sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Palavra-Vida



Alexei von Jawlensky - A Palavra
“À palavra é atribuído, em geral, um poder. Este atinge o seu mais alto grau, quando recebe uma significação ontológica. Um poder de criar, isto é, de instituir no ser, em que o nomear as coisas tem a propriedade de as fazer existir. Esta capacidade ontológica de a palavra conferir o ser ao que nomeia, reserva-se a Deus. Nisso consiste a sua omnipotência, uma omnipotência da palavra – palavra que, só por si, faz surgir do nada aquilo que chama à existência, pelo simples som da sua voz, submetendo-a aos detalhes da sua organização. Neste domínio, Deus não tardou em ter émulos ou rivais. À semelhança de Deus, o artista moderno gaba-se de ser criador. Criador de uma obra eventualmente mais rica, mais surpreendente, seguramente mais nova do que a natureza criada por Deus. Desta forma, o artista poderia sobrepor-se a Deus pelo seu génio inventivo ou pela sua sofisticação. No caso do escritor, o poder das palavras para representar mundos desconhecidos é ainda mais evidente.
A analogia entre criação divina e o acto criador do artista moderno é um dos lugares comuns da crítica do nosso tempo. A sua pressuposição ingénua e simulada manifesta-se-nos, agora. A palavra que serve de protótipo à ideia de criação estética ou divina é a palavra do mundo – a palavra que nomeia os objectos trá-los à visibilidade mundana, para a exterioridade. O que caracteriza uma tal palavra é a sua incapacidade principial para conduzir à experiência efectiva aquilo que anuncia. Daí o carácter propriamente mágico que reveste, quando se pretende fazê-la representar esse papel. A magia consiste nisto: pronunciar palavras, inteligíveis se possível, às quais é atribuído o poder de criar uma realidade, a qual as palavras, enquanto significações vazias, são incapazes de produzir.
...A Palavra da Vida não fala só no começo: ela fala no vivente. A Palavra da Vida anuncia o viver do vivente e é esse viver que é dito na Palavra. Desta forma a Vida gera o vivente, dando-lhe a vida, permitindo-lhe auto-revelar-se na sua auto-revelação… Assim, cada vivente, enquanto vive, só vive da Palavra da Vida. A Palavra da Vida diz-lhe o seu próprio viver.”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 222-224.


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