sexta-feira, 12 de junho de 2009

Santo António


De maneira, meu Santo, que deixais Portugal e vos embarcais para África, porque dizeis que ides buscar o martírio? Antes por isso mesmo vós não deveis sair da vossa Pátria. Não tendes vós já encerrado no peito aquele grande tesouro de sabedoria e eloquência com que depois haveis de esclarecer e assombrar o mundo, e agora a vossa modéstia e humildade encobre e dissimula, e quase contra o conselho deste mesmo Evangelho tem escondido debaixo do meio alqueire: Neque enim accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio? Escusado é logo ir buscar o martírio incerto, por mar, em terras estranhas, se o tendes mais breve e mais seguro na mesma onde nascestes. Amanheçam em Coimbra os resplendores dessa Teologia, que depois há-de ter a primeira cadeira na segunda Religião de que tendes tomado o hábito; passai com os ecos dessa fama a Lisbo e começai logo a levar após vós a Corte com a eloquência mais que humana dessa língua imortal, e eu vos prometo (não tanto que ela falar, senão depois que for falada) que não faltem naturais vossos que vos façam mártir. Não vos asseguro rodas de navalhas nem bois de metal, porque lá não se martiriza com tanto engenho. Mas se vos contentais com martírio mais aparelhado, e mais vulgar, de seres logo um S. Sebastião, não o duvideis. Todos os raios que de si despedir a vossa luz, se hão-de converter em setas que se empreguem em vós. O vosso nome há-de ser o aplauso de todas as vozes, e o vosso corpo o alvo de todas as setas. Não vos há-de valer serdes filho de S. Francisco, uma vez que mostrardes que sois geração de Gigante: Stirpem Enac vidimus tibi.[...].
Mas como Deus não queria de António o seu martírio, a nova providência de uma furiosa tempestade o derrotou da Pátria, para onde tornava, e o levou a tomar porto em Itália. E porquê, ou para quê? Porque Deus lhe tinha mandado que luzisse a sua luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus. E para a sua luz luzir diante dos homens, era necessário que o mesmo Deus o levasse a terra onde houvesse homens, diante dos quais se pudesse luzir. Oh terra verdadeiramente bendita, Pátria da verdade, asilo da razão, Metrópole da Justiça, que não debalde te escolheu Deus para colocar em ti o seu eterno sólio![...]
Já agora, meu Santo, pode luzir a vossa luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus; porque já estais em terra de homens, diante dos quais se pode luzir. Tanto vos era necessária a ausência de uns, como a presença dos outros. Já os mesmos Sumos Pontífices vos chamam Arca do Testamento, já as vossas vozes são ouvidas como oráculos, já as vossas razões e sentenças são recebidas e veneradas como Divinas. E não porque vós hoje sejais outro do que dantes éreis, nem outros os documentos da vossa doutrina, mas porque tanto vai de lugar a lugar, e de homens a homens, Coram hominibus.
Esta felicidade de achar S. António homens diante dos quais luzisse a sua luz, como o Senhor lhe mandava, foi na minha opinião uma das maiores graças que o mesmo Senhor lhe concedeu, porque sendo muito poucos no mundo os homens que podem luzir, aqueles diante dos quais se possa luzir ainda são muito menos.

António Vieira, Sermão de Santo António, em Roma na Igreja dos Portugueses.


SP

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