino”.
Insatisfeito ou perturbado com os males do tempo presente, que a sua experiência de vida em cada dia dolorosamente lhe fazia sentir, Camões procurava superá-los no plano do transcendente e do intemporal, graças à sua extraordinária sensibilidade, à sua cultura e à sua capacidade de criação, pela qual a escrita poética se transformava num canto de desabafo, ainda que para ele não encontrasse destinatário adequado, pela singularidade desse mesmo canto ou pelo isolamento espiritual do seu emissor.
É nesta perspectiva que Os Lusíadas, apesar das características próprias do género épico, se integram perfeitamente no macrotexto da obra de Camões, visto que transpõem para o colectivo problemas semelhantes àqueles que o Poeta sentia no seu foro individual.
Ao empreender a elaboração da sua epopeia, conhecia já Camões, por experiência própria, a grave crise moral, social e política que afectava profundamente o corpo e a alma da Nação Portuguesa. Respondendo às expectativas que a consciência nacional viera desenvolvendo ao longo de mais de um século e que a teoria poética do Renascimento arvorara em requisito indispensável para a equiparação das literaturas modernas ao nível de qualidade das antigas, Camões decide celebrar na tuba canora e belicosa da epopeia “as armas e os barões assinalados” que, durante séculos, haviam construído a colectividade portuguesa; ao mesmo tempo, porém, não podia fechar os olhos à desoladora realidade que em cada dia lhe mostrava a pátria “metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza”. De novo se lhe deparava um penoso dissídio entre as glórias do passado do seu povo que, por imperativos de orgulho nacional e por necessidade de afirmação artística, desejava cantar, e os evidentes sinais de decadência de um presente onde as alturas do ideal haviam dado lugar cada vez mais amplo e fácil às baixezas do comportamento cívico dos indivíduos e da sociedade que formavam, também ela lançada no caos pelos graves pecados em toda a parte verificados contra o amor. Como conciliar o ideal com a realidade e os imperativos estéticos da poesia com a humana mesquinhez da vida? Aderindo ao preceito horaciano que fazia da beleza poética um meio de pedagogia (aut prodesse volunt aut delectare poetae!), Camões vai fazer do canto épico das glórias portuguesas uma lição de verdade cívica para os seus compatriotas de todos os tempos, tentando assim superar a tristeza colectiva do tempo que lhe estava presente.

Aníbal Pinto de Castro, Camões, Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido


LSP

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Eros, Philia, Agape


Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas, de certa forma, se impõe ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego só usa duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor – eros, philia (amor de amizade) e agape – os escritores neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), é retomado, com um significado mais profundo, no Evangelho de São João, para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota, sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado a beber veneno a eros que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim, uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não torna amarga, porventura, a coisa mais bela da vida? Porventura, não assinala ela proibições precisamente onde a alegria preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?
Mas será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos – de forma análoga, aliás, a outras culturas, viram em eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma “loucura divina” que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização de eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a “loucura divina”. Na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, “êxtase”, até ao Divino, mas queda, degradação do ser humano. Fica assim claro que eros necessita de disciplina, de purificação, para dar ao homem não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser
Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção de eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição de eros, não é o seu “envenenamento”, mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.

Bento XVI, Deus é Amor, 3-5
[Silva Pereira]

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O encontro com Jesus

O texto da homilia hoje apresentado como um comentário ao Evangelho incluiu uma afirmação que bem merece ser sublinhada: "A fé cristã, como sabemos, nasce, não da aceitação de uma doutrina, mas do encontro com uma pessoa, com Cristo morto e ressuscitado". O "como sabemos" referido é, talvez, uma generosidade retórica porque, de facto, abundantes são os que, "não sabendo", julgam que a fé cristã nasce da aceitação de uma doutrina. Volte-se, pois, a sublinhar: a fé cristã nasce do encontro - sempre renovado - com Jesus Cristo que morreu e ressuscitou.

EJML

terça-feira, 31 de março de 2009

Edward Green e o Papa




Edward Green, o maior perito em Sida da Universidade de Harvard, afirma que existe uma relação entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida. Deste modo, o cientista confirma as palavras do Papa Bento XVI, no avião que o levou aos Camarões, nas quais afirmou que a postura da Igreja é que o problema do Sida “não se pode resolver só com a distribuição de preservativos; pelo contrário, corre-se o risco de aumentar o problema”.
Numa entrevista à National Review Online, Edward Green, que não se declara católico nem contrário ao preservativo, afirma: “O Papa tem razão. Os nossos melhores estudos mostram que há uma relação consistente entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida”. De igual modo, o cientista, director do Projecto de Investigação de Prevenção do Sida de Harvard, constatou que “as evidências que temos apoiam os seus (do Papa) comentários. Não podemos associar maior uso de preservativos com menor taxa de Sida”.
O perito alerta para a causa deste fenómeno, o conhecido “comportamento desinibido”: “Quando se usa um meio técnico, como o preservativo, para reduzir um risco, frequentemente perdem-se os benefícios porque as pessoas correm maiores riscos do que quando não usavam o meio técnico”.
Edward Green é médico antropólogo com mais de 30 anos de experiência em países em via de desenvolvimento. A sua experiência inclui o Sida e doenças sexualmente transmissíveis, planificação familiar, cuidados primários de saúde materna e saúde infantil, e programas de cancro. Publicou cinco livros e é autor de mais de 250 estudos e pareceres técnicos. Vai publicar brevemente Sida e Ideologia, onde denuncia como a indústria recebe milhões de dólares a título de promoção do uso do preservativo, medicamentos e tratamentos para o Sida, e onde afirma que a solução está na mudança de comportamentos.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA (ONUSIDA) admitiu, no passado mês de Janeiro, ter inflacionado o número de infectados no mundo, depois de Edward Green, Daniel Halperin e James Chin terem apresentado dados científicos. Os analistas confirmaram que esta estratégia beneficiou a indústria do Sida que pede constantemente mais fundos. James Chin afirma que, apesar das correcções, os números continuam a ser elevados, havendo 25 milhões de enfermos, enquanto a ONUSIDA defende que há 33 milhões. Em África, o diagnóstico do Sida realiza-se através dos sintomas–enfraquecimento das defesas do organismo, doenças oportunistas, etc. Este tipo de diagnóstico é completamente impreciso. Numerosos peritos e cientistas denunciaram que se diagnostica como Sida o que é simplesmente fome. É uma estratégia manipuladora para mudar o nome dos problemas. Faz-se passar por Sida o que é fome, num terceiro mundo vítima do capitalismo selvagem. Tal estratégia gera milhões de subsídios públicos que embaratecem os medicamentos e beneficiam os grandes grupos farmacêuticos. O modelo de luta contra o Sida em África, centra-se, na perspectiva do ocidente, no envio de medicamentos e na distribuição de preservativos, em detrimento de uma educação sexual integral e melhores condições sanitárias e alimentares da população.
Edward Green opina que o paradigma da luta contra o Sida continua a ser o do Uganda que, nos anos 80, iniciou uma campanha que fomenta a monogamia, tentando modificar os comportamentos sexuais a um nível mais profundo.
Segundo a OMS, o Uganda tem a descida mais espectacular de infectados. Passou de 1.100.000 em 2001, para 940.000 em 2007. Mas se analisarmos a percentagem dos últimos 17 anos, passa de quase 14% para 5,4%. O Uganda tem numeroso grupo de cristãos, e não baseou a sua estratégia no preservativo, mas no restabelecimento da família tradicional africana. O Papa acentuou que a monogamia era a melhor resposta contra o Sida em África, o mesmo que constata Green ao afirmar que “as nossas investigações mostram que a redução do número de parceiros sexuais é a mais importante mudança de comportamento associada à redução das taxas de contágio do Sida”.
Ao mesmo tempo, a ONUSIDA reconheceu, em Março deste ano, que o “o início mais tardio da vida sexual e a fidelidade entre os parceiros” são parte das acções preventivas para evitar o contágio do HIV. Os métodos reconhecidos como mais fiáveis para prevenir o Sida são os divulgados pela OMS, chamados “ABC”(Abstinence, Being faithful, using Condoms – Abstinência, Fidelidade, Preservativo)

(Foto e resumo livre de um texto apresentado por http://www.forumlibertas.com/)

Luís Silva Pereira

segunda-feira, 16 de março de 2009

A Chaga do Lado




Sempre estranhei que os artistas que representaram Cristo crucificado tenham colocado, na grande maioria das vezes, a chaga aberta pela lança no lado direito do peito. Deveriam colocá-la do lado esquerdo, achava eu, partindo do suposto de que o soldado romano que trespassou Cristo, por mais desatento ou ignorante que fosse da anatomia humana, também haveria de o trespassar pelo lado esquerdo, uma vez que pretendia atingir directamente o coração. É aí, com efeito, que sentimos palpitar o coração, é nesse lado que toda a tradição cultural, erudita ou popular, o coloca. Ocorrem-me de repente uns versos da região de Miranda do Douro que dizem assim:

Apalpei meu lado esquerdo
Não achei meu coração.
Logo me deu um palpite
Que estava na tua mão”.

Poderíamos supor que os artistas se fundamentaram nos Evangelhos. Contudo, desse pormenor nada ficou, nem no Evangelho de S. João, em grego, o único que relata o episódio, nem na tradução latina da Vulgata, feita por S. Jerónimo. Também não aparece, quanto conseguimos averiguar, nas narrativas apócrifas que muito apreciam minúcias realistas e até mesmo pitorescas e que, precisamente por isso, em bastantes casos, influenciaram a iconografia sagrada. S. João apenas diz que um dos soldados, vendo Cristo já morto, “perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água” (Cap. XIX, 34). O termo grego que ele utiliza é πλευράν, que significa simplesmente lado, sem especificar de qual deles se trata. Por sua vez, a Vulgata latina traduz por latus, igualmente sem especificação.
Não poderá vir daqui, portanto, a tradição iconográfica de representar Cristo ferido do lado direito, tradição que terá começado numa iluminura do Evangelho Siríaco, datado do ano 586. Aí se pode ver, de facto, Cristo na cruz a ser trespassado, no lado direito, pelo célebre e apócrifo Longuinhos que, segundo a lenda, obteve a graça de ser curado quando uma gota do sangue de Cristo lhe caiu sobre a vista cega.
A predilecção quase unânime dos artistas pelo lado direito poderia perfeitamente explicar-se por razões de simbolismo cultural. O lado da salvação é o lado direito. É do lado direito que os artistas colocam o Bom Ladrão, embora os Evangelhos não digam de que lado ele estava. É do lado direito que colocam Nossa Senhora. É para o lado direito que fazem inclinar a cabeça de Cristo quando morre. Para o lado direito lhe inclinam o corpo na descida da cruz. Para esse lado convoca Jesus Cristo os bem-aventurados, no dia do Juízo Final. Ao lado direito do Pai se senta Cristo na sua glória, e é ao lado direito de Cristo que Nossa Senhora é coroada depois da assunção aos Céus. Simbolicamente, portanto, parece muito mais conveniente a chaga do lado direito porque o sangue e a água que dela saíram são geralmente interpretados como sinais da fundação da Igreja pela água do baptismo e pelo sangue da Paixão e, portanto, como sinais da salvação dos homens.
Do ponto de vista estético, seria também mais conveniente colocar a chaga desse lado. Se Cristo inclinou para lá o corpo, ao morrer, então seria muito mais fácil pintá-la ou desenhá-la. Bastava um simples traço vermelho ou um risco a preto. Se a pusessem do lado esquerdo, a inclinação do corpo para a direita faria com que a abertura da ferida ficasse mais escancarada, tornando-se também mais difícil a sua representação gráfica, pictórica ou escultórica.
Lembrei-me, em dado momento, por simples curiosidade, de verificar de que lado estaria a marca da chaga na célebre síndone de Turim. Fiquei estupefacto. A síndone de Turim revela que a chaga se encontra precisamente do lado direito! Os estudiosos dessa espantosa relíquia determinaram mesmo que a lança penetrou entre a quinta e a sexta costelas. Mais ainda: para sair a água (a linfa), e sangue, a ferida teria que ser feita pelo lado direito. Só assim atingiria a parte do coração que, nos cadáveres, fica cheia de sangue.
Não se pode daqui concluir, de modo nenhum, que a fonte de inspiração dos artistas tenha sido o lençol no qual, segundo se crê, o cadáver de Cristo esteve envolvido. Bastaria um só facto para refutar tal conclusão: apenas com a descoberta da fotografia foi possível, através do negativo fotográfico, olhar a “verdadeira realidade” que mostra a chaga do lado direito. No lençol, ela está no lado esquerdo porque a imagem do lençol é uma imagem invertida. Se os pintores se tivessem inspirado nela, teriam pintado a chaga no lado esquerdo, tal como aparece à vista. Mais ainda: só a partir de meados do séc. XIII é que se generaliza a pintura de Cristo na cruz com um pé sobre o outro, normalmente o direito sobre o esquerdo. Antes representavam-se geralmente separados. Ora a síndone mostra que os pés estiveram realmente pregados um sobre o outro (o esquerdo sobre o direito), e não lado a lado. Outro pormenor ainda: salvo raríssimas excepções, os artistas colocam os pregos na palma das mãos. A síndone revela que eles foram cravados nos pulsos. A síndone de Turim, pelas razões aqui apresentadas, e outras que não posso aqui referir, não foi, portanto, a fonte da iconografia da crucifixão.
Será de admitir uma tradição oral que identificou o lado pelo qual Jesus Cristo foi trespassado. Digo oral porque, estranhamente, só com São Bernardo, no século XII, é que aparece, pela primeira vez, uma referência escrita, num sermão da Paixão, ao lado direito.

Luís Silva Pereira

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Entrudo de D. Tomás


Para assinalar as festas do Carnaval, apresentamos um soneto de D. Tomás de Noronha, poeta satírico dos mais importantes do século XVII, em que se descreve o Carnaval vestido de cavaleiro, com armadura constituída por peças de carne e doçaria. É um soneto pouco conhecido, mas que bem merecia maior divulgação, quer pela sua qualidade literária, quer pelas relações de natureza cultural que estabelece.

Entrava em uma vista o Santentrudo
Cavalgado em cima de um leitão;
Por lança, um espeto c’um capão;
Uma tortilha de ovos por escudo.

Por elmo, a cabeça de um cornudo;
Por peito, o de um peru com seu limão;
Por espaldar levava um bom lacão;
Os braçais, de toucinho façanhudo.

Uma saia de malha de aletria;
Armaduras das pernas, de filhós;
As esporas, de bicos de perdizes.

Por banda, um borrachão de malvazia;
Saía co’estas armas mui feroz
Ao som de caldeirões e almofarizes.


Para melhor se compreender o poema, convém advertir que o primeiro verso “Entrava em uma vista o Santentrudo” significará que a figura do Entrudo faria parte de uma gravura ou de uma pintura. A palavra “vista” pode apresentar esse significado. E não se verifica nenhuma contradição entre o verbo “entrar” do primeiro verso e o verbo “sair” do penúltimo porque a gravura, ou pintura, representaria o Entrudo saindo a um combate com a Quaresma. Poderíamos ainda supor que o poeta descreve a figura do Entrudo numa representação teatral. Tal hipótese parece-nos pouco provável porque julgamos que representações deste tipo não faziam parte da tradição carnavalesca portuguesa. Apenas temos notícia de uma que se fazia na região de Santo Tirso, na qual surge um cavaleiro, o Entrudo, acompanhado da Quaresma. Esta, porém, dirige-se ao cavaleiro chamando-lhe Valdevinos, contaminação com a célebre figura de D. Beltrão da epopeia carolíngia, essa, sim, bem conhecida em Portugal. É verdade que, com alguma frequência, se encontram nas festividades carnavalescas portuguesas e europeias bonecos chamados Entrudos, montando a cavalo e acompanhados das suas companheiras, as Quaresmas, que são queimadas juntamente com eles. Tais bonecos apresentam-se em préstito fúnebre – o enterro do Entrudo – envergando roupas imundas e esfarrapadas. Trata-se, pois, de figurações alegóricas de velhos decrépitos que nada têm a ver com a iconografia do soneto de D. Tomás. A matriz textual deste último é muito diversa da desses enterros carnavalescos, embora também de raiz popular. Referimo-nos aos romances alegóricos medievais que narram a luta, ou justa, entre o Carnaval e a Quaresma, cujas armaduras são precisamente constituídas por carnes e peixes variados. A origem desta iconografia será o célebre poema anónimo do século XIII, La Bataille de Caresme et de Charnage. Neste poema, o Carnaval monta um veado com as hastes todas cobertas de calhandras e cotovias, rouxinóis e toutinegras. O elmo, em D. Tomás, é a cabeça de um cornudo, talvez um touro ou um veado, um bode ou mesmo a efígie do diabo (existem no folclore português máscaras carnavalescas que representam o veado e o demónio). As esporas, na Bataille são, genericamente, bicos de pássaros. As perdizes, juntamente com as codornizes, formam o lorigão; uma torta serve de escudo; carne de porco, juntamente com a de carneiro, bordada com agraço, forma o gibão, e uma peça de carne de porco funciona como espada. O pendão é de queijo fresco e a cota de armas é feita, em parte, de pudim de miolo de pão e, em parte, de empadinhas de pombo. Para manoplas, o autor francês escolheu dois frangos.
Parece-nos muito original a escolha de um leitão para montada do Entrudo de D. Tomás, já que, no texto francês, é um veado, e em várias outras representações, como a da pintura de Bruegel que acompanha este texto, a montada é uma pipa. Numa peça burlesca, porém, intitulada Le retour de Mardy Gras, a personagem Terça-feira Gorda aparece montada num porco com brida feita de salsichas cobertas com mostarda de Dijon, enquanto um presunto de Mayence lhe serve de escudo, e salsichões e salame de Milão lhe pendem da bandoleira. O Carnaval de D. Tomás carrega caldeirões e almofarizes, mas é pormenor mais frequente em outras representações que apresentam o Entrudo levando potes, panelas, tachos, sertãs, grelhadores, espetos, enfim todos os utensílios de cozinha que, metonimicamente, significam os excessos gastronómicos típicos da época. Não é por acaso que, no Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, a primeira ordem que dá a Quaresma, quando chega Quarta-feira de Cinzas, é a de lavar e arrumar cestos, cepos, bacias, cântaros, escudelas, sertãs, talhas, caldeiras, travessas, espetos, panelas, testos, canadas, pipas, todos os apetrechos culinários que se podem ver numa cozinha do tempo, não apenas como gesto simbólico de purificação, mas significando igualmente que não serão mais necessários durante o rigoroso jejum quaresmal. Não nos esqueçamos de que as festas carnavalescas, na sua origem se encontram profundamente ligadas à Igreja, como bem mostrou Jacques Heers em Festas de Loucos e Carnavais.
Se esta criação de D. Tomás pode ser vista como paródia carnavalesca à figura do cavaleiro, pode igualmente interpretar-se como afloramento do mito medieval do país da abundância alimentar que é o mito da País da Cocanha, país que algumas versões situam no mar, a oeste da Península Ibérica. As festividades carnavalescas, com os seus excessos gastronómicos podem ser interpretadas como celebração de um país utópico onde não há fome e não é preciso trabalhar. Este mito ainda permanece em algumas festividades populares portuguesas, nas quais, por vezes, encontramos, no recinto das festas, o chamado pau da Cocanha, que tem lá no alto géneros alimentícios que um trepador deve tentar alcançar.
Textos literários portugueses sobre o Carnaval são relativamente raros. Por isso terminamos com a transcrição de um outro soneto atribuído a António Serrão de Castro, poeta igualmente do séc. XVII, onde se descrevem as brincadeiras da época:

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas;

Das janelas c’um tanho dar na gente,
A buzina a tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo;

Não perdoar arroz nem cuscus quente,
Despejar pratos e alimpar tigelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo.

Luís Silva Pereira, Resumo de "O Entrudo de D. Tomás de Noronha, in Revista Portuguesa de Humanidades 9(2005) 205-226.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Os Elementos do Estilo




1 – Use uma linguagem positiva: em vez de “habitualmente não chegava à hora”, diga “habitualmente chegava tarde”; em lugar de “não recordou” diga “esqueceu” – e isso porque, consciente ou inconscientemente, o leitor prefere que se diga o que é a o que não é.
2 – Seja concreto: “Sobreveio um período de tempo desfavorável” constitui uma vagueza. “Choveu diariamente uma semana” seria a boa fórmula.
3 – Abrevie o mais que puder: escrever “atos de natureza hostil” é alongar de dois centímetros “atos hostis”.
4 – Não qualifique: sempre que não se tratar de estabelecer uma opinião, a qualificação prévia é desnecessária. Dizer que é “interessante” o fato que se vai narrar, é pichar o leitor de inimaginativo.
5 – Não use adornos: o estilo não é um molho para temperar uma salada; o estilo deve estar na própria salada.
6 – Coloque-se atrás do que escreve: escreva de tal forma que a atenção do leitor seja despertada sobretudo pelo sentido e pela substância do que está dito, e não pelo temperamento e pelos modismos do autor. O primeiro conselho a dar ao escritor que começa seria, pois: para chegar a um estilo, comece por não ter nenhum.
7 – Use substantivos e verbos: evite o mais possível adjectivos e advérbios. Não há adjectivo no mundo que possa estimular um substantivo exangue ou inadequado; isto sem subestimar adjectivos e advérbios, quando correctamente empregados. Mas a verdade é que são os nomes e os verbos que dão sal e cor ao estilo.
8 – Não superescreva (significando aqui don’t overwrite): a prosa excessivamente rica, adornada ou gorda torna-se mais facilmente nauseante.
9 – Não exagere e seja claro: primeiramente, porque o exagero pode tornar o leitor suspicaz; e a clareza, é lógico, facilita a comunicação. Mais vale recomeçar uma frase longa com que se está brigando, que persistir na briga. Frequentemente uma frase longa nada mais é que duas curtas.
10 – Não opine sem razão: ter por hábito ventilar opiniões próprias é prejulgar que o leitor as esteja pedindo, o que constitui um sinal de vaidade.

Vinicius de Morais, Para Viver um Grande Amor

[Silva Pereira]

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Viver com a língua de fora


Creio que foi Tucholski quem falou, uma vez, ironicamente, das pessoas "que vivem com a língua de fora"; dos que "arquejantes e sem respiração vão na traseira do tempo, para que nada nem ninguém lhes escape"; dos que, mais do que ter ideias, vivem de adaptar-se, como camaleões, à última moda. Impera o marxismo? Pois fazem-se marxistas ou semi-marxistas, se o facto os assusta demasiado. É o existencialismo que está na moda? Pois fazem-se existencialistas. Depois, relativistas. A seguir, secularistas. Mais tarde, niilistas ou o que começar a despontar no horizonte.
São como os escravos da moda. Só que a moda impera, ao fim e ao cabo, nos vestidos, enquanto eles se deixam escravizar pela fugacidade das ideias.
É um tipo de seres mais comum do que pode pensar-se. Não os aflige ter ou não ter razão. Aterrá-los-ia pensar hoje o que ontem esteve na moda, e já não estar "em dia". Vivem literalmente com a língua da alma de fora, obrigando a cabeça a correr atrás das mudanças de opinião.
Conheço pessoas cuja única ideologia é escolher, entre as várias opiniões em circulação, a mais avançada. Pessoas que morreriam diante da possibilidade de alguém os apodar de "antiquadas" ou, o que é pior, de "retrógradas". Há quem esteja disposto a dar a vida pelas suas ideias ou pela sua fé. Mas corariam de vergonha e acabariam por traí-las, se, em vez de serem levados à tortura, fossem acusados de "beatos" ou conservadores. São pessoas para as quais não conta o substrato do pensamento, mas exclusivamente o último livro, jornal ou revista que tenham lido. São devoradores do tempo, e acreditam que a verdade se rege pelos relógios. Pensam, numa palavra, que o de hoje é forçosamente mais verdadeiro que o de ontem.
Não parecem dar-se conta de que "o verdadeiro modernismo - como dizia Tagore - não é a escravidão do gosto, mas a liberdade do espírito". Também não se dão conta de que adorar o que hoje está na moda é prestar culto ao que amanhã será antiquadíssimo, porque não há nada tão fugidio como o fogo de artifício da novidade.
Um homem verdadeiramente livre é aquele, parece-me, que pensa e diz o que crê pensar e dizer, e nunca se pergunta se assim está ou não está na moda. Será duplamente livre se não se agarrar a grupos ou blocos de pensamento.
É que hoje, mais do que nunca, a gente pensa em blocos. Um senhor, por exemplo, que se julgue progressista, terá de aceitar tudo aquilo que se apresente como tal: não só o desejo de liberdade e de direitos humanos; não só a ânsia de um mundo evoluído, mas também o aborto, o permissivismo moral e o anti-militarismo. E se eu me sentisse progressista e, precisamente porque o sou, me pusesse a defender a vida ou a combater a droga?
(...) Nunca acreditei que a verdade esteja em bloco à direita ou à esquerda, no de ontem ou no amanhã. Creio que devo conservar livre o meu juízo para reconhecê-la onde ela estiver. Felizmente só me preocupa o que digam de mim Deus e a minha consciência, e posso dar-me ao luxo de sorrir diante de críticas e de comentários.
O que não creio que um homem deva fazer é passar a vida com a língua de fora, buscando apaixonadamente donde vêm os últimos tiros. Um homem assim pode servir para cata-vento, não para torre de catedral ou para ameia de castelo. Parece-me muito menos mau ser um pouco orgulhoso do que ser escravo e, ainda por cima, de um senhor tão variável e imprevisível como é a moda.
José Luís Martín Descalzo, Razões para a Alegria.
(Silva Pereira)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Epifania

Gerard David, Adoração dos Magos, 1500
"Eram intensas as estrelas"
(J. Guimarães Rosa)


Por muito que os sábios saibam, nunca sabem muito. Andam à procura da estrela real em equações numerosas, teorias balbuciantes que lembram linguagem de meninos aprendendo a ler. Não sabem que Deus podia criar outra tantas galáxias, outros tamanhos mundos, para festejar o Filho dele e nosso.
Os Reis foram a Belém porque repararam que as estrelas olhavam todas para lá. Sim, nessa noite, todos os astros olhavam para a Terra. Todos vieram ver. Brilhavam extremamente porque recebiam uma luz intensíssima, explosão infinita que subia da Terra. Bastou seguir a direcção dos mil olhares.
As novas estrelas eram o amor deles. Viam tudo de novo e caminhavam para o centro. Os sábios não sabem onde fica, mas o centro do universo é onde está o amor e a sua inteligência. Por isso, todo o universo andava ali à volta e eram tão intensas as estrelas. Brilhavam como no começo.
Quem ama sabe que as estrelas brilham mais. O amor é a luz do invisível.

Luís Silva Pereira, De Natal em Natal

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dia da Paz


"Depois fazia luar, fazia uma canção na noite"
(J. Gumarães Rosa)

Primeiro vieram os anjos, todos, escorrendo luz, porque bebem sem parar nas fontes luminosas. Bebem pela boca, pelos olhos, bebem pelo coração. O amor é assim. Uma sede inapagável, um ardor imortal.
Os anjos não podem evitar a luz. Onde aparecem, brilham. É deles. Brilham e cantam porque toda a luz inicia uma canção. Vivem felicíssimos.
Os pastores gritaram:
- Já é manhã!
Não acharam estranha a voz da nadrugada, as ardentes palavras da harmonia e da paz.
Os anjos arderam, cantando. Depois partiram e ficou luar.
O luar é o que resta da presença deles, a lembrança que tem a noite dos anjos indo embora, uma canção a afastar-se. Ecos no coração de uma bela harmonia. Ouve-se ainda.
Por isso é que o luar faz sempre saudades e os poetas cantam de noite. Sentem que passaram anjos. Vão atrás deles, a apanhar os restos das canções.
Todo o luar é natalício. Lembra canções de anjos.

Luís Silva Pereira, De Natal em Natal

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Filho Pródigo e o Natal dos humanos



“Esta é a tese do cristianismo acerca do Homem: o homem só é Homem enquanto é um eu e só é um eu porque é um Filho, um Filho da Vida, isto é, um Filho de Deus”

“Esquecido de Si no agir misericordioso, o eu é doação a si mesmo na Arqui-Doação da Vida absoluta e da sua Arqui-Ipseidade. O eu reencontrou o Poder que não nasce mas o faz nascer. O eu renasceu. Neste nascer de novo reencontrou a Vida, de modo que doravante não nascerá mais…”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 139.173.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Advento



CÂNTICO PARA JOÃO

Benedictus Dominus, Deus Israel, quia visitavit et redemit populum suum.
Canticum Zachariae, Luc. I, 68-79

São João pra ver as moças
Fez uma fonte de prata
(Cancioneiro Popular)


As portas do Inferno não prevalecem contra
O mais limpo que a neve antes que João leve à água
A fonte de água viva e O aponte a dedo:
- Ecce Agnus Dei!

Anho branco, anho novo, cuja pedra de poiso é o Livro,
O Cordeiro de Deus que tira os pecados do Mundo
Como quem tosa a relva e come da ervilhaca,
Branco do Lírio-mãe como o vitelo herdou malha,
Penetrante de bafo como o vento na frincha,
Doce ao jugo do Pai que ouviu Abraão e a Ele não!
O Cordeiro das lãs ainda não bem cardadas,
Que eu levo, levas tu, e aquele outro, e o outro ainda,
Procissão de pastores à matança da Páscoa,
Carniceiros vendendo o que deviam comer com alfaces bravas.

João!
Eu admiro João no poço dos Essénios,
Com Zacarias mudo e o gafanhoto ardente,
João Bebe-Água, João a quem basta um pelico acabado de esfolar,
João a quem põe mesa a abelha e viu curvada
Ao verter de sua concha a cabeça de sangue do sudários!
Feliz João, filho de velha e núncio da Boa Nova,
O que desiste ao saber que o Outro é que vem, é que é,
E prefere fazer de leão num Zoo de dançarina
E de cabeça de rês num prato de degola,
A passar pelo Leão na Terra do Cordeiro leonino
Filho da Pomba:
- Ecce Agnus Dei!

João, que não desata a correia à sandália do Maior(non sum dignus!),
Que não faz a vontade à que o devora de olhos,
Lhe ama a carne de magro, escorcho de samarra,
La sale Salomé, vampe orientale aux friandises,
E ele – ácido, genuíno, todo água viva e chão de cardos,
Fiel a seu pai mudo e à hora em que a fala lhe rebenta
Assim como a fonte à vara:

- “Benedictus Dominus, Deus Israel,
Que visitou o seu povo,
Remiu o seu povo
E levantou o altar da nossa salvação em casa de seu servo David,
Sicut locutus est per os sanctorum,
Qui olim fuerunt,
Para nos livrar da mão dos nossos inimigos”,
E o mais que disse o velho Zacarias
Ex-mudo como o parvo ante a velhinha estéril
Mas sem papas na língua agora que o menino mexe,
E ele, como o outro que diz, fala pelos cotovelos,
Amplo de graves e de agudos como um órgão
E zoando ao vento como o moinho ou o decacórdio
Na cita do seu João:

- “Et tu, puer,
Profeta do Altíssimo serás chamado”...
Para que fosse abrindo ao Senhor seus caminhos
E dando ao seu povo a ciência do salvar
E a remissão dos pecados, et coetera,
E iluminasse aqueles por lá da sombra da morte:
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.
Os nossos pés direitos na estradada paz, imagine-se!
Os nossos pés no caminho e no endireito da paz...
Como é? Repete, velho salamurdo e santo!
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.

Gloria. (Com “Sicut erat”).

Amen.
Vitorino Nemésio, Cântico de Véspera
(Silva Pereira)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Pirilampo


O povo das Beiras que não sabe grego chama-lhe, com propriedade que os Morais, os Torrinhas, os Morenos invejariam, chama-lhes luze-cu. É um bichinho de cauda radiante. Nas noites búzias em que a lua, por detrás dos pinheiros, negaceia e pouco alumia, acende ele o seu farolim. Parece uma gota de luz caída dos espaços, e os outros insectos devem orientar-se por ela ou, como nós, sentir curiosidade por tão estranho fenómeno. O mais estranho é que o bichinho tem pleno domínio da luzinha que lhe coube em sorte. Acende-a pacificamente, mas apaga-a se for atacado; alumia os dignos e furta-a aos maléficos.
Há momentos, num muro musguento, estive a ver a luzinha admirável que se ia deslocando ao ritmo do seu sono. Se tudo neste Universo tem préstimo e função, a que obedecerá este fogo radiante?
Sendo pequenino o bicho, deve ser idêntico o motivo ao que leva os cantoneiros a pôr uma luz nos boqueirões das estradas danificadas. O pirilampo não quer ser atropelado e dá sinal de si: passem de largo os apressados. Ou será para se alumiar a si próprio e se guiar na colheita da alimentação?
Quanto mais torva é a noite mais brilha a gotazinha estelar. As aves insectívoras não fazem vida nocturna, senão seria um perigo acusar-se tão a pleno dos bicos vorazes. Poisadas e dormentes nos ramos altos, as aves devem perguntar-se pela razão de ser desta maravilha. Lá em cima, as estrelas são iguais, deve ser qualquer delas, trazida por sopro de vento. E metendo o bico debaixo da asa adormecem com o caso solucionado.
Escasseiam, mas ainda existem, humanos com alma de pirilampo. Irradiam uma luzinha pacífica na noite do mistério que nos envolve. Acontece-nos sentir um grato bem-estar junto de certas pessoas que irradiam conhecimentos, conselhos sem segundas intenções, e se calam depois numa aceitação cordial da vida e da morte sem birra nem acinte. São homens destes que constelam a nossa noite secular com um lucilar a que assomamos enlevados.
Há uma poesia de um poeta brasileiro que nos manda fazer o seguinte: se não podemos arder em alta labareda que os outros aqueça e encaminhe, acendamos uma fogueira no alto do monte na possibilidade de haver um caminheiro extraviado na savana que deste modo se reoriente. Quando tudo em redor de nós escurece, uma simples gota de luz é um favor sem preço.
Cada um de nós devia levar uma luzinha acesa em pavio próprio, uma luzinha original, irradiação de personalidade inconfundível. “Sê tu, no reino de todos os declínios” recomendou um pirilampo da noite europeia, recomendou Rainer Maria Rilke.
Se cada um de nós fosse o que é, e o fosse com pureza, com autenticidade, teríamos, poisadas na bacidão da terra, as constelações radiantes de caminhos e destinos. O contraste de aparente pequenez do minúsculo pirilampo com o ilimite da escuridão insinua que a qualidade do fogo, o timbre espiritual, aponta outra ordem de grandeza – o da doce qualidade em que se inspiram os que são bons. E não há ninguém que se não enterneça com este pequeno faroleiro e se não deixe ir a observá-lo, a apontá-lo com o dedo, a celebrá-lo na sua faina de alumiar o mundo. E talvez ele julgue que de facto alumia todo o universo; e como a sua intenção profunda é essa – devemos louvá-lo aqui e desejar que muitos de nós imitem este valente, ponham um risco de luz na noite meditativa, façam da vida um pequeno farol. É o que faz o luze-cu beirão, o chinês e o que o australiano vê na parede do seu quintal e o árabe no tope do minarete.
De qualquer escuridão pode pungir a luzinha silenciosa, animada, vivificante. O pirilampo tem defeitos? Quem o poderá dizer? Assim, quando entre os humanos uma qualidade excelsa irradia de uma pessoa, ofusca-nos para algum possível defeito que possa existir, mas se extingue na luz radiante. Deixemos a gotazinha de luz do pirilampo a brilhar na noite e encher-nos com sua puríssima lição.

João Maia, O Livro dos Animais


[Silva Pereira]

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A cotovia


Esse menino que aí vem, no caminho que sobe do rio para a aldeia, a meia manhã – não se assustem – sou eu. Eu disse “rio”, mas talvez fosse melhor dizer “ribeira”, pois a água, lá no fundo dos cômoros, tem um chalrar feminino e roupa lavada a desbanda, além de que o seu nome é Ribeira da Isna.
Pois é verdade: venho do moinho onde meu avô, em torno da pedra alveira, prepara a farinha para as filhós do Natal. A bouça está toda orvalhada. O sol levanta uns fuminhos das plantas rastiças e, embora não aquente, alegra vale e monte e promete aos pastores um dia de Rodrigues Lobo.
Não encontro ninguém no caminho, como tanto desejava, pois haveis de saber que eu sou comunicativo desde que me conheço. Olho para a direita e para a esquerda. De repente, do plaino da esteva roçada levanta-se a pique sobre o céu muito azul uma cotovia; sigo-a, tirando a boina vasca, e oiço-a entornar lá do alto aquelas luminosas notas de música que os campos bebem e comungam, ficando logo mais espirituais.
Ave maravilhosa, tão amiga do sol e da altura como humilde na escolha do sítio onde ninhar… Esse sítio é sempre ao rés de um toro de murta, de esteva velha, de moita ou carqueja. É no chão, abrigado do norte.
Na cotovia tudo é puro, belo, aéreo, até o nome. É por isso que os poetas que sabem o que é bom a deixam voar nos seus versos nas horas melhores, mesmo que a não tenham visto, como eu, na rústica manhã de que vos falo.
Mas espera. A cotovia ergueu-se dali, daquela moita. A manhã vai em meio ou coisa: sozinha não andaria. De facto, mais duas cotovias levantam voo para o sol e soltam espaçadamente as notas puríssimas.
Ninguém sabe o que come a cotovia. Só de luz não viverá, mas parece. Não incomoda ninguém – bicho ou homem. Arreda-se um tudo-nada da aldeia, mas saúda quem passa no caminho. Ouvi-la é sentir a alegria do céu a tocar a terra.
Quando poisada, rodeia-se sempre de um tufo de mato, e moireja a vidinha tão discretamente que ninguém saberá ao certo dizer como agencia o seu pratinho. Nem o cascão, que é metediço, a acusou alguma vez de um roubo. Persegue-a, mas ela sobrevoa-o e entorna-lhe na cabeçorra de arrenegado o óleo fula do seu canto, e apazigua-o como a harpa de David pacificava Saul.
A cotovia é feminina cem por cento. Até no nome, que vale para os dois. Vê-la de manhã, dispõe bem para todo o dia. Lá nos meus sítios virgilianos e bíblicos, muito mofino há-de ser quem tirar um ninho de cotovia. Eu, que me tenho de confessar de outras depredações, nunca tirei nenhum. Achei um, mas não o tirei. Olhei tanto para os três ovos que ele tinha que parece que ainda os tenho aqui dentro da retina.
As virtudes desta ave são como as de certas pessoas ou como as da luz. Gostamos delas, as suas graças fazem uma tal unidade que não se podem migar em palavras. Quando queremos falar de uma virtude, vem o ser todo agarrado.
A cotovia, Deus me perdoe, tem algo de Nossa Senhora, algo de uma mãe ideal que fosse só mãe e mais nada. O seu canto é como uma palavra puríssima que nos recolhe e levanta, matinal e vespertino, secreto como a luz, misterioso como ela. A psicologia da cotovia, quem a leva dentro da alma não tenha dúvida que leva um tesoiro sem preço.
Eu, que vi a cotovia naquela manhã de infância, e depois a estudei com algum realismo, tenho-a encontrado ou sonhado dentro de muita gente. Um destes dias, numa artéria de Lisboa, estava eu feito parvo a olhar para um daqueles mamarrachos dentro dos quais cuido que vive a Tristeza, quando um bracito me repuxou a manga. Viro-me e dou com dez réis de gente, duas trancinhas descaídas e um chapelito branco: “O senhor fazia favor de me passar para a outra banda, porque a minha mãezinha não quer que eu atravesse sozinha”. Caí da abstracção idiota e conduzi a cotovia (quero dizer, a pequenita), a qual, no trajecto exíguo, creio que me contou toda a história doméstica, toda a história escolar, rematando que tinha lá uma boneca bonita que nem…
Mas para ver e ouvir uma cotovia – não se esqueçam – é preciso ter dentro da alma qualquer coisa como a pureza da uma manhã rusticana, rociada de bons orvalhos e o amor da infância que se teve…

João Maia, O Livro dos Animais

[Silva Pereira]

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Palavra-Vida



Alexei von Jawlensky - A Palavra
“À palavra é atribuído, em geral, um poder. Este atinge o seu mais alto grau, quando recebe uma significação ontológica. Um poder de criar, isto é, de instituir no ser, em que o nomear as coisas tem a propriedade de as fazer existir. Esta capacidade ontológica de a palavra conferir o ser ao que nomeia, reserva-se a Deus. Nisso consiste a sua omnipotência, uma omnipotência da palavra – palavra que, só por si, faz surgir do nada aquilo que chama à existência, pelo simples som da sua voz, submetendo-a aos detalhes da sua organização. Neste domínio, Deus não tardou em ter émulos ou rivais. À semelhança de Deus, o artista moderno gaba-se de ser criador. Criador de uma obra eventualmente mais rica, mais surpreendente, seguramente mais nova do que a natureza criada por Deus. Desta forma, o artista poderia sobrepor-se a Deus pelo seu génio inventivo ou pela sua sofisticação. No caso do escritor, o poder das palavras para representar mundos desconhecidos é ainda mais evidente.
A analogia entre criação divina e o acto criador do artista moderno é um dos lugares comuns da crítica do nosso tempo. A sua pressuposição ingénua e simulada manifesta-se-nos, agora. A palavra que serve de protótipo à ideia de criação estética ou divina é a palavra do mundo – a palavra que nomeia os objectos trá-los à visibilidade mundana, para a exterioridade. O que caracteriza uma tal palavra é a sua incapacidade principial para conduzir à experiência efectiva aquilo que anuncia. Daí o carácter propriamente mágico que reveste, quando se pretende fazê-la representar esse papel. A magia consiste nisto: pronunciar palavras, inteligíveis se possível, às quais é atribuído o poder de criar uma realidade, a qual as palavras, enquanto significações vazias, são incapazes de produzir.
...A Palavra da Vida não fala só no começo: ela fala no vivente. A Palavra da Vida anuncia o viver do vivente e é esse viver que é dito na Palavra. Desta forma a Vida gera o vivente, dando-lhe a vida, permitindo-lhe auto-revelar-se na sua auto-revelação… Assim, cada vivente, enquanto vive, só vive da Palavra da Vida. A Palavra da Vida diz-lhe o seu próprio viver.”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 222-224.