quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dia de Camões


Nesse seu mundo interior de desterro e de caos, o amor, quase sempre vivido à distância, ora geograficamente marcada no espaço, ora, sobretudo, medida e alongada pelo desdém, pela falta de correspondência ou até pelo esquecimento, interioriza-se; e o cânone poético que até então lhe servira para o cantar, altera-se profundamente: a celebração dos efeitos da beleza corpórea dá lugar à exaltação do amor suscitado por uma mulher que, vista à maneira dos neoplatonistas, lhe aparece como inefável “raio da divina formosura”. Esse será o caminho que lhe permitirá vencer as contingências do mundo e da vida, dolorosamente marcadas pelo fugaz engano do tempo passado e pelo amargo desengano do presente, através de uma ascese que o levará ao reencontro com a sua primeira essência divina. Feito este percurso, a confusão há-de transformar-se em harmonia, as falaciosas aparências do mundo visível na segura transparência do mundo inteligível, o pecado em graça, o efémero em eterno, a terrena fealdade de Babilónia na serena beleza da Jerusalém Celeste.
Mas Camões (por si e pelo homem que ele sente metonimicamente representar!) sabe que as suas forças não chegam para empreender essa ascese, preso como está às imperfeições do amor humano e à sua débil condição de pecador. É então que, entoando a sua palinódia de arrependimento, procura, sequioso, a fonte da graça no poder salvífico da Paixão de Cristo, consciente como está de que, pela fragilidade dessa sua condição, não reencontrará sem ela, na “terra da glória”, a essência divina da sua condição humana. Por isso e para isso, terá de trocar a frauta simbólica com que entoara os “cantares d’amor profano” pela lira dourada com que vai cantar “versos d’amor divino”.
Insatisfeito ou perturbado com os males do tempo presente, que a sua experiência de vida em cada dia dolorosamente lhe fazia sentir, Camões procurava superá-los no plano do transcendente e do intemporal, graças à sua extraordinária sensibilidade, à sua cultura e à sua capacidade de criação, pela qual a escrita poética se transformava num canto de desabafo, ainda que para ele não encontrasse destinatário adequado, pela singularidade desse mesmo canto ou pelo isolamento espiritual do seu emissor.
É nesta perspectiva que Os Lusíadas, apesar das características próprias do género épico, se integram perfeitamente no macrotexto da obra de Camões, visto que transpõem para o colectivo problemas semelhantes àqueles que o Poeta sentia no seu foro individual.
Ao empreender a elaboração da sua epopeia, conhecia já Camões, por experiência própria, a grave crise moral, social e política que afectava profundamente o corpo e a alma da Nação Portuguesa. Respondendo às expectativas que a consciência nacional viera desenvolvendo ao longo de mais de um século e que a teoria poética do Renascimento arvorara em requisito indispensável para a equiparação das literaturas modernas ao nível de qualidade das antigas, Camões decide celebrar na tuba canora e belicosa da epopeia “as armas e os barões assinalados” que, durante séculos, haviam construído a colectividade portuguesa; ao mesmo tempo, porém, não podia fechar os olhos à desoladora realidade que em cada dia lhe mostrava a pátria “metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza”. De novo se lhe deparava um penoso dissídio entre as glórias do passado do seu povo que, por imperativos de orgulho nacional e por necessidade de afirmação artística, desejava cantar, e os evidentes sinais de decadência de um presente onde as alturas do ideal haviam dado lugar cada vez mais amplo e fácil às baixezas do comportamento cívico dos indivíduos e da sociedade que formavam, também ela lançada no caos pelos graves pecados em toda a parte verificados contra o amor. Como conciliar o ideal com a realidade e os imperativos estéticos da poesia com a humana mesquinhez da vida? Aderindo ao preceito horaciano que fazia da beleza poética um meio de pedagogia (aut prodesse volunt aut delectare poetae!), Camões vai fazer do canto épico das glórias portuguesas uma lição de verdade cívica para os seus compatriotas de todos os tempos, tentando assim superar a tristeza colectiva do tempo que lhe estava presente.

Aníbal Pinto de Castro, Camões, Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido


LSP

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