quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Viver com a língua de fora


Creio que foi Tucholski quem falou, uma vez, ironicamente, das pessoas "que vivem com a língua de fora"; dos que "arquejantes e sem respiração vão na traseira do tempo, para que nada nem ninguém lhes escape"; dos que, mais do que ter ideias, vivem de adaptar-se, como camaleões, à última moda. Impera o marxismo? Pois fazem-se marxistas ou semi-marxistas, se o facto os assusta demasiado. É o existencialismo que está na moda? Pois fazem-se existencialistas. Depois, relativistas. A seguir, secularistas. Mais tarde, niilistas ou o que começar a despontar no horizonte.
São como os escravos da moda. Só que a moda impera, ao fim e ao cabo, nos vestidos, enquanto eles se deixam escravizar pela fugacidade das ideias.
É um tipo de seres mais comum do que pode pensar-se. Não os aflige ter ou não ter razão. Aterrá-los-ia pensar hoje o que ontem esteve na moda, e já não estar "em dia". Vivem literalmente com a língua da alma de fora, obrigando a cabeça a correr atrás das mudanças de opinião.
Conheço pessoas cuja única ideologia é escolher, entre as várias opiniões em circulação, a mais avançada. Pessoas que morreriam diante da possibilidade de alguém os apodar de "antiquadas" ou, o que é pior, de "retrógradas". Há quem esteja disposto a dar a vida pelas suas ideias ou pela sua fé. Mas corariam de vergonha e acabariam por traí-las, se, em vez de serem levados à tortura, fossem acusados de "beatos" ou conservadores. São pessoas para as quais não conta o substrato do pensamento, mas exclusivamente o último livro, jornal ou revista que tenham lido. São devoradores do tempo, e acreditam que a verdade se rege pelos relógios. Pensam, numa palavra, que o de hoje é forçosamente mais verdadeiro que o de ontem.
Não parecem dar-se conta de que "o verdadeiro modernismo - como dizia Tagore - não é a escravidão do gosto, mas a liberdade do espírito". Também não se dão conta de que adorar o que hoje está na moda é prestar culto ao que amanhã será antiquadíssimo, porque não há nada tão fugidio como o fogo de artifício da novidade.
Um homem verdadeiramente livre é aquele, parece-me, que pensa e diz o que crê pensar e dizer, e nunca se pergunta se assim está ou não está na moda. Será duplamente livre se não se agarrar a grupos ou blocos de pensamento.
É que hoje, mais do que nunca, a gente pensa em blocos. Um senhor, por exemplo, que se julgue progressista, terá de aceitar tudo aquilo que se apresente como tal: não só o desejo de liberdade e de direitos humanos; não só a ânsia de um mundo evoluído, mas também o aborto, o permissivismo moral e o anti-militarismo. E se eu me sentisse progressista e, precisamente porque o sou, me pusesse a defender a vida ou a combater a droga?
(...) Nunca acreditei que a verdade esteja em bloco à direita ou à esquerda, no de ontem ou no amanhã. Creio que devo conservar livre o meu juízo para reconhecê-la onde ela estiver. Felizmente só me preocupa o que digam de mim Deus e a minha consciência, e posso dar-me ao luxo de sorrir diante de críticas e de comentários.
O que não creio que um homem deva fazer é passar a vida com a língua de fora, buscando apaixonadamente donde vêm os últimos tiros. Um homem assim pode servir para cata-vento, não para torre de catedral ou para ameia de castelo. Parece-me muito menos mau ser um pouco orgulhoso do que ser escravo e, ainda por cima, de um senhor tão variável e imprevisível como é a moda.
José Luís Martín Descalzo, Razões para a Alegria.
(Silva Pereira)

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