quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Encontro de Bento XVI com o mundo da cultura, em Paris


Partindo do monaquismo e da sua busca de Deus, Bento XVI, reconhecendo que os monges não queriam criar uma cultura nova nem conservar uma cultura do passado, afirma que o objectivo deles era muito simples: «no meio da confusão daqueles tempos, em que nada parecia resistir, os monges desejavam a coisa mais importante: dedicarem-se a encontrar aquilo que tem valor e permanece sempre, ou seja, encontrar a própria vida». O seu ser estava voltado para a «escatologia», não no sentido cronológico da palavra, mas no sentido existencial: aquilo que está por detrás do provisório, aquilo que é definitivo. E o caminho para lá chegarem era a Palavra, oferecida aos homens nos livros da Escritura. Por isso: «a busca de Deus requer, intrinsecamente, uma cultura da palavra… O desejo de Deus compreende o amor das letras, o amor da palavra, a sua exploração em todas as dimensões. Dado que na palavra bíblica, Deus está em caminho para nós e nós para Ele, os monges deviam aprender a penetrar os segredos da língua, a compreendê-la na sua estrutura e nos seus usos. Desta forma, por causa da busca de Deus, as ciências profanas, que nos indicam os caminhos para a língua, tornavam-se importantes. Por esta razão, a biblioteca e a escola faziam parte integrante do mosteiro. Estes dois locais abriam concretamente um caminho para a palavra. São Bento chamava ao mosteiro uma escola de serviço do Senhor. «A escola e a biblioteca asseguravam a formação da razão e a erudição, com base na qual o homem aprende a perceber no meio das palavras, a Palavra».
O papa convida, de seguida, a dar mais um passo suplementar: «A Palavra que abre o caminho da busca de Deus e que é, ela mesma esse caminho, é uma Palavra que faz nascer uma comunidade… A Palavra não nos conduz unicamente no caminho de uma mística individual. Introduz-nos na comunidade de todos aqueles que caminham na fé. Por isso é preciso reflectir, não apenas na Palavra, mas lê-la de maneira justa. Tal como na escola rabínica, entre os monges, a leitura realizada por um deles é igualmente um acto corporal. ‘A maior parte das vezes, quando o ler e a lectio são utilizadas sem especificação, designam uma actividade que, tal como o canto e a escrita, ocupa todo o corpo e todo o espírito’, diz Dom Leclercq.»
É preciso ainda dar outro passo. «A Palavra de Deus introduz-nos ela própria num diálogo com Ele. O Deus que fala na Bíblia ensina-nos como Lhe podemos falar. Sobretudo nos Salmos, dá-nos as palavras com que nos podemos dirigir a Ele. Neste diálogo, nós apresentamos-Lhe a nossa vida, com os seus altos e os seus baixos, e transformamo-la num movimento para Ele. Os Salmos contêm, em muitos locais, instruções sobre a maneira como devem ser cantados e acompanhados pelos instrumentos musicais. Para rezar com base na Palavra de Deus, não basta a simples labialização. A música é necessária. Dois cânticos da liturgia cristã derivam de textos bíblicos que os colocam nos lábios dos Anjos: o Glória, que é cantado uma primeira vez pelos Anjos no nascimento de Jesus, e o Sanctus que, segundo Isaías 6, é a aclamação dos Serafins, que estão na proximidade imediata de Deus. A esta luz, a Liturgia cristã é um convite a cantar com os anjos e a dar à palavra a sua mais alta função: - cantar, na oração comunitária, na presença de toda a corte celeste, e, assim, estar submetido à medida suprema: rezar e cantar para se unir à música dos espíritos sublimes, que eram considerados como os autores da harmonia do cosmos, da música das suas esferas.»
Cantar menos bem é cair na dissemelhança de Deus, num afastamento de Deus, onde o homem já não reflecte Deus, tornando-se dissemelhante da natureza divina de que é imagem, mas também dissemelhante da sua verdadeira natureza de homem. Para São Bento, a cultura da Palavra confiada ao homem tem como imperativo uma beleza real. «Desta exigência capital de falar de Deus e de O cantar com as palavras que Ele mesmo lhe deu, nasceu a grande música ocidental. Não era caso de criatividade pessoal, em que o indivíduo toma como critério essencial a representação do seu próprio eu, e se erige a ele próprio em monumento. Tratava-se mais bem de reconhecer atentamente, com ‘os ouvidos do coração’, as leis constitutivas da harmonia musical da criação, as formas essenciais da música emitida pelo Criador no mundo e no homem, e de inventar uma música digna de Deus que seja, ao mesmo tempo, autenticamente digna do homem e que proclame altamente esta dignidade.»
Ajudando a aprofundar nesta direcção de escuta da Palavra, Bento XVI recorda que «…a Bíblia não é um simples livro, mas uma recolha de textos literários cuja redacção se estende por mais de mil anos e em que os diferentes livros não são facilmente reconhecíveis como constituintes de um corpo unificado. Pelo contrário, há tensões visíveis entre eles. É o caso na Bíblia de Israel, que nós chamamos Antigo Testamento, e mais ainda quando nós os cristãos ligamos o Novo testamento e os seus escritos à Bíblia de Israel, interpretando-a como um caminho para Cristo. Com razão, no Novo Testamento, a Bíblia não é chamada de maneira habitual Escritura, mas ‘Escrituras’ que, todavia, serão consideradas, no seu conjunto, como a única Palavra de Deus que nos é dirigida. Este plural significa já claramente que a Palavra de Deus nos chega somente através da palavra humana, através de palavras humanas, isto é, que Deus nos fala somente na humanidade dos homens, e através das suas palavras e da sua história. Isto significa que o aspecto divino da Palavra e das palavras não é imediatamente perceptível. Dizendo-o de maneira moderna: a unidade dos livros bíblicos e o carácter divino das suas palavras não são perceptíveis desde um ponto de vista puramente histórico. O elemento histórico apresenta-se no múltiplo e no humano. O que explica que exista um díptico medieval que nos diz que a letra mostra os factos, mas que aquilo que se deve crer o mostra a alegoria, ou seja, o que é fruto da interpretação cristológica e pneumática.
Dizendo-o de uma maneira mais simples: a Escritura tem necessidade da interpretação, e precisa da comunidade em que se formou e em que é vivida. Nela tem a sua unidade e nela se desprende o sentido que unifica o todo. Dito ainda de outra maneira: existem dimensões do significado da Palavra e das palavras que se desvelam apenas na comunhão vivida desta Palavra que cria a história. Através da crescente percepção da pluralidade de sentidos, a Palavra não é desvalorizada, mas aparece, pelo contrário, em toda a sua grandeza e toda a sua dignidade». Por isso se afirma com razão que o Cristianismo não é uma religião do livro. «O cristianismo capta nas palavras a Palavra, o próprio Logos, que desvenda o seu mistério através de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana. Esta estrutura especial da Bíblia é um desafio sempre novo para cada geração. Pela sua própria natureza, ela exclui tudo aquilo que hoje se chama fundamentalismo.
Bento XVI refere como o carácter crucial desta maneira de interpretar a Bíblia foi bem compreendido por São Paulo ao afirmar em 2 Cor 3, 6 : «a letra mata, mas o Espírito dá a vida» e que «lá onde está o Espírito… está a liberdade» (3, 17). Mas este Espírito que torna livre não se deixa reduzir à ideia ou à visão pessoal daquele que interpreta. O Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos mostra o caminho. O que impede as derivas subjectivistas e o fanatismo fundamentalista. «Seria fatal se a cultura europeia de hoje compreendesse a liberdade como ausência total de vínculos, assim favorecendo, inevitavelmente, o fanatismo e a arbitrariedade. A falta de vínculos e a arbitrariedade não são a liberdade, mas a sua destruição».
A reflexão seria incompleta se se ativesse à Palavra, ao «Ora». A segunda componente do monaquismo é o «Labora». Diferentemente do mundo grego, que desprezava o trabalho manual, considerando-o como obra dos escravos, quer os rabinos, quer Paulo, mostraram bem a dignidade do trabalho, sendo Paulo um fabricante de tendas. Se o mundo greco-romano não conhecia um Deus criador, sendo o trabalho confiado ao demiurgo, «o Deus da Bíblia é muito diferente: Ele, o Uno, o Deus vivo e verdadeiro, é ao mesmo tempo o Criador. Deus trabalha, e continua a operar na e sobre a história dos homens. E em Cristo, Ele entra como Pessoa no trabalho fatigante da história… O Trabalho dos homens aparece como uma expressão particular da sua semelhança com Deus que torna o homem participante da obra criadora de Deus no mundo. Sem esta cultura do trabalho que, com a cultura da palavra, constitui o monaquismo, o desenvolvimento da Europa, o seu ethos e a sua formação do mundo são impensáveis. A originalidade deste ethos deveria doravante fazer compreender que o trabalho e a determinação da história pelo homem são uma colaboração com o Criador, que têm n’Ele a sua medida. Lá onde esta medida falta e lá onde o homem se converte a ele mesmo em criador deiforme, a transformação do mundo pode facilmente chegar à sua destruição».
A atitude dos monges, orientados pela Palavra, era uma verdadeira atitude filosófica: olhar para além das realidades penúltimas e procurar as realidades últimas, as verdadeiras. A direcção a seguir era a palavra da Bíblia, na qual escutavam Deus, devendo esforçar-se por O compreender para poder chegar até Ele. «O anúncio da Palavra é necessário. Ela dirige-se ao homem e forja nele uma convicção que se pode tornar vida. E para que se possa abrir um caminho no coração da palavra bíblica enquanto Palavra de Deus, esta mesma Palavra deve ser anunciada abertamente» para poder dar razão da sua fé: «Deveis sempre estar preparados para vos explicardes diante de todos aqueles que vos pedem que deis conta (logos) da esperança que existe em vós 2 Ped 3, 15. (O Logos, a razão da esperança, deve fazer-se apo-logia, deve chegar a ser resposta). De facto, os missionários da igreja nascente não consideravam o seu anúncio missionário como uma propaganda que devesse servir para aumentar a importância do seu grupo, mas como uma necessidade intrínseca que derivava da natureza da sua fé. O Deus em que acreditavam era o Deus de todos, o Deus Uno e Verdadeiro que se tinha mostrado na história de Israel e finalmente em seu Filho, dando assim a resposta que tinha em conta a todos e que, no seu íntimo, todos os homens esperam. A universalidade de Deus e a universalidade da razão aberta a Ele constituíam para eles a motivação e, ao mesmo tempo, o dever de anunciar. Para eles, a fé não dependia dos hábitos culturais, que são diferentes segundo os povos, mas do âmbito da verdade que tem igualmente em conta a todos.»
Quando Paulo prega no Areópago, um tribunal competente em matéria de religião e que devia opor-se à intrusão de religiões estrangeiras, ele é acusado precisamente por pregar divindades desconhecidas e estrangeiras ( Act 17, 18). A tal acusação replica Paulo: «Eu encontrei um altar com esta inscrição: ‘Ao deus desconhecido’. Ora, aquilo que vós venerais sem o conhecer é o que eu venho anunciar-vos (cf. A7, 23). Paulo não anuncia deuses desconhecidos. Ele anuncia Aquele que os homens ignoram e todavia conhecem: o Ignoto-Conhecido. É Aquele que eles procuram e do qual, no fundo, têm conhecimento e que é, todavia, o Ignoto e o Incognoscível. No mais profundo do pensamento e do sentimento humano, sabe-se, de certo modo, que Ele tem que existir. Que na origem de todas as coisas deve estar, não a irracionalidade, mas a Razão criadora; não o cego destino, mas a liberdade. Todavia, embora todos os homens o saibam de alguma maneira, este conhecimento permanece ambíguo: um deus só pensado e elaborado pelo espírito humano não é o verdadeiro Deus. Se Ele não se revela, nós não chegamos até Ele. A novidade do anúncio cristão é a possibilidade dizer agora a todos os povos: Ele revelou-se. Ele, pessoalmente. A novidade do anúncio cristão não consiste num pensamento, mas num facto: Ele revelou-se. Isto não é um facto cego, mas um facto que, em si mesmo, é Logos – presença da Razão eterna na nossa carne. Verbum caro factum est (Jn 1, 14): é assim verdadeiramente na realidade: o Logos está presente no meio de nós. É um facto racional. Todavia, a humildade da razão é sempre necessária para o poder acolher. É necessária a humildade do homem para responder à humildade de Deus».
A brilhante alocução de Bento XVI termina afirmando que a situação presente da humanidade tem muitos aspectos análogos aos do Areópago. E se não há cidades cheias de imagens de deuses, há o facto incontestável de que «Deus se tornou verdadeiramente o grande desconhecido. E apesar de tudo, como outrora, em que por detrás de numerosas representações de deuses, estava escondida e presente a questão do Deus desconhecido, também hoje, a actual ausência de Deus está também tacitamente inquieta pela pergunta sobre Ele. Procurar Deus e deixar-se encontrar por Ele, não é hoje menos necessário que no passado. Uma cultura puramente positivista, que circunscrevesse ao campo subjectivo, como não científica, a pergunta sobre Deus, seria a capitulação da razão, a renúncia às suas possibilidades mais elevadas e, portanto, um fracasso do humanismo cujas consequências só podem ser muito graves. Aquilo que fundou a cultura da Europa, a procura de Deus e a disponibilidade para O escutar, permanece, ainda hoje, o fundamento de toda a verdadeira cultura.»

Carlos Nuno Vaz

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