quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O verdadeiro amor do próximo

Mestre desconhecido holandês, 1537. O bom samaritano

O AMOR do próximo
é o amor que desce de Deus
ao homem.
É anterior ao que sobe
do homem até Deus.
Deus tem pressa de descer
até aos infelizes.

Apenas uma alma se dispõe
ao consentimento,
ainda que seja a última,
a mais miserável,
a mais disforme,
Deus precipita-se nela
para poder, através dela,
olhar, escutar
os desgraçados.
E só com o andar do tempo
a alma toma conhecimento
desta presença.
Mas embora não encontre nome
para lhe chamar,
em todo o sítio
onde os infelizes são amados
por si mesmos
Deus está presente.

Deus não está presente,
embora invocado,
onde os infelizes são simplesmente
uma ocasião de fazer o bem,
ainda que sejam amados com este título.
Porque assim
estão no seu papel natural,
no seu ofício de matéria,
de coisa.
São amados impessoalmente.
E é preciso levar-lhes,
no seu estado inerte, anónimo,
um amor pessoal.

Por isso mesmo,
expressões como
amar o próximo em Deus,
por Deus,
são expressões enganadoras
e equívocas.
Um homem precisa
de todo o seu poder de atenção
para ser capaz simplesmente de olhar
este bocado de carne inerte
e sem vestidos
à beira do caminho.

Não é ocasião
de voltar o pensamento para Deus.
Como há momentos
em que é preciso pensar em Deus
esquecendo todas as criaturas
sem excepção,
há momentos em que ao olhar as criaturas
é preciso não pensar explicitamente
no Criador.

Nestes momentos
a presença de Deus em nós
tem como condição
um segredo tão profundo
que chega a ser segredo
para nós mesmos.
Há momentos
em que pensar em Deus nos separa dele.
O pudor é condição
da união nupcial.

No amor verdadeiro, não somos nós
que amamos os infelizes em Deus,
é Deus em nós que ama os infelizes.
Quando estamos em desgraça,
é Deus em nós que ama
aqueles que nos querem bem.
A compaixão e a gratidão
descem de Deus,
e quando elas se trocam
num olhar,
Deus está presente
no ponto onde os olhares
se cruzam.
O infeliz e o outro
ama-se a partir de Deus,
através de Deus,
mas não por amor de Deus;
amam-se por amor um do outro.
Isto é qualquer coisa de impossível.
Assim, só por meio de Deus,
é possível fazer-se.

O que dá pão
a um infeliz esfomeado,
por amor de Deus,
Cristo não lho agradecerá.
Recebeu já o seu salário
só com ter este pensamento.
Cristo agradecerá
àqueles que não sabiam
a quem davam de comer.

Simone Weil, Attente de Dieu(1957)

Extraído de À Porta do Farol Faz Escuro.
Textos escolhidos traduzidos e dispostos ritmicamente por Manuel Simões
Editorial A.O. - Braga


[Silva Pereira]

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