quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Moral racional e moral religiosa

Guido Renei, c. 1624, Moisés e as Tábuas da Lei

Em vez de “moral”, poderia ter escrito “ética”, dado que, no que se segue, usarei os dois termos como sinónimos. O termo “ética” vem do grego e foi criado por Aristóteles, enquanto “moral” provém do latim, tendo sido criado por Cícero para traduzir o termo “ética” – o que já nos sugere o papel criador que os latinos tiveram nesta área da filosofia, ao contrário do que aconteceu, dum modo geral, nos outros domínios filosóficos, onde pouco mais foram que tradutores[1] “colonizados” pela sua colónia helénica.
As questões suscitadas pelo confronto entre éticas laicas ou racionais e éticas religiosas têm sido bastante debatidas nos últimos decénios. Marciano Vidal, o moralista espanhol mais em evidência na actualidade, no artigo em que deu a conhecer a sua mais recente obra, a Nueva Moral Fundamental. El lugar teológico de la Ética, exprime a opinião de que os debates “entre la ‘ética de la fé’ y la ‘moral de la autonomía teónoma’” são “un camino ya totalmente recorrido; permanecer en él nos mantendría en inútiles polémicas y nos conduciría a escasos resultados”[2]. Talvez essa opinião corresponda à realidade espanhola; para os leitores portugueses não penso que seja inútil apresentar aqui o consenso bastante alargado a que esses debates conduziram.
O ponto de partida é um dado de facto: a existência de morias elaboradas por diversos pensadores e de morais propostas pelas várias religiões. Todos os grandes filósofos se ocuparam com a dimensão ética da vida humana e todas as religiões têm uma componente moral, um sistema de regras de conduta, mais ou menos claramente relacionado com a componente doutrinal. Em todas elas o “indicativo” dogmático fundamenta “imperativos” morais.
Noto, de passagem, que se compararmos essas morais de inspiração religiosa com as morais filosóficas elaboradas por diversos autores e veiculadas por escolas e correntes, verificamos que foram as morais religiosas que maior influência tiveram na vida dos homens e das sociedades. O que dá que pensar e importa ter em conta.
Nas religiões que se pretendem originadas numa revelação, nomeadamente as três grandes religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo – muitas prescrições morais são mesmo atribuídas à divindade. E a partir dessas normas morais de pretendida origem divina – as “morais religiosas” em sentido estrito – foram-se elaborando as morais religiosas em sentido amplo, as quais englobam – com diverso grau de autoridade – quer as normas atribuídas directamente à divindade quer as que resultam de elaboração humana a partir daquelas[3]. Tal acontece de modo particularmente claro no âmbito das confissões cristãs e, muito claramente, no campo católico, com a chamada teologia moral ou moral teológica.
Na medida em que a ética religiosa atribui a sua primeira origem à divindade, parece implicar uma certa heteronomia: não provindo a lei do homem, mas de outrem, vem de “fora” dele. Nessa mesma medida, uma ética religiosa parece incompatível com uma ética secular, “humana”. Muitos assim pensam e, consequentemente, julgam que a relação entre ética religiosa e ética secular se põe em termos de alternativa: ou uma ou outra.
Na realidade não é assim, se se tiver em conta uma correcta concepção acerca de Deus e das relações entre as criaturas e o Criador. O Criador é certamente “outro”, diferente – e tanto! – da criatura, do ser humano. É-lhe transcendente. Mas, precisamente porque é Criador, não lhe é “exterior”, mas antes radicalmente imanente – “mais interior a mim mesmo do que o meu próprio íntimo”, dirá S. Agostinho: intimior intimo meo. Fonte e origem do ser da criatura, Deus não se lhe pode considerar “exterior” e, portanto, “rival”. Por esta razão, a sua “lei” não é heterónoma[4] relativamente ao homem, não se lhe contrapõe como outra lei do mesmo nível, mas antes, porque “teónoma”, transcende-a. Por esse mesmo motivo, a lei do homem deve dizer-se verdadeira, embora subordinadamente, “autónoma”, verdadeira lei do homem. É isto que a tradicional doutrina escolástica pretende exprimir ao dizer que a lei moral natural é a “participação formal da lei divina na criatura racional”[5].
A existência de uma moral “religiosas” – quer, no sentido estrito, limitada às normas de que a própria divindade teria sido directamente autora, quer no sentido mais amplo acima rferido – não invalida, por conseguinte, a existência de uma moral “racional” ou simplesmente “humana”, moral que prescinde de qualquer fundamentação revelada e até de uma explícita fundamentação teísta, uma moral autónoma, portanto. Muito pelo contrário: qualquer moral religiosa pressupõe, como indispensável condição de possibilidade, a moral “humana” ou “natural”. Sem poder descer aqui a grandes desenvolvimentos, limito-me de momento a observar o seguinte: mesmo uma ordem directamente recebida de Deus só se apresentará como vinculativa para quem perceba que deve obedecer-lhe; ora percebê-lo é, no fundo, perceber que isso é que é bem e o contrário mal; por outras palavras, é ter o sentido moral, considerar que “o bem é a fazer e o mal a evitar”, formulação que condensa a exigência ética básica e global.
A teonomia da moral religiosa não suprime, pois, a autonomia da moral humana[6]. Afirmar que a moral encontra no Absoluto, em Deus, o seu último fundamento[7] não compromete a autonomia racional da moral. Por outras palavras: a questão “ética religiosa/ética secular” não se põe em termos de alternativa, ou uma ou outra, mas, se bem entendida, afirma a compatibilidade de ambas: ética religiosa e ética secular.
Mais ainda: a teologia moral tem muito de elaboração racional, pois que, também no campo moral, a teologia é, como a definiu magistralmente S. Anselmo, fides quaerens intellectum, a actividade do crente em busca da inteligibilidade da sua fé. “Relativamente à teologia moral, a ética(como filosofia natural) não se situa simplesmente antes dela ou ao seu lado, actua-se antes no interior dela mesma”(J. Fuchs)[8]
O que certamente não parece admissível é uma ética que, de um modo ou de outro, não reconheça carácter absoluto ao valor moral e, nesse sentido – mas só nesse sentido - , que ele tenha algo de “religioso”. (continua)

Roque Cabral S.J., Brotéria vol.166(Fevereiro 2008)
[1] Constitui significativa excepção, além da área da ética, a do direito, intimamente a ela ligado.
[2] MARCIANO VIDAL, “Porqué he escrito una ‘Nueva Moral Fundamental”, Moralia XXIII, 2000, 513-526. A passagem citada encontra-se na p. 516.
[3] Não é fácil saber como determinada religião chegou a promover a sua moral particular, com o seu preciso sistema normativo: surgiu este directamente do apelo divino? Ou procede só da reflexão racional de uma dada sociedade, da “razão legisladora” do homem (Kant)?
[4] Um crente cristão esclarecido, em vez de dizer que Deus “manda”, considerará mais exacto dizer que Deus “funda” os mandamentos, está na origem da exigência de sentido e de coerência que habita toda a busca moral. O homem foi capaz de perceber na revelação um apelo a moralizar-se porque se percebeu a si msmo como um ser ético que procura humanizar-se. Cf. X. THÉVENOT, “Étique Chrétienne”, em Paul POUPARD, Dictionnaire des Religions, PUF, 536-538.
[5] Desenvolvi esta temática no artigo “Lei ou Legislador?”, publicado na Revista Portuguesa de Filosofia LII(1996)179-184. Aí mostro que, em diferentes sentidos, deve dizer-se que a pessoa humana é súbdito da lei moral e seu legislador, embora subordinado.
[6] Esta é a razão pela qual qualquer Extrinsecismo ético é insustentável, porque baseado numa petição de princípio.
[7] Notar o seguinte: dizer que a moral se fundamenta ontologicamente em Deus não é dizer que ela requer o conhecimento explícito dessa fundamentação e, portanto, de Deus(B. SCHÜLLER, “Sittliche Forderung und Erkenntnis Gottes”, in Gregorianum 59(78) 5-37.
[8] J. FUCHS, Esiste una morale cristiana? Questioni critiche in un tempo di secolarizzazione, Herder, Morcelliana, Roma e Brescia, 1970
[Silva Pereira]

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