terça-feira, 6 de outubro de 2009

Amália Rodrigues


Durante o cortejo fúnebre, algumas pessoas entoavam os seus fados, como se, misteriosamente, nelas tivesse encarnado. E até certo ponto era verdade porque nós vamos guardar na alma, por muito tempo, aquela cujo canto era também o nosso canto. Parecia uma solista, mas não era. Naquela garganta cantava um coro de milhões de vozes. Todos nós cantámos com ela, abalados até à raiz do coração. Amália conquistou o nosso amor ou, ao menos, o nosso respeito e admiração; o nosso e o de quantos, pelo mundo fora, a escutaram. Era universal, como universal é toda a grande arte. Transcendia a barreira das línguas, as distâncias culturais. O seu canto soava a puro canto. Quase podíamos prescindir das palavras. Bastava a melodia, o calor vibrante da voz, a sua tremenda força expressiva para a entendermos. Digo tremenda porque verdadeiramente nos fazia tremer de emoção e prazer estético.
Nunca ouvi cantar Amália ao vivo. Nunca a vi senão em fotografia ou na televisão, como a maior parte dos portugueses. E, no entanto, era-nos íntima. Fazia parte de todas as famílias. O seu modo de ser aproximava-a do povo comum. Tinha as suas raízes na província, como quase todos nós. A infância foi difícil, mas desde muito jovem começou a subir aos palcos da glória, como muitos de nós sonhamos. Gostava de dizer que não tinha instrução, que não sabia cantar, que não era culta nem inteligente, que pertencia, enfim, a um povo que lavava no rio, que vendia fruta ou flores ou peixe no mercado, que matava a fome com um punhado de tremoços; um povo que, na sua maioria, não teve oportunidade de estudar e por isso não pôde aceder ao estatuto próprio dos letrados. E, no entanto, sabia responder com prontidão e viveza, umas vezes com humor, outras com subtil e certeiríssima ironia, mesmo aos mais cultos, aos mais poderosos, os quais acabaram, estou em crer que sem hipocrisia ou oportunismo, por ir beijar-lhe a mão.
Deixou a imagem de mulher compassiva e solidária, que se comove com o sofrimento dos outros e acorre às suas necessidades; mulher sofrida que desabafa a dor e a saudade, que enfrenta o destino adverso, as penas do amor e os tormentos da morte; uma mulher que pretende, mais que riqueza ou glória, o afecto de quem a ouve; que canta de rosto erguido, como quem afirma a dignidade do ser humano, mesmo do mais desgraçado; que canta de olhos fechados pela força do sentimento ou intensidade da prece.
O canto de Amália parecia, muitas vezes, senão sempre, uma oração. E era, com certeza. Não foi por acaso que, de acordo com a sua vontade, se ouviu dentro da Basílica da Estrela, um fado seu, na hora da despedida. Quis significar a dimensão religiosa de toda a sua arte. Quis falar com Deus, no momento supremo, com a sua melhor e mais intensa linguagem. Quis aparecer, cantando, na presença de Deus, como que restituindo ao Criador o dom maravilhoso que Ele lhe dera, reconhecendo, num gesto de humildade e suprema lucidez, que a beleza do seu canto era um reflexo da beleza divina. Toda a grande criação artística é uma forma de oração, embora nem sempre os seus autores o saibam. O canto da Amália tinha a sublimidade da grande arte. Era pura manifestação de beleza.
Era uma intérprete genial, sabia como ninguém, tirar de um texto, de uma linha melódica, todas as potencialidades expressivas, num equilíbrio milagroso entre voz, palavra e melodia. Nesse género de canto lírico a que chamamos fado, Amália era, de facto, verdadeiramente genial, como Maria Callas no canto operático, ou Maria João Pires no piano.
Nos seus melhores momentos, atingia a perfeição. Tínhamos a sensação de que aquele fado só podia ser cantado como ela o cantava, com uma segurança interpretativa absoluta. Quando isso acontece, quando sentimos que qualquer outra interpretação deitaria por terra aquela construção milagrosa, é porque a obra atingiu a perfeição. Ninguém como ela sabia dominar a voz nos fortes e nos pianos, nos crescendos e diminuendos de intensidade, nos sons agudos e graves, na voz límpida e quente, que foi aveludando com os anos, nos vibratos lançados no momento exacto. Ninguém como ela sabia inventar, com inigualável bom gosto, aqueles irrepetíveis melismas – as voltinhas, como diz o povo – que lembram o canto árabe ou andaluz. Ninguém como ela sabia prender, por momentos, a voz na garganta para depois a soltar num grito comovente, como se uma angústia obscura sufocasse no peito e, de repente, voasse como um pássaro liberto na amplidão do céu. Ninguém como ela sabia suspender a melodia, por instantes, para depois a retomar no momento preciso em que devia ser retomada.
Amália tinha uma personalidade própria, um estilo inimitável. Foi um “caso”, como dizia José Régio. Tirou o fado das vielas e das tabernas e levou-o para o Olympia de Paris. Com ela, a fadista deixou de ser a mulher derramada do Malhoa e começámos a vê-la como grande senhora, majestosa e trágica, de longos vestidos negros sobre os palcos. Com ela, o fado ganhou a dignidade e o apreço que verdadeiramente merece.

Ela foi para muitos de nós a mulher com quem gostaríamos de ter namorado ou casado; a mãe ou a amiga que canta a tristeza para nos acalmar ou adormecer e permanece como referência em todas as voltas que a existência dá. Os aplausos que a aclamaram também nos envaideceram a nós porque a sua linguagem é a linguagem que falamos e que tão bem exprime essa teimosa e plangente sensibilidade que há muito tempo nos acompanha. Por isso nos despedimos dela, já lá vão dez anos, com lágrimas e lenços, como se o caixão fosse um andor. Por isso lhe demos alturas de incenso, acreditando que, lá no assento etéreo onde subiu, continua a cantar a nossa canção de exílio diante de Deus e dos seus santos, a maior plateia que um artista pode ter.

Luís da Silva Pereira

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