segunda-feira, 13 de abril de 2009

O encontro com Jesus

O texto da homilia hoje apresentado como um comentário ao Evangelho incluiu uma afirmação que bem merece ser sublinhada: "A fé cristã, como sabemos, nasce, não da aceitação de uma doutrina, mas do encontro com uma pessoa, com Cristo morto e ressuscitado". O "como sabemos" referido é, talvez, uma generosidade retórica porque, de facto, abundantes são os que, "não sabendo", julgam que a fé cristã nasce da aceitação de uma doutrina. Volte-se, pois, a sublinhar: a fé cristã nasce do encontro - sempre renovado - com Jesus Cristo que morreu e ressuscitou.

EJML

terça-feira, 31 de março de 2009

Edward Green e o Papa




Edward Green, o maior perito em Sida da Universidade de Harvard, afirma que existe uma relação entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida. Deste modo, o cientista confirma as palavras do Papa Bento XVI, no avião que o levou aos Camarões, nas quais afirmou que a postura da Igreja é que o problema do Sida “não se pode resolver só com a distribuição de preservativos; pelo contrário, corre-se o risco de aumentar o problema”.
Numa entrevista à National Review Online, Edward Green, que não se declara católico nem contrário ao preservativo, afirma: “O Papa tem razão. Os nossos melhores estudos mostram que há uma relação consistente entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida”. De igual modo, o cientista, director do Projecto de Investigação de Prevenção do Sida de Harvard, constatou que “as evidências que temos apoiam os seus (do Papa) comentários. Não podemos associar maior uso de preservativos com menor taxa de Sida”.
O perito alerta para a causa deste fenómeno, o conhecido “comportamento desinibido”: “Quando se usa um meio técnico, como o preservativo, para reduzir um risco, frequentemente perdem-se os benefícios porque as pessoas correm maiores riscos do que quando não usavam o meio técnico”.
Edward Green é médico antropólogo com mais de 30 anos de experiência em países em via de desenvolvimento. A sua experiência inclui o Sida e doenças sexualmente transmissíveis, planificação familiar, cuidados primários de saúde materna e saúde infantil, e programas de cancro. Publicou cinco livros e é autor de mais de 250 estudos e pareceres técnicos. Vai publicar brevemente Sida e Ideologia, onde denuncia como a indústria recebe milhões de dólares a título de promoção do uso do preservativo, medicamentos e tratamentos para o Sida, e onde afirma que a solução está na mudança de comportamentos.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA (ONUSIDA) admitiu, no passado mês de Janeiro, ter inflacionado o número de infectados no mundo, depois de Edward Green, Daniel Halperin e James Chin terem apresentado dados científicos. Os analistas confirmaram que esta estratégia beneficiou a indústria do Sida que pede constantemente mais fundos. James Chin afirma que, apesar das correcções, os números continuam a ser elevados, havendo 25 milhões de enfermos, enquanto a ONUSIDA defende que há 33 milhões. Em África, o diagnóstico do Sida realiza-se através dos sintomas–enfraquecimento das defesas do organismo, doenças oportunistas, etc. Este tipo de diagnóstico é completamente impreciso. Numerosos peritos e cientistas denunciaram que se diagnostica como Sida o que é simplesmente fome. É uma estratégia manipuladora para mudar o nome dos problemas. Faz-se passar por Sida o que é fome, num terceiro mundo vítima do capitalismo selvagem. Tal estratégia gera milhões de subsídios públicos que embaratecem os medicamentos e beneficiam os grandes grupos farmacêuticos. O modelo de luta contra o Sida em África, centra-se, na perspectiva do ocidente, no envio de medicamentos e na distribuição de preservativos, em detrimento de uma educação sexual integral e melhores condições sanitárias e alimentares da população.
Edward Green opina que o paradigma da luta contra o Sida continua a ser o do Uganda que, nos anos 80, iniciou uma campanha que fomenta a monogamia, tentando modificar os comportamentos sexuais a um nível mais profundo.
Segundo a OMS, o Uganda tem a descida mais espectacular de infectados. Passou de 1.100.000 em 2001, para 940.000 em 2007. Mas se analisarmos a percentagem dos últimos 17 anos, passa de quase 14% para 5,4%. O Uganda tem numeroso grupo de cristãos, e não baseou a sua estratégia no preservativo, mas no restabelecimento da família tradicional africana. O Papa acentuou que a monogamia era a melhor resposta contra o Sida em África, o mesmo que constata Green ao afirmar que “as nossas investigações mostram que a redução do número de parceiros sexuais é a mais importante mudança de comportamento associada à redução das taxas de contágio do Sida”.
Ao mesmo tempo, a ONUSIDA reconheceu, em Março deste ano, que o “o início mais tardio da vida sexual e a fidelidade entre os parceiros” são parte das acções preventivas para evitar o contágio do HIV. Os métodos reconhecidos como mais fiáveis para prevenir o Sida são os divulgados pela OMS, chamados “ABC”(Abstinence, Being faithful, using Condoms – Abstinência, Fidelidade, Preservativo)

(Foto e resumo livre de um texto apresentado por http://www.forumlibertas.com/)

Luís Silva Pereira

segunda-feira, 16 de março de 2009

A Chaga do Lado




Sempre estranhei que os artistas que representaram Cristo crucificado tenham colocado, na grande maioria das vezes, a chaga aberta pela lança no lado direito do peito. Deveriam colocá-la do lado esquerdo, achava eu, partindo do suposto de que o soldado romano que trespassou Cristo, por mais desatento ou ignorante que fosse da anatomia humana, também haveria de o trespassar pelo lado esquerdo, uma vez que pretendia atingir directamente o coração. É aí, com efeito, que sentimos palpitar o coração, é nesse lado que toda a tradição cultural, erudita ou popular, o coloca. Ocorrem-me de repente uns versos da região de Miranda do Douro que dizem assim:

Apalpei meu lado esquerdo
Não achei meu coração.
Logo me deu um palpite
Que estava na tua mão”.

Poderíamos supor que os artistas se fundamentaram nos Evangelhos. Contudo, desse pormenor nada ficou, nem no Evangelho de S. João, em grego, o único que relata o episódio, nem na tradução latina da Vulgata, feita por S. Jerónimo. Também não aparece, quanto conseguimos averiguar, nas narrativas apócrifas que muito apreciam minúcias realistas e até mesmo pitorescas e que, precisamente por isso, em bastantes casos, influenciaram a iconografia sagrada. S. João apenas diz que um dos soldados, vendo Cristo já morto, “perfurou-Lhe o lado com uma lança e logo saiu sangue e água” (Cap. XIX, 34). O termo grego que ele utiliza é πλευράν, que significa simplesmente lado, sem especificar de qual deles se trata. Por sua vez, a Vulgata latina traduz por latus, igualmente sem especificação.
Não poderá vir daqui, portanto, a tradição iconográfica de representar Cristo ferido do lado direito, tradição que terá começado numa iluminura do Evangelho Siríaco, datado do ano 586. Aí se pode ver, de facto, Cristo na cruz a ser trespassado, no lado direito, pelo célebre e apócrifo Longuinhos que, segundo a lenda, obteve a graça de ser curado quando uma gota do sangue de Cristo lhe caiu sobre a vista cega.
A predilecção quase unânime dos artistas pelo lado direito poderia perfeitamente explicar-se por razões de simbolismo cultural. O lado da salvação é o lado direito. É do lado direito que os artistas colocam o Bom Ladrão, embora os Evangelhos não digam de que lado ele estava. É do lado direito que colocam Nossa Senhora. É para o lado direito que fazem inclinar a cabeça de Cristo quando morre. Para o lado direito lhe inclinam o corpo na descida da cruz. Para esse lado convoca Jesus Cristo os bem-aventurados, no dia do Juízo Final. Ao lado direito do Pai se senta Cristo na sua glória, e é ao lado direito de Cristo que Nossa Senhora é coroada depois da assunção aos Céus. Simbolicamente, portanto, parece muito mais conveniente a chaga do lado direito porque o sangue e a água que dela saíram são geralmente interpretados como sinais da fundação da Igreja pela água do baptismo e pelo sangue da Paixão e, portanto, como sinais da salvação dos homens.
Do ponto de vista estético, seria também mais conveniente colocar a chaga desse lado. Se Cristo inclinou para lá o corpo, ao morrer, então seria muito mais fácil pintá-la ou desenhá-la. Bastava um simples traço vermelho ou um risco a preto. Se a pusessem do lado esquerdo, a inclinação do corpo para a direita faria com que a abertura da ferida ficasse mais escancarada, tornando-se também mais difícil a sua representação gráfica, pictórica ou escultórica.
Lembrei-me, em dado momento, por simples curiosidade, de verificar de que lado estaria a marca da chaga na célebre síndone de Turim. Fiquei estupefacto. A síndone de Turim revela que a chaga se encontra precisamente do lado direito! Os estudiosos dessa espantosa relíquia determinaram mesmo que a lança penetrou entre a quinta e a sexta costelas. Mais ainda: para sair a água (a linfa), e sangue, a ferida teria que ser feita pelo lado direito. Só assim atingiria a parte do coração que, nos cadáveres, fica cheia de sangue.
Não se pode daqui concluir, de modo nenhum, que a fonte de inspiração dos artistas tenha sido o lençol no qual, segundo se crê, o cadáver de Cristo esteve envolvido. Bastaria um só facto para refutar tal conclusão: apenas com a descoberta da fotografia foi possível, através do negativo fotográfico, olhar a “verdadeira realidade” que mostra a chaga do lado direito. No lençol, ela está no lado esquerdo porque a imagem do lençol é uma imagem invertida. Se os pintores se tivessem inspirado nela, teriam pintado a chaga no lado esquerdo, tal como aparece à vista. Mais ainda: só a partir de meados do séc. XIII é que se generaliza a pintura de Cristo na cruz com um pé sobre o outro, normalmente o direito sobre o esquerdo. Antes representavam-se geralmente separados. Ora a síndone mostra que os pés estiveram realmente pregados um sobre o outro (o esquerdo sobre o direito), e não lado a lado. Outro pormenor ainda: salvo raríssimas excepções, os artistas colocam os pregos na palma das mãos. A síndone revela que eles foram cravados nos pulsos. A síndone de Turim, pelas razões aqui apresentadas, e outras que não posso aqui referir, não foi, portanto, a fonte da iconografia da crucifixão.
Será de admitir uma tradição oral que identificou o lado pelo qual Jesus Cristo foi trespassado. Digo oral porque, estranhamente, só com São Bernardo, no século XII, é que aparece, pela primeira vez, uma referência escrita, num sermão da Paixão, ao lado direito.

Luís Silva Pereira

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O Entrudo de D. Tomás


Para assinalar as festas do Carnaval, apresentamos um soneto de D. Tomás de Noronha, poeta satírico dos mais importantes do século XVII, em que se descreve o Carnaval vestido de cavaleiro, com armadura constituída por peças de carne e doçaria. É um soneto pouco conhecido, mas que bem merecia maior divulgação, quer pela sua qualidade literária, quer pelas relações de natureza cultural que estabelece.

Entrava em uma vista o Santentrudo
Cavalgado em cima de um leitão;
Por lança, um espeto c’um capão;
Uma tortilha de ovos por escudo.

Por elmo, a cabeça de um cornudo;
Por peito, o de um peru com seu limão;
Por espaldar levava um bom lacão;
Os braçais, de toucinho façanhudo.

Uma saia de malha de aletria;
Armaduras das pernas, de filhós;
As esporas, de bicos de perdizes.

Por banda, um borrachão de malvazia;
Saía co’estas armas mui feroz
Ao som de caldeirões e almofarizes.


Para melhor se compreender o poema, convém advertir que o primeiro verso “Entrava em uma vista o Santentrudo” significará que a figura do Entrudo faria parte de uma gravura ou de uma pintura. A palavra “vista” pode apresentar esse significado. E não se verifica nenhuma contradição entre o verbo “entrar” do primeiro verso e o verbo “sair” do penúltimo porque a gravura, ou pintura, representaria o Entrudo saindo a um combate com a Quaresma. Poderíamos ainda supor que o poeta descreve a figura do Entrudo numa representação teatral. Tal hipótese parece-nos pouco provável porque julgamos que representações deste tipo não faziam parte da tradição carnavalesca portuguesa. Apenas temos notícia de uma que se fazia na região de Santo Tirso, na qual surge um cavaleiro, o Entrudo, acompanhado da Quaresma. Esta, porém, dirige-se ao cavaleiro chamando-lhe Valdevinos, contaminação com a célebre figura de D. Beltrão da epopeia carolíngia, essa, sim, bem conhecida em Portugal. É verdade que, com alguma frequência, se encontram nas festividades carnavalescas portuguesas e europeias bonecos chamados Entrudos, montando a cavalo e acompanhados das suas companheiras, as Quaresmas, que são queimadas juntamente com eles. Tais bonecos apresentam-se em préstito fúnebre – o enterro do Entrudo – envergando roupas imundas e esfarrapadas. Trata-se, pois, de figurações alegóricas de velhos decrépitos que nada têm a ver com a iconografia do soneto de D. Tomás. A matriz textual deste último é muito diversa da desses enterros carnavalescos, embora também de raiz popular. Referimo-nos aos romances alegóricos medievais que narram a luta, ou justa, entre o Carnaval e a Quaresma, cujas armaduras são precisamente constituídas por carnes e peixes variados. A origem desta iconografia será o célebre poema anónimo do século XIII, La Bataille de Caresme et de Charnage. Neste poema, o Carnaval monta um veado com as hastes todas cobertas de calhandras e cotovias, rouxinóis e toutinegras. O elmo, em D. Tomás, é a cabeça de um cornudo, talvez um touro ou um veado, um bode ou mesmo a efígie do diabo (existem no folclore português máscaras carnavalescas que representam o veado e o demónio). As esporas, na Bataille são, genericamente, bicos de pássaros. As perdizes, juntamente com as codornizes, formam o lorigão; uma torta serve de escudo; carne de porco, juntamente com a de carneiro, bordada com agraço, forma o gibão, e uma peça de carne de porco funciona como espada. O pendão é de queijo fresco e a cota de armas é feita, em parte, de pudim de miolo de pão e, em parte, de empadinhas de pombo. Para manoplas, o autor francês escolheu dois frangos.
Parece-nos muito original a escolha de um leitão para montada do Entrudo de D. Tomás, já que, no texto francês, é um veado, e em várias outras representações, como a da pintura de Bruegel que acompanha este texto, a montada é uma pipa. Numa peça burlesca, porém, intitulada Le retour de Mardy Gras, a personagem Terça-feira Gorda aparece montada num porco com brida feita de salsichas cobertas com mostarda de Dijon, enquanto um presunto de Mayence lhe serve de escudo, e salsichões e salame de Milão lhe pendem da bandoleira. O Carnaval de D. Tomás carrega caldeirões e almofarizes, mas é pormenor mais frequente em outras representações que apresentam o Entrudo levando potes, panelas, tachos, sertãs, grelhadores, espetos, enfim todos os utensílios de cozinha que, metonimicamente, significam os excessos gastronómicos típicos da época. Não é por acaso que, no Libro de Buen Amor, de Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, a primeira ordem que dá a Quaresma, quando chega Quarta-feira de Cinzas, é a de lavar e arrumar cestos, cepos, bacias, cântaros, escudelas, sertãs, talhas, caldeiras, travessas, espetos, panelas, testos, canadas, pipas, todos os apetrechos culinários que se podem ver numa cozinha do tempo, não apenas como gesto simbólico de purificação, mas significando igualmente que não serão mais necessários durante o rigoroso jejum quaresmal. Não nos esqueçamos de que as festas carnavalescas, na sua origem se encontram profundamente ligadas à Igreja, como bem mostrou Jacques Heers em Festas de Loucos e Carnavais.
Se esta criação de D. Tomás pode ser vista como paródia carnavalesca à figura do cavaleiro, pode igualmente interpretar-se como afloramento do mito medieval do país da abundância alimentar que é o mito da País da Cocanha, país que algumas versões situam no mar, a oeste da Península Ibérica. As festividades carnavalescas, com os seus excessos gastronómicos podem ser interpretadas como celebração de um país utópico onde não há fome e não é preciso trabalhar. Este mito ainda permanece em algumas festividades populares portuguesas, nas quais, por vezes, encontramos, no recinto das festas, o chamado pau da Cocanha, que tem lá no alto géneros alimentícios que um trepador deve tentar alcançar.
Textos literários portugueses sobre o Carnaval são relativamente raros. Por isso terminamos com a transcrição de um outro soneto atribuído a António Serrão de Castro, poeta igualmente do séc. XVII, onde se descrevem as brincadeiras da época:

Filhós, fatias, sonhos, mal-assadas,
Galinhas, porco, vaca e mais carneiro,
Os perus em poder do Pasteleiro,
Esguichar, deitar pulhas, laranjadas;

Enfarinhar, pôr rabos, dar risadas,
Gastar para comer muito dinheiro,
Não ter mãos a medir o Taverneiro,
Com réstias de cebolas dar pancadas;

Das janelas c’um tanho dar na gente,
A buzina a tanger, quebrar panelas,
Querer em um só dia comer tudo;

Não perdoar arroz nem cuscus quente,
Despejar pratos e alimpar tigelas,
Estas as festas são do gordo Entrudo.

Luís Silva Pereira, Resumo de "O Entrudo de D. Tomás de Noronha, in Revista Portuguesa de Humanidades 9(2005) 205-226.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Os Elementos do Estilo




1 – Use uma linguagem positiva: em vez de “habitualmente não chegava à hora”, diga “habitualmente chegava tarde”; em lugar de “não recordou” diga “esqueceu” – e isso porque, consciente ou inconscientemente, o leitor prefere que se diga o que é a o que não é.
2 – Seja concreto: “Sobreveio um período de tempo desfavorável” constitui uma vagueza. “Choveu diariamente uma semana” seria a boa fórmula.
3 – Abrevie o mais que puder: escrever “atos de natureza hostil” é alongar de dois centímetros “atos hostis”.
4 – Não qualifique: sempre que não se tratar de estabelecer uma opinião, a qualificação prévia é desnecessária. Dizer que é “interessante” o fato que se vai narrar, é pichar o leitor de inimaginativo.
5 – Não use adornos: o estilo não é um molho para temperar uma salada; o estilo deve estar na própria salada.
6 – Coloque-se atrás do que escreve: escreva de tal forma que a atenção do leitor seja despertada sobretudo pelo sentido e pela substância do que está dito, e não pelo temperamento e pelos modismos do autor. O primeiro conselho a dar ao escritor que começa seria, pois: para chegar a um estilo, comece por não ter nenhum.
7 – Use substantivos e verbos: evite o mais possível adjectivos e advérbios. Não há adjectivo no mundo que possa estimular um substantivo exangue ou inadequado; isto sem subestimar adjectivos e advérbios, quando correctamente empregados. Mas a verdade é que são os nomes e os verbos que dão sal e cor ao estilo.
8 – Não superescreva (significando aqui don’t overwrite): a prosa excessivamente rica, adornada ou gorda torna-se mais facilmente nauseante.
9 – Não exagere e seja claro: primeiramente, porque o exagero pode tornar o leitor suspicaz; e a clareza, é lógico, facilita a comunicação. Mais vale recomeçar uma frase longa com que se está brigando, que persistir na briga. Frequentemente uma frase longa nada mais é que duas curtas.
10 – Não opine sem razão: ter por hábito ventilar opiniões próprias é prejulgar que o leitor as esteja pedindo, o que constitui um sinal de vaidade.

Vinicius de Morais, Para Viver um Grande Amor

[Silva Pereira]

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Viver com a língua de fora


Creio que foi Tucholski quem falou, uma vez, ironicamente, das pessoas "que vivem com a língua de fora"; dos que "arquejantes e sem respiração vão na traseira do tempo, para que nada nem ninguém lhes escape"; dos que, mais do que ter ideias, vivem de adaptar-se, como camaleões, à última moda. Impera o marxismo? Pois fazem-se marxistas ou semi-marxistas, se o facto os assusta demasiado. É o existencialismo que está na moda? Pois fazem-se existencialistas. Depois, relativistas. A seguir, secularistas. Mais tarde, niilistas ou o que começar a despontar no horizonte.
São como os escravos da moda. Só que a moda impera, ao fim e ao cabo, nos vestidos, enquanto eles se deixam escravizar pela fugacidade das ideias.
É um tipo de seres mais comum do que pode pensar-se. Não os aflige ter ou não ter razão. Aterrá-los-ia pensar hoje o que ontem esteve na moda, e já não estar "em dia". Vivem literalmente com a língua da alma de fora, obrigando a cabeça a correr atrás das mudanças de opinião.
Conheço pessoas cuja única ideologia é escolher, entre as várias opiniões em circulação, a mais avançada. Pessoas que morreriam diante da possibilidade de alguém os apodar de "antiquadas" ou, o que é pior, de "retrógradas". Há quem esteja disposto a dar a vida pelas suas ideias ou pela sua fé. Mas corariam de vergonha e acabariam por traí-las, se, em vez de serem levados à tortura, fossem acusados de "beatos" ou conservadores. São pessoas para as quais não conta o substrato do pensamento, mas exclusivamente o último livro, jornal ou revista que tenham lido. São devoradores do tempo, e acreditam que a verdade se rege pelos relógios. Pensam, numa palavra, que o de hoje é forçosamente mais verdadeiro que o de ontem.
Não parecem dar-se conta de que "o verdadeiro modernismo - como dizia Tagore - não é a escravidão do gosto, mas a liberdade do espírito". Também não se dão conta de que adorar o que hoje está na moda é prestar culto ao que amanhã será antiquadíssimo, porque não há nada tão fugidio como o fogo de artifício da novidade.
Um homem verdadeiramente livre é aquele, parece-me, que pensa e diz o que crê pensar e dizer, e nunca se pergunta se assim está ou não está na moda. Será duplamente livre se não se agarrar a grupos ou blocos de pensamento.
É que hoje, mais do que nunca, a gente pensa em blocos. Um senhor, por exemplo, que se julgue progressista, terá de aceitar tudo aquilo que se apresente como tal: não só o desejo de liberdade e de direitos humanos; não só a ânsia de um mundo evoluído, mas também o aborto, o permissivismo moral e o anti-militarismo. E se eu me sentisse progressista e, precisamente porque o sou, me pusesse a defender a vida ou a combater a droga?
(...) Nunca acreditei que a verdade esteja em bloco à direita ou à esquerda, no de ontem ou no amanhã. Creio que devo conservar livre o meu juízo para reconhecê-la onde ela estiver. Felizmente só me preocupa o que digam de mim Deus e a minha consciência, e posso dar-me ao luxo de sorrir diante de críticas e de comentários.
O que não creio que um homem deva fazer é passar a vida com a língua de fora, buscando apaixonadamente donde vêm os últimos tiros. Um homem assim pode servir para cata-vento, não para torre de catedral ou para ameia de castelo. Parece-me muito menos mau ser um pouco orgulhoso do que ser escravo e, ainda por cima, de um senhor tão variável e imprevisível como é a moda.
José Luís Martín Descalzo, Razões para a Alegria.
(Silva Pereira)

domingo, 4 de janeiro de 2009

Epifania

Gerard David, Adoração dos Magos, 1500
"Eram intensas as estrelas"
(J. Guimarães Rosa)


Por muito que os sábios saibam, nunca sabem muito. Andam à procura da estrela real em equações numerosas, teorias balbuciantes que lembram linguagem de meninos aprendendo a ler. Não sabem que Deus podia criar outra tantas galáxias, outros tamanhos mundos, para festejar o Filho dele e nosso.
Os Reis foram a Belém porque repararam que as estrelas olhavam todas para lá. Sim, nessa noite, todos os astros olhavam para a Terra. Todos vieram ver. Brilhavam extremamente porque recebiam uma luz intensíssima, explosão infinita que subia da Terra. Bastou seguir a direcção dos mil olhares.
As novas estrelas eram o amor deles. Viam tudo de novo e caminhavam para o centro. Os sábios não sabem onde fica, mas o centro do universo é onde está o amor e a sua inteligência. Por isso, todo o universo andava ali à volta e eram tão intensas as estrelas. Brilhavam como no começo.
Quem ama sabe que as estrelas brilham mais. O amor é a luz do invisível.

Luís Silva Pereira, De Natal em Natal

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Dia da Paz


"Depois fazia luar, fazia uma canção na noite"
(J. Gumarães Rosa)

Primeiro vieram os anjos, todos, escorrendo luz, porque bebem sem parar nas fontes luminosas. Bebem pela boca, pelos olhos, bebem pelo coração. O amor é assim. Uma sede inapagável, um ardor imortal.
Os anjos não podem evitar a luz. Onde aparecem, brilham. É deles. Brilham e cantam porque toda a luz inicia uma canção. Vivem felicíssimos.
Os pastores gritaram:
- Já é manhã!
Não acharam estranha a voz da nadrugada, as ardentes palavras da harmonia e da paz.
Os anjos arderam, cantando. Depois partiram e ficou luar.
O luar é o que resta da presença deles, a lembrança que tem a noite dos anjos indo embora, uma canção a afastar-se. Ecos no coração de uma bela harmonia. Ouve-se ainda.
Por isso é que o luar faz sempre saudades e os poetas cantam de noite. Sentem que passaram anjos. Vão atrás deles, a apanhar os restos das canções.
Todo o luar é natalício. Lembra canções de anjos.

Luís Silva Pereira, De Natal em Natal

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

O Filho Pródigo e o Natal dos humanos



“Esta é a tese do cristianismo acerca do Homem: o homem só é Homem enquanto é um eu e só é um eu porque é um Filho, um Filho da Vida, isto é, um Filho de Deus”

“Esquecido de Si no agir misericordioso, o eu é doação a si mesmo na Arqui-Doação da Vida absoluta e da sua Arqui-Ipseidade. O eu reencontrou o Poder que não nasce mas o faz nascer. O eu renasceu. Neste nascer de novo reencontrou a Vida, de modo que doravante não nascerá mais…”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 139.173.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Advento



CÂNTICO PARA JOÃO

Benedictus Dominus, Deus Israel, quia visitavit et redemit populum suum.
Canticum Zachariae, Luc. I, 68-79

São João pra ver as moças
Fez uma fonte de prata
(Cancioneiro Popular)


As portas do Inferno não prevalecem contra
O mais limpo que a neve antes que João leve à água
A fonte de água viva e O aponte a dedo:
- Ecce Agnus Dei!

Anho branco, anho novo, cuja pedra de poiso é o Livro,
O Cordeiro de Deus que tira os pecados do Mundo
Como quem tosa a relva e come da ervilhaca,
Branco do Lírio-mãe como o vitelo herdou malha,
Penetrante de bafo como o vento na frincha,
Doce ao jugo do Pai que ouviu Abraão e a Ele não!
O Cordeiro das lãs ainda não bem cardadas,
Que eu levo, levas tu, e aquele outro, e o outro ainda,
Procissão de pastores à matança da Páscoa,
Carniceiros vendendo o que deviam comer com alfaces bravas.

João!
Eu admiro João no poço dos Essénios,
Com Zacarias mudo e o gafanhoto ardente,
João Bebe-Água, João a quem basta um pelico acabado de esfolar,
João a quem põe mesa a abelha e viu curvada
Ao verter de sua concha a cabeça de sangue do sudários!
Feliz João, filho de velha e núncio da Boa Nova,
O que desiste ao saber que o Outro é que vem, é que é,
E prefere fazer de leão num Zoo de dançarina
E de cabeça de rês num prato de degola,
A passar pelo Leão na Terra do Cordeiro leonino
Filho da Pomba:
- Ecce Agnus Dei!

João, que não desata a correia à sandália do Maior(non sum dignus!),
Que não faz a vontade à que o devora de olhos,
Lhe ama a carne de magro, escorcho de samarra,
La sale Salomé, vampe orientale aux friandises,
E ele – ácido, genuíno, todo água viva e chão de cardos,
Fiel a seu pai mudo e à hora em que a fala lhe rebenta
Assim como a fonte à vara:

- “Benedictus Dominus, Deus Israel,
Que visitou o seu povo,
Remiu o seu povo
E levantou o altar da nossa salvação em casa de seu servo David,
Sicut locutus est per os sanctorum,
Qui olim fuerunt,
Para nos livrar da mão dos nossos inimigos”,
E o mais que disse o velho Zacarias
Ex-mudo como o parvo ante a velhinha estéril
Mas sem papas na língua agora que o menino mexe,
E ele, como o outro que diz, fala pelos cotovelos,
Amplo de graves e de agudos como um órgão
E zoando ao vento como o moinho ou o decacórdio
Na cita do seu João:

- “Et tu, puer,
Profeta do Altíssimo serás chamado”...
Para que fosse abrindo ao Senhor seus caminhos
E dando ao seu povo a ciência do salvar
E a remissão dos pecados, et coetera,
E iluminasse aqueles por lá da sombra da morte:
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.
Os nossos pés direitos na estradada paz, imagine-se!
Os nossos pés no caminho e no endireito da paz...
Como é? Repete, velho salamurdo e santo!
“Ut dirigat pedes nostros in viam pacis”.

Gloria. (Com “Sicut erat”).

Amen.
Vitorino Nemésio, Cântico de Véspera
(Silva Pereira)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Pirilampo


O povo das Beiras que não sabe grego chama-lhe, com propriedade que os Morais, os Torrinhas, os Morenos invejariam, chama-lhes luze-cu. É um bichinho de cauda radiante. Nas noites búzias em que a lua, por detrás dos pinheiros, negaceia e pouco alumia, acende ele o seu farolim. Parece uma gota de luz caída dos espaços, e os outros insectos devem orientar-se por ela ou, como nós, sentir curiosidade por tão estranho fenómeno. O mais estranho é que o bichinho tem pleno domínio da luzinha que lhe coube em sorte. Acende-a pacificamente, mas apaga-a se for atacado; alumia os dignos e furta-a aos maléficos.
Há momentos, num muro musguento, estive a ver a luzinha admirável que se ia deslocando ao ritmo do seu sono. Se tudo neste Universo tem préstimo e função, a que obedecerá este fogo radiante?
Sendo pequenino o bicho, deve ser idêntico o motivo ao que leva os cantoneiros a pôr uma luz nos boqueirões das estradas danificadas. O pirilampo não quer ser atropelado e dá sinal de si: passem de largo os apressados. Ou será para se alumiar a si próprio e se guiar na colheita da alimentação?
Quanto mais torva é a noite mais brilha a gotazinha estelar. As aves insectívoras não fazem vida nocturna, senão seria um perigo acusar-se tão a pleno dos bicos vorazes. Poisadas e dormentes nos ramos altos, as aves devem perguntar-se pela razão de ser desta maravilha. Lá em cima, as estrelas são iguais, deve ser qualquer delas, trazida por sopro de vento. E metendo o bico debaixo da asa adormecem com o caso solucionado.
Escasseiam, mas ainda existem, humanos com alma de pirilampo. Irradiam uma luzinha pacífica na noite do mistério que nos envolve. Acontece-nos sentir um grato bem-estar junto de certas pessoas que irradiam conhecimentos, conselhos sem segundas intenções, e se calam depois numa aceitação cordial da vida e da morte sem birra nem acinte. São homens destes que constelam a nossa noite secular com um lucilar a que assomamos enlevados.
Há uma poesia de um poeta brasileiro que nos manda fazer o seguinte: se não podemos arder em alta labareda que os outros aqueça e encaminhe, acendamos uma fogueira no alto do monte na possibilidade de haver um caminheiro extraviado na savana que deste modo se reoriente. Quando tudo em redor de nós escurece, uma simples gota de luz é um favor sem preço.
Cada um de nós devia levar uma luzinha acesa em pavio próprio, uma luzinha original, irradiação de personalidade inconfundível. “Sê tu, no reino de todos os declínios” recomendou um pirilampo da noite europeia, recomendou Rainer Maria Rilke.
Se cada um de nós fosse o que é, e o fosse com pureza, com autenticidade, teríamos, poisadas na bacidão da terra, as constelações radiantes de caminhos e destinos. O contraste de aparente pequenez do minúsculo pirilampo com o ilimite da escuridão insinua que a qualidade do fogo, o timbre espiritual, aponta outra ordem de grandeza – o da doce qualidade em que se inspiram os que são bons. E não há ninguém que se não enterneça com este pequeno faroleiro e se não deixe ir a observá-lo, a apontá-lo com o dedo, a celebrá-lo na sua faina de alumiar o mundo. E talvez ele julgue que de facto alumia todo o universo; e como a sua intenção profunda é essa – devemos louvá-lo aqui e desejar que muitos de nós imitem este valente, ponham um risco de luz na noite meditativa, façam da vida um pequeno farol. É o que faz o luze-cu beirão, o chinês e o que o australiano vê na parede do seu quintal e o árabe no tope do minarete.
De qualquer escuridão pode pungir a luzinha silenciosa, animada, vivificante. O pirilampo tem defeitos? Quem o poderá dizer? Assim, quando entre os humanos uma qualidade excelsa irradia de uma pessoa, ofusca-nos para algum possível defeito que possa existir, mas se extingue na luz radiante. Deixemos a gotazinha de luz do pirilampo a brilhar na noite e encher-nos com sua puríssima lição.

João Maia, O Livro dos Animais


[Silva Pereira]

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A cotovia


Esse menino que aí vem, no caminho que sobe do rio para a aldeia, a meia manhã – não se assustem – sou eu. Eu disse “rio”, mas talvez fosse melhor dizer “ribeira”, pois a água, lá no fundo dos cômoros, tem um chalrar feminino e roupa lavada a desbanda, além de que o seu nome é Ribeira da Isna.
Pois é verdade: venho do moinho onde meu avô, em torno da pedra alveira, prepara a farinha para as filhós do Natal. A bouça está toda orvalhada. O sol levanta uns fuminhos das plantas rastiças e, embora não aquente, alegra vale e monte e promete aos pastores um dia de Rodrigues Lobo.
Não encontro ninguém no caminho, como tanto desejava, pois haveis de saber que eu sou comunicativo desde que me conheço. Olho para a direita e para a esquerda. De repente, do plaino da esteva roçada levanta-se a pique sobre o céu muito azul uma cotovia; sigo-a, tirando a boina vasca, e oiço-a entornar lá do alto aquelas luminosas notas de música que os campos bebem e comungam, ficando logo mais espirituais.
Ave maravilhosa, tão amiga do sol e da altura como humilde na escolha do sítio onde ninhar… Esse sítio é sempre ao rés de um toro de murta, de esteva velha, de moita ou carqueja. É no chão, abrigado do norte.
Na cotovia tudo é puro, belo, aéreo, até o nome. É por isso que os poetas que sabem o que é bom a deixam voar nos seus versos nas horas melhores, mesmo que a não tenham visto, como eu, na rústica manhã de que vos falo.
Mas espera. A cotovia ergueu-se dali, daquela moita. A manhã vai em meio ou coisa: sozinha não andaria. De facto, mais duas cotovias levantam voo para o sol e soltam espaçadamente as notas puríssimas.
Ninguém sabe o que come a cotovia. Só de luz não viverá, mas parece. Não incomoda ninguém – bicho ou homem. Arreda-se um tudo-nada da aldeia, mas saúda quem passa no caminho. Ouvi-la é sentir a alegria do céu a tocar a terra.
Quando poisada, rodeia-se sempre de um tufo de mato, e moireja a vidinha tão discretamente que ninguém saberá ao certo dizer como agencia o seu pratinho. Nem o cascão, que é metediço, a acusou alguma vez de um roubo. Persegue-a, mas ela sobrevoa-o e entorna-lhe na cabeçorra de arrenegado o óleo fula do seu canto, e apazigua-o como a harpa de David pacificava Saul.
A cotovia é feminina cem por cento. Até no nome, que vale para os dois. Vê-la de manhã, dispõe bem para todo o dia. Lá nos meus sítios virgilianos e bíblicos, muito mofino há-de ser quem tirar um ninho de cotovia. Eu, que me tenho de confessar de outras depredações, nunca tirei nenhum. Achei um, mas não o tirei. Olhei tanto para os três ovos que ele tinha que parece que ainda os tenho aqui dentro da retina.
As virtudes desta ave são como as de certas pessoas ou como as da luz. Gostamos delas, as suas graças fazem uma tal unidade que não se podem migar em palavras. Quando queremos falar de uma virtude, vem o ser todo agarrado.
A cotovia, Deus me perdoe, tem algo de Nossa Senhora, algo de uma mãe ideal que fosse só mãe e mais nada. O seu canto é como uma palavra puríssima que nos recolhe e levanta, matinal e vespertino, secreto como a luz, misterioso como ela. A psicologia da cotovia, quem a leva dentro da alma não tenha dúvida que leva um tesoiro sem preço.
Eu, que vi a cotovia naquela manhã de infância, e depois a estudei com algum realismo, tenho-a encontrado ou sonhado dentro de muita gente. Um destes dias, numa artéria de Lisboa, estava eu feito parvo a olhar para um daqueles mamarrachos dentro dos quais cuido que vive a Tristeza, quando um bracito me repuxou a manga. Viro-me e dou com dez réis de gente, duas trancinhas descaídas e um chapelito branco: “O senhor fazia favor de me passar para a outra banda, porque a minha mãezinha não quer que eu atravesse sozinha”. Caí da abstracção idiota e conduzi a cotovia (quero dizer, a pequenita), a qual, no trajecto exíguo, creio que me contou toda a história doméstica, toda a história escolar, rematando que tinha lá uma boneca bonita que nem…
Mas para ver e ouvir uma cotovia – não se esqueçam – é preciso ter dentro da alma qualquer coisa como a pureza da uma manhã rusticana, rociada de bons orvalhos e o amor da infância que se teve…

João Maia, O Livro dos Animais

[Silva Pereira]

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Palavra-Vida



Alexei von Jawlensky - A Palavra
“À palavra é atribuído, em geral, um poder. Este atinge o seu mais alto grau, quando recebe uma significação ontológica. Um poder de criar, isto é, de instituir no ser, em que o nomear as coisas tem a propriedade de as fazer existir. Esta capacidade ontológica de a palavra conferir o ser ao que nomeia, reserva-se a Deus. Nisso consiste a sua omnipotência, uma omnipotência da palavra – palavra que, só por si, faz surgir do nada aquilo que chama à existência, pelo simples som da sua voz, submetendo-a aos detalhes da sua organização. Neste domínio, Deus não tardou em ter émulos ou rivais. À semelhança de Deus, o artista moderno gaba-se de ser criador. Criador de uma obra eventualmente mais rica, mais surpreendente, seguramente mais nova do que a natureza criada por Deus. Desta forma, o artista poderia sobrepor-se a Deus pelo seu génio inventivo ou pela sua sofisticação. No caso do escritor, o poder das palavras para representar mundos desconhecidos é ainda mais evidente.
A analogia entre criação divina e o acto criador do artista moderno é um dos lugares comuns da crítica do nosso tempo. A sua pressuposição ingénua e simulada manifesta-se-nos, agora. A palavra que serve de protótipo à ideia de criação estética ou divina é a palavra do mundo – a palavra que nomeia os objectos trá-los à visibilidade mundana, para a exterioridade. O que caracteriza uma tal palavra é a sua incapacidade principial para conduzir à experiência efectiva aquilo que anuncia. Daí o carácter propriamente mágico que reveste, quando se pretende fazê-la representar esse papel. A magia consiste nisto: pronunciar palavras, inteligíveis se possível, às quais é atribuído o poder de criar uma realidade, a qual as palavras, enquanto significações vazias, são incapazes de produzir.
...A Palavra da Vida não fala só no começo: ela fala no vivente. A Palavra da Vida anuncia o viver do vivente e é esse viver que é dito na Palavra. Desta forma a Vida gera o vivente, dando-lhe a vida, permitindo-lhe auto-revelar-se na sua auto-revelação… Assim, cada vivente, enquanto vive, só vive da Palavra da Vida. A Palavra da Vida diz-lhe o seu próprio viver.”

Michel Henry, Eu sou a verdade, Ed. Vega, 1998, 222-224.


Viver em tudo a paz do coração

Viver em tudo a paz do coração é o título de um livro do Irmão Roger, de Taizé, publicado há poucos meses pelas Paulinas. Na apresentação, afirma o autor que, "quando o desencanto se apodera de nós e os nossos passos se tornam pesados e penosos, quando a bela esperança humana se apaga, a paz do coração é mais indispensável do que nunca". Diz o Irmão Roger que, "com muito pouco, por vezes com algumas palavras que nos conduzem ao essencial, é possível, na continuidade dos dias, construirmo-nos interiormente".
Viver em tudo a paz do coração apresenta um texto breve para cada dia. "Jesus Ressuscitado, mistério de uma presença, Tu nunca desejas para nós o tormento, mas revestes-nos da Tua paz. E a alegria do Evangelho vem tocar-nos até ao fundo da alma", diz o correspondente ao dia de hoje.
Podem ser considerados, sobretudo, meditações ou orações, por exemplo. Sejam como forem, estes textos encontram-se sempre, de facto, no coração do que é essencial.

[EJML]

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

A todos os santos no seu dia


Para comemorar o dia de todos os santos, coloco hoje este belíssimo poema. Belíssimo pela extrema simplicidade e pela piedade que revela, pela profunda consciência do que é a comunhão dos santos. Tão belo que mereceu fazer parte do Breviário que os sacerdotes, e não só, todos os dias rezam.




SONETO


Companheiros de Cristo, que plantastes
No mundo a sua fé, nada temendo,
E a verdade, que fostes estendendo,
Com obras milagrosas confirmastes;

Mártires, que por ele derramastes
O vosso sangue, alegres padecendo;
Doutores, que pregando e escrevendo,
O caminho do céu nos ensinastes;

Virgens, que em vossa verde e tenra idade,
Por seu amor sofrestes ferro e fogo;
A todos peço, neste vosso dia,

Que todos me ajudeis com vosso rogo,
Diante da divina majestade,
Tomando por terceira a Virgem pia.

Diogo Bernardes, Rimas Várias, Flores do Lima


[Silva Pereira]

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Moral Racional II


Para além da questão da compatibilidade entre ética religiosa e ética secular, uma outra, particularmente importante, tem sido bastante discutida nos últimos tempos: a de saber se a ética religiosa – mais concretamente, a ética cristã, a que passo a referir-me – difere ou não, quanto ao conteúdo, da ética puramente racional ou “humana”.
Deixando de lado certas precisões que requeririam mais amplos desenvolvimentos, parece haver consenso generalizado na afirmação da substancial identidade de conteúdo quanto às normas operativas. Tudo o que se preceitua em nome do Deus de Jesus Cristo pode justificar-se do ponto de vista da verdade do homem, e tudo o que a recta razão humana prescreve é coerente com a verdade da fé cristã. Do ponto de vista de conteúdos normativos, não haveria uma aportação específica do Cristianismo à ética. O Cristianismo deixa subsistir a moral humana na sua autonomia, mas “transfigura” esta moral(X. Thévenot). A “diferença” cristã não se traduz em normas éticas que só pertencem ao Cristianismo; a lei do Cristianismo assume a lei natural. A teonomia funda a autonomia humana e põe-na no seu lugar quando tende a idolatrar-se. A moral cristã poderá sempre apresentar razões das suas posições, razões acessíveis a qualquer não cristão ou não crente, uma vez que, segundo S. Tomás, Suárez, Domingos de Soto e muitos outros autores escolásticos, todos os preceitos morais se encontram na lei moral natural[1]
Contrariamente ao que talvez algumas pessoas pensem, não se encontram nos textos da Revelação judaico-cristã normas determinadas(preceitos concretos) acerca de todos os problemas morais, muito menos dos mais modernos, nomeadamente os que são estudados em bioética. Mais: num certo sentido, não se encontram na Escritura nenhumas normas morais operativas[2], entendendo por tal normas que são suficientes para dirigir a prática.
E não só isso: mesmo nos casos em que tal parece acontecer – ou seja, nos casos em que parecem encontrar-se na Escritura normas morais concretas - serão de evitar, na leitura dessas passagens, tendências fundamentalistas desrespeitadoras das mais elementares exigências da exegese, desatendendo, nomeadamente, à diferença entre discurso doutrinal e discurso parenético ou exortatório: as exortações morais que encontramos na Escritura – sede generosos, esmoleres, solícitos do bem dos irmãos, etc., - não são imediatamente praticáveis, cabendo a cada um ver e decidir, em cada contexto de circunstâncias em que se encontrar, se é momento de dar esmola, de estar no lugar de trabalho ou em convívio familiar, etc.
É indiscutível que o cristão recebe da Revelação uma luz – a “luz do Evangelho” a que se refere a Constituição Gaudium et Spes (nº 46) do Vaticano II – e uma graça que são, certamente, de grande ajuda, mas que não lhe fornecem directamente qualquer norma concreta de agir nem lhe poupam o trabalho de reflexão, ponderação e informação, requerido aos seus semelhantes não cristãos. Significativamente, o citado documento do Vaticano II associa à luz do Evangelho a experiência humana: “o Concílio dirige agora a atenção de todos, à luz do Evangelho e da experiência humana, para algumas necessidades mais urgentes do nosso tempo”.
Uma palavra se deverá ainda dizer acerca do papel do Magistério na determinação da moral cristã e das suas aplicações aos problemas que vão surgindo. Tema vasto e que importaria tratar com maior desenvolvimento. Na impossibilidade de o fazer convenientemente neste momento, limito-me a chamar a atenção para um ponto que me parece de especial importância, embora nem sempre seja suficientemente atendido. Refiro-me à notável diferença, já acima referida, que existe entre discurso ou proposições de fé e proposições morais e, em consequência de tal diferença, à diferente autoridade doutrinal do Magistério, num e noutro campo[3].
Notemos o seguinte: uma vez que a fé exige anuência a uma dimensão da realidade que seria incognoscível sem a Revelação, a sua expressão tem de recorrer a conceitos análogos, não unívocos. As proposições normativas que regulam o agir humano, pelo contrário, deverão ter carácter unívoco. Existem mistérios da fé, mas não pode haver normas éticas misteriosas, normas cujo conteúdo obrigatório se não possa determinar positiva, compreensível e univocamente com vistas ao agir humano. É de fundamental relevância essa diferença formal entre artigos de fé e sentenças de ética normativa. Compreender o que se deve fazer é parte constitutiva do agir humano responsável, apesar de ser apenas um dos seus aspectos, embora fundamental.[4]
Em consequência desta diferença entre proposição de fé e proposição moral, a competência do Magistério em matéria de ética normativa do agir intra-mundano não é a mesma que em matéria de fé. Como acertadamente observa Franz Böckle, “qualquer decisão doutrinal sobre determinada questão objectiva da razão ética não pode ser imposta obrigatoriamente mediante simples acto da autoridade, mas, por princípio, há-de ser demonstrável através de argumentos”;[5] e acrescenta com razão: “os argumentos pesam tanto quanto provam”.
O que de modo algum significa ignorar ou minimizar a inegável importância da intervenção do Magistério na clarificação das exigências morais. Reafirmando essa importância - por diversas razões que, de momento, não explicito -, penso dever manter a afirmação de que a competência do Magistério em matéria moral não é a mesma que em matéria de fé, e que as suas afirmações têm fundamentalmente o valor das razões que apresenta – razões de si acessíveis à mente humana, sem recurso à Revelação.[6]
Do que acima ficou brevemente dito, parece-me poder-se concluir que não podem ser objecto de definição dogmática opiniões morais operativas concretas.[7]
Termino mencionando – apenas mencionando – um último assunto, que não deveria ser omitido numa consideração suficientemente completa do tema do presente artigo: refiro-me ao problema – aos problemas, seria melhor dizer – que o pluralismo de opiniões morais, vigente nas nossas sociedades, constitui e que se reflecte, nomeadamente, no trabalho das Comissões de Ética e na actividade dos legisladores.
Embora sem o tratar, não podia deixar de o mencionar.


Roque Cabral S. J., em Brotéria 166(Fevereiro 2008)

[1] Suma Teológica 1-2,100, 1 e 108, 2 ad lum.
[2] J. Blank, “Considerações sobre o problema das 'normas éticas' no NT”, Concilium 5(1967),10-12; Josef Fuchs, Etica cristiana in una società secolarizzata, Roma, Piemme, 1984; D. Mieth, F. Compagnoni (Hrsg.), Ethik im Kontext des Glaubens, Freibug i. Br., 1978.
[3] Franz Böckle, “Fé e Ato”, Concilium 10(1976), 1147-1158.
[4] Ibidem, 1150-1151.
[5] Ibidem, 1156.
[6] O que também não equivale a negar a necessidade moral da Revelação para se chegar – com segurança e relativa facilidade, como se referiu o Vaticano I – a certas compreensões que de si não ultrapassam a capacidade da razão humana; e menos significa ignorar a necessidade da graça sanante para o conhecimento. Como muitos moralistas, penso que a tradição teológica afirma que a moral da revelação é a verdadeira moral da razão, confirmada, precisamente, desse modo. Assim leio, por exemplo, o que diz S. Tomás acerca da lei divina (Suma Teológica 1-2, 98ss), seguido por autores da Segunda Escolástica como Domingos de Soto e Francisco Suárez.
[7] Embora não tratando directamente deste assunto, são muito esclarecedoras as páginas em que J. Fuchs – adoptando uma posição diferente da que exprimira em Lex Naturae(1955), pp. 158ss. e Theologia Moralis Generalis I (1963), p. 85 – examina se as verdades morais são ou não “verdades de salvação”: “Verità morali – vertà di salveza?”, c. IV de Etica cristiana in una società secolarizzata


[Silva Pereira]

terça-feira, 30 de setembro de 2008

A missa segundo Adélia Prado

Poeta e prosadora, Adélia Prado é, com certeza, uma das mais extraordinárias escritoras de língua portuguesa. Tem 71 anos, é brasileira e católica. E no final do ano passado falou sobre a linguagem poética e a linguagem religiosa em Aparecida, São Paulo, no âmbito de uma iniciativa que se intitulou “Vozes da Igreja”. “Missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum”, disse ela na ocasião, segundo o relato da Agência Zenit datado do dia 2 de Dezembro.

A missa, afirmou a escritora, ”é a coisa mais absurdamente poética que existe. É o absolutamente novo sempre. É Cristo se encarnando, tendo a sua Paixão, morrendo e ressuscitando. Nós não temos de botar mais nada em cima disso, é só isso”. Às vezes, parece que não é só isso: “Olha, gente, têm algumas celebrações em que a gente sai da igreja com vontade de procurar um lugar para rezar”.

Contou a Agência Zenit que, ao propor a discussão do resgate da beleza nas celebrações litúrgicas, Adélia Prado reconheceu que essa é uma preocupação que a tem ocupado há muitos anos: “Como cristã de confissão católica, eu acredito que tenho o dever de não ignorar a questão”.

A questão do canto usado na liturgia mereceu a atenção da escritora, que julga que muitas vezes ele não ajuda a rezar. “O canto não é ungido, ele é feito, fazido, fabricado. É indispensável redescobrir o canto oração”. Adélia Prado sublinhou que “o canto barulhento, com instrumentos ruidosos, os microfones altíssimos, não facilita a oração, mas impede o espaço de silêncio, de serenidade contemplativa”.

Explica a autora de Solte os Cachorros, título de uma das suas obras editadas em Portugal, “a palavra foi inventada para ser calada. É só depois que se cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração e de qualquer coisa, a beleza da arte, é puro silêncio e pura audição”. E o que sucede é que “nós não encontramos mais em nossas igrejas o espaço do silêncio. Eu estou falando da minha experiência, queira Deus que não seja essa a experiência aqui”. “Parece que há um horror ao vazio. Não se pode parar um minuto”, observa Adélia Prado, que insiste: “Não há silêncio. Não havendo silêncio, não há audição. Eu não ouço a palavra, porque eu não ouço o mistério, e eu estou celebrando o mistério”.

Para a escritora, “muitos procedimentos nossos são uma tentativa de domesticar aquilo que é inefável, que não pode ser domesticado, que é o absolutamente outro”. É por o indizível ser de imensa magnitude que faltam as palavras. “E não ter palavras significa o quê? Que existe algo inefável e que eu devo tratar com toda reverência”.

“A liturgia celebra o quê?” À pergunta que formulou, Adélia Prado deu também uma resposta: “O mistério. E que mistério é esse? É o mistério de uma criatura que reverencia e se prostra diante do Criador. É o humano diante do divino. Não há como colocar esse procedimento num nível de coisas banais ou comuns”.

Supor que, para aproximar o povo de Deus, se deve falar o que se julga ser a linguagem do povo, é algo que considera errado pelo que a seguir explica: “Mas o que é a linguagem do povo? É aí que mora o equívoco”. É que não há ninguém que se aproxime com maior reverência do mistério de Deus do que o próprio povo, afirmou, sublinhando que “o próprio povo é aquele que mais tem reverência pelo sagrado e pelo mistério”.

E pergunta Adélia Prado: “Como é que eu posso oferecer a esse povo uma música sem unção, orações fabricadas, que a gente vê tão multiplicadas e colocadas nos bancos das igrejas, e que nada têm a ver com essa magnitude que é o homem, humano, pecador, aproximar-se do mistério?”.

“Barateou-se”, prossegue a escritora, o espaço do sagrado e da liturgia “com letras feias, com músicas feias, comportamentos vulgares na igreja”. Adélia Prado dá alguns exemplos do empobrecimento litúrgico. “Está tão banalizado isso tudo nas nossas igrejas que até o modo de falar de Deus a gente mudou. Fala-se o “Chefão”, “Aquele lá de cima”, o “Paizão”, o “Companheirão”. “Deus não é um ‘Companheirão’, ele não é um ‘Paizão’, ele não é um ‘Chefão’. Eu estou falando de outra coisa. Então há a necessidade de uma linguagem diferente, para que o povo de Deus possa realmente experimentar ou buscar aquilo que a Palavra está anunciando”.

A linguagem religiosa “é a linguagem da criatura reconhecendo que é criatura, que Deus não é manipulável, e que eu dependo dele para mover a minha mão”. Com esse espírito, diz Adélia Prado, “a nossa Igreja pode criar naturalmente ritos e comportamentos, cantos absolutamente maravilhosos, porque verdadeiros”.

Insistindo em que a missa é como um poema e que não suporta enfeites, Adélia Prado considera que a celebração da Eucaristia é perfeita na sua simplicidade. “Nós colocamos enfeites, cartazes por todo lado, procissão disso, procissão daquilo, procissão do ofertório, procissão da Bíblia, palmas para Jesus. São coisas que vão quebrando o ritmo. E a missa tem um ritmo, é a liturgia da Palavra, as ofertas, a consagração… então ela é inteirinha”.

Afirma Adélia Prado: “A arte a gente não entende. Fé a gente não entende. É algo dirigido à terceira margem da alma, ao sentimento, à sensibilidade. Não precisa inventar nada, nada, nada”.

Eduardo Jorge Madureira Lopes

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Encontro de Bento XVI com o mundo da cultura, em Paris


Partindo do monaquismo e da sua busca de Deus, Bento XVI, reconhecendo que os monges não queriam criar uma cultura nova nem conservar uma cultura do passado, afirma que o objectivo deles era muito simples: «no meio da confusão daqueles tempos, em que nada parecia resistir, os monges desejavam a coisa mais importante: dedicarem-se a encontrar aquilo que tem valor e permanece sempre, ou seja, encontrar a própria vida». O seu ser estava voltado para a «escatologia», não no sentido cronológico da palavra, mas no sentido existencial: aquilo que está por detrás do provisório, aquilo que é definitivo. E o caminho para lá chegarem era a Palavra, oferecida aos homens nos livros da Escritura. Por isso: «a busca de Deus requer, intrinsecamente, uma cultura da palavra… O desejo de Deus compreende o amor das letras, o amor da palavra, a sua exploração em todas as dimensões. Dado que na palavra bíblica, Deus está em caminho para nós e nós para Ele, os monges deviam aprender a penetrar os segredos da língua, a compreendê-la na sua estrutura e nos seus usos. Desta forma, por causa da busca de Deus, as ciências profanas, que nos indicam os caminhos para a língua, tornavam-se importantes. Por esta razão, a biblioteca e a escola faziam parte integrante do mosteiro. Estes dois locais abriam concretamente um caminho para a palavra. São Bento chamava ao mosteiro uma escola de serviço do Senhor. «A escola e a biblioteca asseguravam a formação da razão e a erudição, com base na qual o homem aprende a perceber no meio das palavras, a Palavra».
O papa convida, de seguida, a dar mais um passo suplementar: «A Palavra que abre o caminho da busca de Deus e que é, ela mesma esse caminho, é uma Palavra que faz nascer uma comunidade… A Palavra não nos conduz unicamente no caminho de uma mística individual. Introduz-nos na comunidade de todos aqueles que caminham na fé. Por isso é preciso reflectir, não apenas na Palavra, mas lê-la de maneira justa. Tal como na escola rabínica, entre os monges, a leitura realizada por um deles é igualmente um acto corporal. ‘A maior parte das vezes, quando o ler e a lectio são utilizadas sem especificação, designam uma actividade que, tal como o canto e a escrita, ocupa todo o corpo e todo o espírito’, diz Dom Leclercq.»
É preciso ainda dar outro passo. «A Palavra de Deus introduz-nos ela própria num diálogo com Ele. O Deus que fala na Bíblia ensina-nos como Lhe podemos falar. Sobretudo nos Salmos, dá-nos as palavras com que nos podemos dirigir a Ele. Neste diálogo, nós apresentamos-Lhe a nossa vida, com os seus altos e os seus baixos, e transformamo-la num movimento para Ele. Os Salmos contêm, em muitos locais, instruções sobre a maneira como devem ser cantados e acompanhados pelos instrumentos musicais. Para rezar com base na Palavra de Deus, não basta a simples labialização. A música é necessária. Dois cânticos da liturgia cristã derivam de textos bíblicos que os colocam nos lábios dos Anjos: o Glória, que é cantado uma primeira vez pelos Anjos no nascimento de Jesus, e o Sanctus que, segundo Isaías 6, é a aclamação dos Serafins, que estão na proximidade imediata de Deus. A esta luz, a Liturgia cristã é um convite a cantar com os anjos e a dar à palavra a sua mais alta função: - cantar, na oração comunitária, na presença de toda a corte celeste, e, assim, estar submetido à medida suprema: rezar e cantar para se unir à música dos espíritos sublimes, que eram considerados como os autores da harmonia do cosmos, da música das suas esferas.»
Cantar menos bem é cair na dissemelhança de Deus, num afastamento de Deus, onde o homem já não reflecte Deus, tornando-se dissemelhante da natureza divina de que é imagem, mas também dissemelhante da sua verdadeira natureza de homem. Para São Bento, a cultura da Palavra confiada ao homem tem como imperativo uma beleza real. «Desta exigência capital de falar de Deus e de O cantar com as palavras que Ele mesmo lhe deu, nasceu a grande música ocidental. Não era caso de criatividade pessoal, em que o indivíduo toma como critério essencial a representação do seu próprio eu, e se erige a ele próprio em monumento. Tratava-se mais bem de reconhecer atentamente, com ‘os ouvidos do coração’, as leis constitutivas da harmonia musical da criação, as formas essenciais da música emitida pelo Criador no mundo e no homem, e de inventar uma música digna de Deus que seja, ao mesmo tempo, autenticamente digna do homem e que proclame altamente esta dignidade.»
Ajudando a aprofundar nesta direcção de escuta da Palavra, Bento XVI recorda que «…a Bíblia não é um simples livro, mas uma recolha de textos literários cuja redacção se estende por mais de mil anos e em que os diferentes livros não são facilmente reconhecíveis como constituintes de um corpo unificado. Pelo contrário, há tensões visíveis entre eles. É o caso na Bíblia de Israel, que nós chamamos Antigo Testamento, e mais ainda quando nós os cristãos ligamos o Novo testamento e os seus escritos à Bíblia de Israel, interpretando-a como um caminho para Cristo. Com razão, no Novo Testamento, a Bíblia não é chamada de maneira habitual Escritura, mas ‘Escrituras’ que, todavia, serão consideradas, no seu conjunto, como a única Palavra de Deus que nos é dirigida. Este plural significa já claramente que a Palavra de Deus nos chega somente através da palavra humana, através de palavras humanas, isto é, que Deus nos fala somente na humanidade dos homens, e através das suas palavras e da sua história. Isto significa que o aspecto divino da Palavra e das palavras não é imediatamente perceptível. Dizendo-o de maneira moderna: a unidade dos livros bíblicos e o carácter divino das suas palavras não são perceptíveis desde um ponto de vista puramente histórico. O elemento histórico apresenta-se no múltiplo e no humano. O que explica que exista um díptico medieval que nos diz que a letra mostra os factos, mas que aquilo que se deve crer o mostra a alegoria, ou seja, o que é fruto da interpretação cristológica e pneumática.
Dizendo-o de uma maneira mais simples: a Escritura tem necessidade da interpretação, e precisa da comunidade em que se formou e em que é vivida. Nela tem a sua unidade e nela se desprende o sentido que unifica o todo. Dito ainda de outra maneira: existem dimensões do significado da Palavra e das palavras que se desvelam apenas na comunhão vivida desta Palavra que cria a história. Através da crescente percepção da pluralidade de sentidos, a Palavra não é desvalorizada, mas aparece, pelo contrário, em toda a sua grandeza e toda a sua dignidade». Por isso se afirma com razão que o Cristianismo não é uma religião do livro. «O cristianismo capta nas palavras a Palavra, o próprio Logos, que desvenda o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana. Esta estrutura especial da Bíblia é um desafio sempre novo para cada geração. Pela sua própria natureza, ela exclui tudo aquilo que hoje se chama fundamentalismo.
Bento XVI refere como o carácter crucial desta maneira de interpretar a Bíblia foi bem compreendido por São Paulo ao afirmar em 2 Cor 3, 6 : «a letra mata, mas o Espírito dá a vida» e que «lá onde está o Espírito… está a liberdade» (3, 17). Mas este Espírito que torna livre não se deixa reduzir à ideia ou à visão pessoal daquele que interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos mostra o caminho. O que impede as derivas subjectivistas e o fanatismo fundamentalista. «Seria fatal se a cultura europeia de hoje compreendesse a liberdade como ausência total de vínculos, assim favorecendo, inevitavelmente, o fanatismo e a arbitrariedade. A falta de vínculos e a arbitrariedade não são a liberdade, mas a sua destruição».
A reflexão seria incompleta se se ativesse à Palavra, ao «Ora». A segunda componente do monaquismo é o «Labora». Diferentemente do mundo grego, que desprezava o trabalho manual, considerando-o como obra dos escravos, quer os rabinos, quer Paulo, mostraram bem a dignidade do trabalho, sendo Paulo um fabricante de tendas. Se o mundo greco-romano não conhecia um Deus criador, sendo o trabalho confiado ao demiurgo, «o Deus da Bíblia é muito diferente: Ele, o Uno, o Deus vivo e verdadeiro, é ao mesmo tempo o Criador. Deus trabalha, e continua a operar na e sobre a história dos homens. E em Cristo, Ele entra como Pessoa no trabalho fatigante da história… O Trabalho dos homens aparece como uma expressão particular da sua semelhança com Deus que torna o homem participante da obra criadora de Deus no mundo. Sem esta cultura do trabalho que, com a cultura da palavra, constitui o monaquismo, o desenvolvimento da Europa, o seu ethos e a sua formação do mundo são impensáveis. A originalidade deste ethos deveria doravante fazer compreender que o trabalho e a determinação da história pelo homem são uma colaboração com o Criador, que têm n’Ele a sua medida. Lá onde esta medida falta e lá onde o homem se converte a ele mesmo em criador deiforme, a transformação do mundo pode facilmente chegar à sua destruição».
A atitude dos monges, orientados pela Palavra, era uma verdadeira atitude filosófica: olhar para além das realidades penúltimas e procurar as realidades últimas, as verdadeiras. A direcção a seguir era a palavra da Bíblia, na qual escutavam Deus, devendo esforçar-se por O compreender para poder chegar até Ele. «O anúncio da Palavra é necessário. Ela dirige-se ao homem e forja nele uma convicção que se pode tornar vida. E para que se possa abrir um caminho no coração da palavra bíblica enquanto Palavra de Deus, esta mesma Palavra deve ser anunciada abertamente» para poder dar razão da sua fé: «Deveis sempre estar preparados para vos explicardes diante de todos aqueles que vos pedem que deis conta (logos) da esperança que existe em vós 2 Ped 3, 15. (O Logos, a razão da esperança, deve fazer-se apo-logia, deve chegar a ser resposta). De facto, os missionários da igreja nascente não consideravam o seu anúncio missionário como uma propaganda que devesse servir para aumentar a importância do seu grupo, mas como uma necessidade intrínseca que derivava da natureza da sua fé. O Deus em que acreditavam era o Deus de todos, o Deus Uno e Verdadeiro que se tinha mostrado na história de Israel e finalmente em seu Filho, dando assim a resposta que tinha em conta a todos e que, no seu íntimo, todos os homens esperam. A universalidade de Deus e a universalidade da razão aberta a Ele constituíam para eles a motivação e, ao mesmo tempo, o dever de anunciar. Para eles, a fé não dependia dos hábitos culturais, que são diferentes segundo os povos, mas do âmbito da verdade que tem igualmente em conta a todos.»
Quando Paulo prega no Areópago, um tribunal competente em matéria de religião e que devia opor-se à intrusão de religiões estrangeiras, ele é acusado precisamente por pregar divindades desconhecidas e estrangeiras ( Act 17, 18). A tal acusação replica Paulo: «Eu encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao deus desconhecido’. Ora, aquilo que vós venerais sem o conhecer é o que eu venho anunciar-vos (cf. A7, 23). Paulo não anuncia deuses desconhecidos. Ele anuncia Aquele que os homens ignoram e todavia conhecem: o Ignoto-Conhecido. É Aquele que eles procuram e do qual, no fundo, têm conhecimento e que é, todavia, o Ignoto e o Incognoscível. No mais profundo do pensamento e do sentimento humano, sabe-se, de certo modo, que Ele tem que existir. Que na origem de todas as coisas deve estar, não a irracionalidade, mas a Razão criadora; não o cego destino, mas a liberdade. Todavia, embora todos os homens o saibam de alguma maneira, este conhecimento permanece ambíguo: um deus só pensado e elaborado pelo espírito humano não é o verdadeiro Deus. Se Ele não se revela, nós não chegamos até Ele. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade dizer agora a todos os povos: Ele revelou-se. Ele, pessoalmente. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento, mas num facto: Ele revelou-se. Isto não é um facto cego, mas um facto que, em si mesmo, é Logos – presença da Razão eterna na nossa carne. Verbum caro factum est (Jn 1, 14): é assim verdadeiramente na realidade: o Logos está presente no meio de nós. É um facto racional. Todavia, a humildade da razão é sempre necessária para o poder acolher. É necessária a humildade do homem para responder à humildade de Deus».
A brilhante alocução de Bento XVI termina afirmando que a situação presente da humanidade tem muitos aspectos análogos aos do Areópago. E se não há cidades cheias de imagens de deuses, há o facto incontestável de que «Deus se tornou verdadeiramente o grande desconhecido. E apesar de tudo, como outrora, em que por detrás de numerosas representações de deuses, estava escondida e presente a questão do Deus desconhecido, também hoje, a actual ausência de Deus está também tacitamente inquieta pela pergunta sobre Ele. Procurar Deus e deixar-se encontrar por Ele, não é hoje menos necessário que no passado. Uma cultura puramente positivista, que circunscrevesse ao campo subjectivo, como não científica, a pergunta sobre Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, um fracasso do humanismo cujas consequências só podem ser muito graves. Aquilo que fundou a cultura da Europa, a procura de Deus e a disponibilidade para O escutar, permanece, ainda hoje, o fundamento de toda a verdadeira cultura.»

Carlos Nuno Vaz

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Pagamento do Reino é igual para todos



Comentário do Padre Raniero Cantalamessa, OFM Cap., Pregador da Casa Pontifícia, sobre a Liturgia da Palavra deste domingo.

XXV Domingo do Tempo Comum: Isaías 55, 6-9; Filipenses 1, 20c-27a; Mateus 20, 1-16a


“Ide vós também para a minha vinha”

A parábola dos trabalhadores enviados à vinha em horas diferentes do dia sempre gerou grande dificuldade aos leitores do Evangelho. É aceitável a maneira de actuar do dono, que dá o mesmo pagamento para quem trabalhou uma hora e para quem trabalhou uma jornada inteira? Ele não viola o princípio da justa recompensa? Os sindicatos hoje se rebelariam contra quem comportasse como esse patrão.A dificuldade nasce de um equívoco. Considera-se o problema da recompensa em abstracto e em geral, ou em referência à recompensa eterna no céu. Visto assim, realmente haveria uma contradição com o princípio segundo o qual Deus "dá para cada um segundo suas obras" (Rm 2, 6). Mas Jesus se refere aqui a uma situação concreta, a um caso bem preciso: o único denário que é dado a todos é o Reino dos Céus que Jesus trouxe à terra; é a possibilidade de entrar para fazer parte da salvação messiânica. A parábola começa dizendo: "O Reino dos céus é como a história do patrão que saiu de madrugada...".O problema é, mais uma vez, o da postura dos judeus e dos pagãos, ou dos justos e dos pecadores, frente à salvação anunciada por Jesus. Ainda que os pagãos (respectivamente, os pecadores, os publicanos, as prostitutas, etc.) só diante da pregação de Jesus se decidiram por Deus, enquanto antes estavam afastados ("ociosos"), não por isso ocuparão no Reino um lugar diferente e inferior. Eles também se sentarão à mesma mesa e gozarão da plenitude dos bens messiânicos. E mais, como eles se mostraram mais dispostos a acolher o Evangelho que os chamados "justos", realiza-se o que Jesus diz para concluir a parábola de hoje: "os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos".Uma vez conhecido o Reino, ou seja, uma vez abraçada a fé, então sim há lugar para a diversificação. Então já não é idêntico o destino de quem serve Deus durante toda a vida, fazendo render ao máximo seus talentos, com relação a quem dá a Deus só as sobras de sua vida, com uma confissão remediada, de alguma forma, no último momento.A parábola contém também um ensinamento de ordem espiritual da máxima importância: Deus chama todos e chama em todas as horas. O problema, em suma, é o chamado, e não tanto a recompensa. Esta é a forma com que nossa parábola foi utilizada na exortação de João Paulo II sobre a "vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo" (Christifideles laici): "Os fiéis leigos pertencem àquele Povo de Deus que é representado na imagem dos trabalhadores da vinha (...). Ide vós também. A chamada não diz respeito apenas aos Pastores, aos sacerdotes, aos religiosos e religiosas, mas estende-se aos fiéis leigos: também os fiéis leigos são pessoalmente chamados pelo Senhor" (n. 1-2).Quero chamar a atenção sobre um aspecto que talvez seja marginal na parábola, mas que é muito vivo na sociedade moderna: o problema do desemprego. À pergunta do proprietário: "Por que estais aí o dia inteiro desocupados?", os trabalhadores respondem: "Porque ninguém nos contratou". Esta resposta poderia ser dada hoje por milhões de desempregados.Jesus não era insensível a este problema. Se Ele descreve tão bem a cena é porque muitas vezes seu olhar havia pousado compassivamente sobre aqueles grupos de homens sentados no chão, ou apoiados em uma porta, com um pé na parede, à espera de serem contratados. Esse proprietário sabe que os operários da última hora têm as mesmas necessidades que os outros; também eles têm filhos para alimentar, como os da primeira hora. Dando a todos o mesmo pagamento, o proprietário mostra levar em conta não só o mérito, mas também a necessidade.
As nossas sociedades capitalistas baseiam a recompensa unicamente no mérito (com frequência mais nominal que real) e no tempo de serviço, e não nas necessidades da pessoa. No momento em que um jovem operário ou um profissional tem mais necessidade de ganhar para construir uma casa e uma família, seu pagamento é o mais baixo, enquanto que no final da carreira, quando já se tem menos necessidade, a recompensa (especialmente em certas categorias sociais) chega às nuvens. A parábola dos operários da vinha nos convida a encontrar um equilíbrio mais justo entre as duas exigências, do mérito e da necessidade.
[Helena Gonçalves]

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Moral racional e moral religiosa

Guido Renei, c. 1624, Moisés e as Tábuas da Lei

Em vez de “moral”, poderia ter escrito “ética”, dado que, no que se segue, usarei os dois termos como sinónimos. O termo “ética” vem do grego e foi criado por Aristóteles, enquanto “moral” provém do latim, tendo sido criado por Cícero para traduzir o termo “ética” – o que já nos sugere o papel criador que os latinos tiveram nesta área da filosofia, ao contrário do que aconteceu, dum modo geral, nos outros domínios filosóficos, onde pouco mais foram que tradutores[1] “colonizados” pela sua colónia helénica.
As questões suscitadas pelo confronto entre éticas laicas ou racionais e éticas religiosas têm sido bastante debatidas nos últimos decénios. Marciano Vidal, o moralista espanhol mais em evidência na actualidade, no artigo em que deu a conhecer a sua mais recente obra, a Nueva Moral Fundamental. El lugar teológico de la Ética, exprime a opinião de que os debates “entre la ‘ética de la fé’ y la ‘moral de la autonomía teónoma’” são “un camino ya totalmente recorrido; permanecer en él nos mantendría en inútiles polémicas y nos conduciría a escasos resultados”[2]. Talvez essa opinião corresponda à realidade espanhola; para os leitores portugueses não penso que seja inútil apresentar aqui o consenso bastante alargado a que esses debates conduziram.
O ponto de partida é um dado de facto: a existência de morias elaboradas por diversos pensadores e de morais propostas pelas várias religiões. Todos os grandes filósofos se ocuparam com a dimensão ética da vida humana e todas as religiões têm uma componente moral, um sistema de regras de conduta, mais ou menos claramente relacionado com a componente doutrinal. Em todas elas o “indicativo” dogmático fundamenta “imperativos” morais.
Noto, de passagem, que se compararmos essas morais de inspiração religiosa com as morais filosóficas elaboradas por diversos autores e veiculadas por escolas e correntes, verificamos que foram as morais religiosas que maior influência tiveram na vida dos homens e das sociedades. O que dá que pensar e importa ter em conta.
Nas religiões que se pretendem originadas numa revelação, nomeadamente as três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – muitas prescrições morais são mesmo atribuídas à divindade. E a partir dessas normas morais de pretendida origem divina – as “morais religiosas” em sentido estrito – foram-se elaborando as morais religiosas em sentido amplo, as quais englobam – com diverso grau de autoridade – quer as normas atribuídas directamente à divindade quer as que resultam de elaboração humana a partir daquelas[3]. Tal acontece de modo particularmente claro no âmbito das confissões cristãs e, muito claramente, no campo católico, com a chamada teologia moral ou moral teológica.
Na medida em que a ética religiosa atribui a sua primeira origem à divindade, parece implicar uma certa heteronomia: não provindo a lei do homem, mas de outrem, vem de “fora” dele. Nessa mesma medida, uma ética religiosa parece incompatível com uma ética secular, “humana”. Muitos assim pensam e, consequentemente, julgam que a relação entre ética religiosa e ética secular se põe em termos de alternativa: ou uma ou outra.
Na realidade não é assim, se se tiver em conta uma correcta concepção acerca de Deus e das relações entre as criaturas e o Criador. O Criador é certamente “outro”, diferente – e tanto! – da criatura, do ser humano. É-lhe transcendente. Mas, precisamente porque é Criador, não lhe é “exterior”, mas antes radicalmente imanente – “mais interior a mim mesmo do que o meu próprio íntimo”, dirá S. Agostinho: intimior intimo meo. Fonte e origem do ser da criatura, Deus não se lhe pode considerar “exterior” e, portanto, “rival”. Por esta razão, a sua “lei” não é heterónoma[4] relativamente ao homem, não se lhe contrapõe como outra lei do mesmo nível, mas antes, porque “teónoma”, transcende-a. Por esse mesmo motivo, a lei do homem deve dizer-se verdadeira, embora subordinadamente, “autónoma”, verdadeira lei do homem. É isto que a tradicional doutrina escolástica pretende exprimir ao dizer que a lei moral natural é a “participação formal da lei divina na criatura racional”[5].
A existência de uma moral “religiosas” – quer, no sentido estrito, limitada às normas de que a própria divindade teria sido directamente autora, quer no sentido mais amplo acima rferido – não invalida, por conseguinte, a existência de uma moral “racional” ou simplesmente “humana”, moral que prescinde de qualquer fundamentação revelada e até de uma explícita fundamentação teísta, uma moral autónoma, portanto. Muito pelo contrário: qualquer moral religiosa pressupõe, como indispensável condição de possibilidade, a moral “humana” ou “natural”. Sem poder descer aqui a grandes desenvolvimentos, limito-me de momento a observar o seguinte: mesmo uma ordem directamente recebida de Deus só se apresentará como vinculativa para quem perceba que deve obedecer-lhe; ora percebê-lo é, no fundo, perceber que isso é que é bem e o contrário mal; por outras palavras, é ter o sentido moral, considerar que “o bem é a fazer e o mal a evitar”, formulação que condensa a exigência ética básica e global.
A teonomia da moral religiosa não suprime, pois, a autonomia da moral humana[6]. Afirmar que a moral encontra no Absoluto, em Deus, o seu último fundamento[7] não compromete a autonomia racional da moral. Por outras palavras: a questão “ética religiosa/ética secular” não se põe em termos de alternativa, ou uma ou outra, mas, se bem entendida, afirma a compatibilidade de ambas: ética religiosa e ética secular.
Mais ainda: a teologia moral tem muito de elaboração racional, pois que, também no campo moral, a teologia é, como a definiu magistralmente S. Anselmo, fides quaerens intellectum, a actividade do crente em busca da inteligibilidade da sua fé. “Relativamente à teologia moral, a ética(como filosofia natural) não se situa simplesmente antes dela ou ao seu lado, actua-se antes no interior dela mesma”(J. Fuchs)[8]
O que certamente não parece admissível é uma ética que, de um modo ou de outro, não reconheça carácter absoluto ao valor moral e, nesse sentido – mas só nesse sentido - , que ele tenha algo de “religioso”. (continua)

Roque Cabral S.J., Brotéria vol.166(Fevereiro 2008)
[1] Constitui significativa excepção, além da área da ética, a do direito, intimamente a ela ligado.
[2] MARCIANO VIDAL, “Porqué he escrito una ‘Nueva Moral Fundamental”, Moralia XXIII, 2000, 513-526. A passagem citada encontra-se na p. 516.
[3] Não é fácil saber como determinada religião chegou a promover a sua moral particular, com o seu preciso sistema normativo: surgiu este directamente do apelo divino? Ou procede só da reflexão racional de uma dada sociedade, da “razão legisladora” do homem (Kant)?
[4] Um crente cristão esclarecido, em vez de dizer que Deus “manda”, considerará mais exacto dizer que Deus “funda” os mandamentos, está na origem da exigência de sentido e de coerência que habita toda a busca moral. O homem foi capaz de perceber na revelação um apelo a moralizar-se porque se percebeu a si msmo como um ser ético que procura humanizar-se. Cf. X. THÉVENOT, “Étique Chrétienne”, em Paul POUPARD, Dictionnaire des Religions, PUF, 536-538.
[5] Desenvolvi esta temática no artigo “Lei ou Legislador?”, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia LII(1996)179-184. Aí mostro que, em diferentes sentidos, deve dizer-se que a pessoa humana é súbdito da lei moral e seu legislador, embora subordinado.
[6] Esta é a razão pela qual qualquer Extrinsecismo ético é insustentável, porque baseado numa petição de princípio.
[7] Notar o seguinte: dizer que a moral se fundamenta ontologicamente em Deus não é dizer que ela requer o conhecimento explícito dessa fundamentação e, portanto, de Deus(B. SCHÜLLER, “Sittliche Forderung und Erkenntnis Gottes”, in Gregorianum 59(78) 5-37.
[8] J. FUCHS, Esiste una morale cristiana? Questioni critiche in un tempo di secolarizzazione, Herder, Morcelliana, Roma e Brescia, 1970
[Silva Pereira]