quinta-feira, 16 de julho de 2009

Testamento Vital I

Domenico di Bartoli,1441-44, Cuidar dos Doentes

Consentimento informado

O reconhecimento dos direitos do doente, a análise e revisão da doutrina hipocrática, a crescente importância atribuída à autonomia da pessoa, também no campo da saúde e no da relação médico-doente, convergiram para a definição do conceito do consentimento informado e sua aceitação como imprescindível pré-condição para qualquer acto médico. Todas as organizações médicas, a nível mundial e nacional, subscrevem esta afirmação e propugnam pelo cabal respeito por esta peça fundamental na relação do profissional de saúde com o paciente. Qualquer intervenção, com fim diagnóstico ou terapêutico, exige a prévia explicação do procedimento e a obtenção do assentimento, concordância, autorização ou consentimento, a cargo da pessoa que é o sujeito, são ou doente, dos cuidados a prestar. O acto médico tem por óbvia motivação a intenção de beneficiar (“fazer bem ao”) o doente, mas este não pode sujeitar-se passivamente ao que lhe é proposto: tem-se aqui como ideal a conjugação e articulação da beneficência do prestador de cuidados com a autonomia daquele que os recebe. Claro que nesta relação de complementaridade podem facilmente surgir tensões ou até conflitos, quando uma das polaridades pressupostas pela relação se erige em força absoluta, ignorando ou subestimando a outra, na ânsia de um exercício do poder médico autoritário, na atitude muitas vezes designada por paternalista; e, por outro lado, é consensual não ser aceitável que o doente exerça a sua vontade de modo irresponsável, irreflectido ou caprichoso, convertendo o profissional de saúde num funcionário tecnicamente competente para a execução das ordens do paciente. O que se pretende não é mais do que associar o doente ao processo de tratamento, transformando-o de um sujeito passivo das resoluções de outrem num colaborador activo, responsável e capaz de tomar decisões.
O consentimento informado é hoje considerado como peça fundamental na relação médico-doente e encontra-se respaldado nos Códigos Penais de quase todos os países; entre nós, o Código Penal (artigos 150, 156 e 157) classifica de abusiva e ilegítima qualquer intervenção médica sobre quem não tenha dado o consentimento ou assentimento, depois de informado sobre as circunstâncias da intervenção proposta e em plena liberdade; e são pesadas as penas que sancionam o desrespeito por estes processos legais.

“Testamento vital”

Não havendo uma escolha terminológica unívoca, designaremos deste modo o documento também conhecido por declaração antecipada de vontade, por motivo da brevidade e da popularidade daquela designação, tão imprópria quanto esta. Trata-se de um documento em que a pessoa, antecipando uma situação clínica em que não possa exprimir a sua vontade (por estar inconsciente, demente ou incapaz por outro motivo), declara qual ou quais os tratamentos ou as técnicas que não deseja que lhe sejam aplicados. Afirmam os seus paladinos que assim se respeita cabalmente a autonomia da pessoa doente: incapaz de se pronunciar por ter perdido faculdades, faz-se ouvir através de uma declaração anteriormente exarada, com consequências a prazo mais ou menos longo. Este “testamento vital”, obrigatório nos Estados Unidos, não tem recolhido aplauso nem acolhimento no sistema jurídico da maior parte dos países. Para tal atitude negativa têm sido invocados os seguintes argumentos:
1. A pessoa que, em plena saúde ou estado inicial de doença progressiva, declara rejeitar determinadas medidas consideradas “heróicas” (tais como reanimação cardio-respiratória, diálise renal, quimioterapia citostática, etc.), por as entender como indignificantes ou lesivas da sua integridade, não pode ter uma noção clara de qual o seu real peso ou custo psicológico nem de qual será a sua vontade e desejos na situação que apenas antecipa, mas não experiencia.

2. A valia legal do testamento vital implicaria a total sujeição do médico ao paciente e obrigaria o profissional a assegurar-se da não existência de uma oposição consignada em eventual testamento vital antes de iniciar qualquer manobra, mesmo se urgente, num doente inconsciente ou incapaz – e a actuar já não segundo as normas médicas, mas de acordo com o prescrito pelo doente.

3. O testamento vital pode dar origem a sérios conflitos, se nele se exarar uma disposição que ponha em causa bens indisponíveis ou os bons costumes, a que expressamente se refere o Código Penal, tais como a vida ou a integridade física do doente. Por exemplo, se no testamento o declarante proibir o recurso à reanimação, o doente acometido de paragem cardio-respiratória morrerá, embora fosse perfeitamente recuperável. Neste caso, um bem indisponível, a vida, seria sacrificada, e o médico poderia ser considerado como homicida por negligência. Por outras palavras, o testamento vital, pode abrir uma porta à prática da eutanásia (neste caso, passiva, por a morte resultar de omissão de um acto indispensável à manutenção da vida; mas a distinção entre eutanásia passiva e activa não tem, como se sabe, qualquer relevância ética).

(cont.)

Walter Osswald,“ ‘Testamento vital’. Perspectiva médica”, Brotéria 168(2009) 429-432.


SP

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