terça-feira, 13 de outubro de 2009

Destruição da palavra


- Como vai o dicionário? – perguntou Winston, levantando a voz para se fazer ouvir.
- Devagar – respondeu Syme. – Estou nos adjectivos. É fascinante.
O rosto iluminara-se-lhe imediatamente com a menção da Novilíngua. Empurrou a marmita para o lado, apanhou com as mãos delicadas o cubo de queijo e o pedaço de pão, e inclinou-se sobre a mesa para poder falar sem gritar.
- A 11ª edição será definitiva – disse ele. – Estamos a dar à língua a sua forma final – a forma que terá quando mais ninguém falar outra coisa. Quando tivermos terminado, pessoas como tu terão de aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é a destruir palavras – às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos a reduzir a língua à expressão mais simples. A 11ª edição não conterá uma única palavra que possa tornar-se obsoleta antes de 2050.
Mordeu vorazmente o pão e engoliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.
- É lindo destruir palavras. Naturalmente a maior parte é nos verbos e adjectivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinónimos; os antónimos também. Afinal de contas, que justificação há para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. “Bom”, por exemplo. Se temos a palavra “bom” para que precisamos de “mau”? “Inbom” faz o mesmo efeito – e melhor, porque é exactamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais incisiva para dizer “bom”, para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como “excelente”, “esplêndido”, etc. e tal? “Plusbom” corresponde à necessidade, ou “dupliplusbom”, se queres alguma coisa ainda mais forte. Naturalmente já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras – ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente foi ideia do Grande Irmão – acrescentou à guisa de conclusão.
Uma ténue ansiedade perpassou pelo rosto de Winston à menção do Grande Irmão. Não obstante isso, Syme imediatamente observou nele uma certa falta de entusiasmo.
- Não aprecias realmente a Novilíngua, Winston – disse, quase com tristeza. – Mesmo quando escreves em Novilíngua pensas na antiga. Tenho lido artigos teus no Times. São bons, mas são traduções. No teu coração havias de preferir a Anticlíngua, com toda a sua imprecisão e as suas inúteis gradações de sentido. Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do Mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?
Winston naturalmente não sabia. Sorriu, com ar de simpatia (ao que esperava), não confiando nas suas próprias palavras. Syme mordiscou outro fragmento do pão escuro, mastigou-o um pouco e continuou:
- Não vês que todo o objectivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos o crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para o expressar. Todos os conceitos necessários serão expressos exactamente por uma palavra de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Na 11ª edição já não estamos longe disso. Mas o processo continuará ainda muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menos. Naturalmente, mesmo no nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer um crimideia. É apenas uma questão de disciplina, contrôle da realidade. Mas no futuro nem sequer será preciso isso. A Revolução completar-se-á quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua –acrescentou com uma espécie de satisfação mística. – Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa palestra?
- Excepto... – começou Winston, em tom de dúvida, mas parou de repente.
Estivera quase a dizer “Excepto os proles”, mas dominou-se sem ter plena certeza de que essa observação fosse ortodoxa. Syme, todavia, adivinhara o que ele quisera dizer.
- Os proles não são seres humanos – disse ele descuidado. – Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron, só existirão em versões da Novilíngua, não apenas tornados em alguma coisa diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão” se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar de pensar. Ortodoxia é inconsciência.

George Orwell, 1984

SP

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