quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Pirilampo


O povo das Beiras que não sabe grego chama-lhe, com propriedade que os Morais, os Torrinhas, os Morenos invejariam, chama-lhes luze-cu. É um bichinho de cauda radiante. Nas noites búzias em que a lua, por detrás dos pinheiros, negaceia e pouco alumia, acende ele o seu farolim. Parece uma gota de luz caída dos espaços, e os outros insectos devem orientar-se por ela ou, como nós, sentir curiosidade por tão estranho fenómeno. O mais estranho é que o bichinho tem pleno domínio da luzinha que lhe coube em sorte. Acende-a pacificamente, mas apaga-a se for atacado; alumia os dignos e furta-a aos maléficos.
Há momentos, num muro musguento, estive a ver a luzinha admirável que se ia deslocando ao ritmo do seu sono. Se tudo neste Universo tem préstimo e função, a que obedecerá este fogo radiante?
Sendo pequenino o bicho, deve ser idêntico o motivo ao que leva os cantoneiros a pôr uma luz nos boqueirões das estradas danificadas. O pirilampo não quer ser atropelado e dá sinal de si: passem de largo os apressados. Ou será para se alumiar a si próprio e se guiar na colheita da alimentação?
Quanto mais torva é a noite mais brilha a gotazinha estelar. As aves insectívoras não fazem vida nocturna, senão seria um perigo acusar-se tão a pleno dos bicos vorazes. Poisadas e dormentes nos ramos altos, as aves devem perguntar-se pela razão de ser desta maravilha. Lá em cima, as estrelas são iguais, deve ser qualquer delas, trazida por sopro de vento. E metendo o bico debaixo da asa adormecem com o caso solucionado.
Escasseiam, mas ainda existem, humanos com alma de pirilampo. Irradiam uma luzinha pacífica na noite do mistério que nos envolve. Acontece-nos sentir um grato bem-estar junto de certas pessoas que irradiam conhecimentos, conselhos sem segundas intenções, e se calam depois numa aceitação cordial da vida e da morte sem birra nem acinte. São homens destes que constelam a nossa noite secular com um lucilar a que assomamos enlevados.
Há uma poesia de um poeta brasileiro que nos manda fazer o seguinte: se não podemos arder em alta labareda que os outros aqueça e encaminhe, acendamos uma fogueira no alto do monte na possibilidade de haver um caminheiro extraviado na savana que deste modo se reoriente. Quando tudo em redor de nós escurece, uma simples gota de luz é um favor sem preço.
Cada um de nós devia levar uma luzinha acesa em pavio próprio, uma luzinha original, irradiação de personalidade inconfundível. “Sê tu, no reino de todos os declínios” recomendou um pirilampo da noite europeia, recomendou Rainer Maria Rilke.
Se cada um de nós fosse o que é, e o fosse com pureza, com autenticidade, teríamos, poisadas na bacidão da terra, as constelações radiantes de caminhos e destinos. O contraste de aparente pequenez do minúsculo pirilampo com o ilimite da escuridão insinua que a qualidade do fogo, o timbre espiritual, aponta outra ordem de grandeza – o da doce qualidade em que se inspiram os que são bons. E não há ninguém que se não enterneça com este pequeno faroleiro e se não deixe ir a observá-lo, a apontá-lo com o dedo, a celebrá-lo na sua faina de alumiar o mundo. E talvez ele julgue que de facto alumia todo o universo; e como a sua intenção profunda é essa – devemos louvá-lo aqui e desejar que muitos de nós imitem este valente, ponham um risco de luz na noite meditativa, façam da vida um pequeno farol. É o que faz o luze-cu beirão, o chinês e o que o australiano vê na parede do seu quintal e o árabe no tope do minarete.
De qualquer escuridão pode pungir a luzinha silenciosa, animada, vivificante. O pirilampo tem defeitos? Quem o poderá dizer? Assim, quando entre os humanos uma qualidade excelsa irradia de uma pessoa, ofusca-nos para algum possível defeito que possa existir, mas se extingue na luz radiante. Deixemos a gotazinha de luz do pirilampo a brilhar na noite e encher-nos com sua puríssima lição.

João Maia, O Livro dos Animais


[Silva Pereira]

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