sábado, 4 de julho de 2009

Bíblia e Violência


Na história de Israel, a partir da emergência de uma autocompreensão da Nação como sociedade-alternativa verificou-se igualmente uma transformação ao nível da própria imagem de Deus. Verificou-se, antes de mais, da afirmação de um Deus único, o qual, por isso mesmo, se contrapõe ao panteão dos deuses em que fundavam a sua legitimidade os sistemas sociais das cidades-estado de Canaã. Necessariamente, este Deus começou por ser um deus-guerreiro: Javé, senhor dos exércitos. Só depois da experiência do exílio é que Israel começou a compreender que o caminho que conduz à sociedade justa passa também pela perseguição e pelo sofrimento; ou seja, só então é que as projecções guerreiras do Deus de Israel começaram a ser postas em causa. Tornava-se então possível que, a partir daí, e pelo menos em breves momentos profeticamente privilegiados, o rosto do verdadeiro Deus começasse a vir ao de cima – assim expressamente, de forma paradigmática, na figura do Servo de Javé, que encontramos no quarto poema do Servo Sofredor.(...)
A imagem de um Deus próximo dos perseguidos começa a manifestar-se apenas em associação com a experiência daqueles a quem os Salmos designam ora por “justos perseguidos” ora por “sofredores inocentes”. Com estes, porém, não devemos identificar apenas um ou outro caso excepcional. A esta classe de homens pertence todo aquele que, qual bode expiatório, se descobre vítima de perseguição e até mesmo de expulsão. Quando a um ser humano transformado em bode expiatório é dada a compreensão de ser apenas por puro acaso que ele, e precisamente mais ninguém, se encontra na posição de ser portador da culpa que recai sobre todo o grupo humano a que pertence, e de que desta ou de outra forma cada um dos membros do respectivo grupo se tornou corresponsável pelo caos existente na respectiva sociedade, ele transforma-se simultaneamente na figura do homem justo perseguido ou no sofredor inocente no sentido mais estrito destas expressões. Entre os seres humanos, o bode expiatório representa sempre aquele que é perseguido em favor de um mecanismo violento de pacificação social. Mas na medida em que a própria vítima cai na conta deste mecanismo e a Deus levanta a sua voz de protesto, o que se dá é, nem mais nem menos, a possibilidade de um novo conhecimento de Deus.
Por outras palavras, quando, por exemplo, nos Salmos, um clamor se levanta por parte dos inocentes ou daqueles que simplesmente se sabem perdoados por Deus e a este fazem saber o seu sentir, o que está em causa é já a aurora de um mundo novo. Ainda que, pelo menos em certa medida, este Deus por quem se clama continue ainda a recorrer a processos de morte na implantação da justiça, a grande novidade é que, a partir destes momentos especiais, Deus se revela claramente não afectado pela projecção sacrificial dos vitimadores. Desta forma, vai-se aproximando o momento em que o anseio de vingança se começa a transmutar em acto de pura confiança em relação ao Deus que, por fim, se revelará ser das vítimas e não dos algozes. Quando isto acontece, dá-se o fim da era de Deus como projecção do homem. No rosto do homem perseguido manifesta-se a luz do Deus verdadeiro.(...)
Baseando-nos no contributo de René Girard, a presente reflexão leva-nos antes de mais à conclusão de que, de forma alguma, nos devemos envergonhar quer do Antigo Testamento quer da imagem de Deus que ele nos dá. Ou seja, não precisamos de definir qualquer novo cânone bíblico em que praticamente se arrume o Antigo Testamento. Pelo contrário, o que se afirma é precisamente que a Bíblia na sua totalidade, ou seja, aquilo a que René Girard chama “revelação judaico-cristã” não visa senão libertar-nos da opressão da violência, dando realização aos nossos sonhos humanos mais profundos.(...)

Dado que no conjunto da Sagrada Escritura o Antigo Testamento representa, pelo menos, de uma ou outra forma, as sociedades do mundo, de modo algum nos deve admirar o facto de o mesmo revelar a sua profunda afectação pela violência, mesmo no que diz respeito à imagem de Deus. Todas as suas aportações no que se refere à imagem de Deus exigem, por isso, um esforço de relativização. A partir das afirmações do Novo Testamento podemos olhar para o Antigo e reconhecer que muitas das coisas que aí se dizem acerca de Deus devem ser simplesmente relegadas para o campo da história no que se refere ao processo mediante o qual a humanidade, desde o início, se encontra a caminho da imagem de um Deus não contaminado pela violência. Num contexto profundamente marcado por uma visão evolutiva das coisas, podemos também falar de uma sociedade em processo de libertação em relação à violência e em transição para a não-violência.(...)
É sobretudo por estas razões, portanto, que a parte da Bíblia a que damos o nome de Antigo Testamento constitui caminho importante no que diz respeito ao desmascaramento da violência. Justamente na medida em que nos dispomos a percorrer o mesmo caminho que nele se faz e, ao mesmo tempo, não nos envergonhamos da descoberta que fazemos de estar do lado dos perseguidores e violentos do mundo, o resultado será não apenas um desvelamento do nosso próprio pendor para a violência, o qual sempre gostaríamos de poder dissimular, mas também a transformação da própria imagem que temos de Deus, sobretudo quando o envolvemos em actos ou atitudes de violência.(...)
É sobre as vítimas não-violentas que a fúria do mundo alastra até à exaustão. Mas Deus surge, no fim, como vencedor, pois dele nos fala a Bíblia como triunfador sobre a morte. Só que o triunfo do Deus do amor não se separa do Deus que é vítima do terror. Assim, toda a tentativa de ler o Novo sem o Antigo Testamento não é mais do que o resultado de uma estratégia, ainda que inconsciente, de encobrimento da violência em todas as suas formas.

Norbert Lohfink, “Deus e a Violência: o Antigo Testamento à Luz de René Girard”, Revista Portuguesa de Filosofia 56(2000), 37-52
SP

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