quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A cotovia


Esse menino que aí vem, no caminho que sobe do rio para a aldeia, a meia manhã – não se assustem – sou eu. Eu disse “rio”, mas talvez fosse melhor dizer “ribeira”, pois a água, lá no fundo dos cômoros, tem um chalrar feminino e roupa lavada a desbanda, além de que o seu nome é Ribeira da Isna.
Pois é verdade: venho do moinho onde meu avô, em torno da pedra alveira, prepara a farinha para as filhós do Natal. A bouça está toda orvalhada. O sol levanta uns fuminhos das plantas rastiças e, embora não aquente, alegra vale e monte e promete aos pastores um dia de Rodrigues Lobo.
Não encontro ninguém no caminho, como tanto desejava, pois haveis de saber que eu sou comunicativo desde que me conheço. Olho para a direita e para a esquerda. De repente, do plaino da esteva roçada levanta-se a pique sobre o céu muito azul uma cotovia; sigo-a, tirando a boina vasca, e oiço-a entornar lá do alto aquelas luminosas notas de música que os campos bebem e comungam, ficando logo mais espirituais.
Ave maravilhosa, tão amiga do sol e da altura como humilde na escolha do sítio onde ninhar… Esse sítio é sempre ao rés de um toro de murta, de esteva velha, de moita ou carqueja. É no chão, abrigado do norte.
Na cotovia tudo é puro, belo, aéreo, até o nome. É por isso que os poetas que sabem o que é bom a deixam voar nos seus versos nas horas melhores, mesmo que a não tenham visto, como eu, na rústica manhã de que vos falo.
Mas espera. A cotovia ergueu-se dali, daquela moita. A manhã vai em meio ou coisa: sozinha não andaria. De facto, mais duas cotovias levantam voo para o sol e soltam espaçadamente as notas puríssimas.
Ninguém sabe o que come a cotovia. Só de luz não viverá, mas parece. Não incomoda ninguém – bicho ou homem. Arreda-se um tudo-nada da aldeia, mas saúda quem passa no caminho. Ouvi-la é sentir a alegria do céu a tocar a terra.
Quando poisada, rodeia-se sempre de um tufo de mato, e moireja a vidinha tão discretamente que ninguém saberá ao certo dizer como agencia o seu pratinho. Nem o cascão, que é metediço, a acusou alguma vez de um roubo. Persegue-a, mas ela sobrevoa-o e entorna-lhe na cabeçorra de arrenegado o óleo fula do seu canto, e apazigua-o como a harpa de David pacificava Saul.
A cotovia é feminina cem por cento. Até no nome, que vale para os dois. Vê-la de manhã, dispõe bem para todo o dia. Lá nos meus sítios virgilianos e bíblicos, muito mofino há-de ser quem tirar um ninho de cotovia. Eu, que me tenho de confessar de outras depredações, nunca tirei nenhum. Achei um, mas não o tirei. Olhei tanto para os três ovos que ele tinha que parece que ainda os tenho aqui dentro da retina.
As virtudes desta ave são como as de certas pessoas ou como as da luz. Gostamos delas, as suas graças fazem uma tal unidade que não se podem migar em palavras. Quando queremos falar de uma virtude, vem o ser todo agarrado.
A cotovia, Deus me perdoe, tem algo de Nossa Senhora, algo de uma mãe ideal que fosse só mãe e mais nada. O seu canto é como uma palavra puríssima que nos recolhe e levanta, matinal e vespertino, secreto como a luz, misterioso como ela. A psicologia da cotovia, quem a leva dentro da alma não tenha dúvida que leva um tesoiro sem preço.
Eu, que vi a cotovia naquela manhã de infância, e depois a estudei com algum realismo, tenho-a encontrado ou sonhado dentro de muita gente. Um destes dias, numa artéria de Lisboa, estava eu feito parvo a olhar para um daqueles mamarrachos dentro dos quais cuido que vive a Tristeza, quando um bracito me repuxou a manga. Viro-me e dou com dez réis de gente, duas trancinhas descaídas e um chapelito branco: “O senhor fazia favor de me passar para a outra banda, porque a minha mãezinha não quer que eu atravesse sozinha”. Caí da abstracção idiota e conduzi a cotovia (quero dizer, a pequenita), a qual, no trajecto exíguo, creio que me contou toda a história doméstica, toda a história escolar, rematando que tinha lá uma boneca bonita que nem…
Mas para ver e ouvir uma cotovia – não se esqueçam – é preciso ter dentro da alma qualquer coisa como a pureza da uma manhã rusticana, rociada de bons orvalhos e o amor da infância que se teve…

João Maia, O Livro dos Animais

[Silva Pereira]

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