sábado, 5 de dezembro de 2009

O Pardal


A ladroagem descarada talvez não tenha representantes mais conhecidos do que estes bandos grulhentos que rondam searas e portais de habitações e, ao roubarem biscato, abalam como que em grande risotada. Desconfiadíssimos, podemos granizá-los, mas em vão se lhes arma a costela ou o boiz; não caem, com o olhinho finório examinam tudo, achegam-se com passinho miúdo e trémulo à côdea ou à espiga e, num último relance, a ver se vem gente, bicam-na e eles aí vão cheios de consciência de ladros e a rir-se de laços e cadeias.
Têm psicologia de contrabandistas; misturam-se com as outras aves, mas são de um egoísmo feroz. Roubar e comer são os dois parágrafos do seu código. De resto, nem se divertem nem solfejam coisa de jeito; possuídos de má consciência, andam sempre disparados da seara para os tectos e se vão beber água há-de ser em charca muito quieta e erma.
E os ninhos? Ninham nas árvores, mas sobretudo nos telhados. Metem-se por sob as telhas e fazem uns berços razoáveis onde quatro, cinco, até seis bicos se abrem com voracidade nativa. Os pais acarretam todo o dia a rapinagem variada. Mas aí, nesse trabalho de alimentação, é que revelam o fraco bestunto que lhes assiste. Na empena dos telhados, com o bico cheio, alguns levam uma espiga inteira, ficam a esguardar à direita e à esquerda, enfiam pelas telhas e repartem os ganhos. O dono do palheiro e os gatos vizinhos observam aquelas idas e vindas e vão por dentro, sobem ao tecto e topam com pratadas de carne fresca a chamar o arroz de forno. O bichano põe-se a engordar e ostenta uns bigodes mais fartos e risonhos que os dos brasileiros de torna-viagem do fim do século passado. Roubado o primeiro ninho, os pardais não choram, fazem logo outro e, daí a dias, outra pratada de carne não tabelada espera o gato ou os galfarros do agrícola que anda nervoso com os estragos na seara. Gordos e cozidos com arroz, dispensam o palito dos dentes e dão euforia às sestas do verão.
Em bando, quando desabam sobre os trigos, fazem prejuízo de vulto; nos viveiros de hortaliça, então, levam tudo a eito, e se os não chumbam, o lavrador não tem que transplantar e anda esmorecido com estes demónios. É verdade que fez uns espantalhos de braços abertos e chapéu na cabeça. No primeiro dia, a pardalada rondou incerta e observante. No segundo, já poisavam em cacho sobre o mostrengo e não queriam outro poleiro, rindo-se do ardil com redobrada malícia.
A psicologia dos pardais anda muito dentro da psique humana. Ladronicos a retalho, gente que maquia o devido ao próximo, vendedores miúdos que ludibriam as leis, até o fingido mendigo que faz beicinho miserando e tem no bolso do colete uma continha calada – todos esses são de raça pardalina.
Ides a um café e a chávena vem meia. Mandais a moenda à pedra alveira e notais que a maquia foi demais. Comprais fazenda para um fato e o casaco aperta-vos e a calça saiu curta. Estes roubos pardalares deixam muito contentes os ratoneiros que ostentam sempre a cara mais patusca e, ao serem objurgados, riem bonacheironamente e armam em admirados das calúnias que vão pelo mundo. (...)
É ave sem encantos embora use uma gravatinha enxovalhada como os ciganitos vendedores de relógios e de lapiseiras... acabadas de chegar do Cairo! Os pardais constituem uma democracia de fraca organização e escassa exemplaridade. A criminalidade é alarmante, mas de fraco calibre. Condenamo-la e rimo-nos dela com riso involuntário quando ajuizamos de fulano com esta interjeição: - olha que pardal!

João Maia, O Livro dos Animais
SP

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