sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Crer é razoável

Moretto de Brescia,


A fé não é o mesmo que perder a confiança na razão, ao ver os limites do nosso conhecimento; não é a entrega ao irracional, em face dos perigos de uma razão meramente instrumental. A fé não é também expressão de cansaço ou de fuga, mas sim afirmação corajosa do ser, e abertura à grandeza e complexidade da realidade. A fé é um acto de afirmação. Apoia-se na força de um novo sim que o homem se torna capaz de pronunciar em virtude da iniciativa com que Deus vai ao seu encontro.
Precisamente na situação hodierna, de aberto e vasto ressentimento contra a racionalidade da técnica, parece-me importante evidenciar a razoabilidade essencial da fé. Nem a releitura crítica, desde há tempos em curso, poderia legitimamente censurar à modernidade a confiança na razão enquanto tal, mas apenas a redução do conceito de razão, visto que esta redução é que acabou por abrir a porta às ideologias irracionais. O mistério, tal como o alcança a fé, não é o irracional, mas sim a máxima profundidade da razão divina, que nós, com a nossa fraca vista, não temos capacidade para penetrar. Sempre foram e continuam a ser afirmação fundamental da fé as palavras com que João, retomando e aprofundando a narrativa da Criação contida no Antigo Testamento, abre o seu Evangelho: “No princípio era o Logos”, a razão criadora, a energia da inteligência de Deus, que enche de significado todas as coisas. Só poderemos compreender rectamente o mistério de Cristo a partir deste início, em que a razão se manifesta também como amor.
A primeira afirmação da fé diz-nos, portanto: tudo o que existe é pensamento feito realidade. O Espírito criador é a origem e o princípio que funda todas as coisas. Tudo o que existe é, na origem, racional, porque procede da razão criadora.
Novamente nos encontramos perante a oposição fundamental entre materialismo e fé. O credo do materialismo postula que ao princípio se encontra o irracional, e que só as leis do acaso produziram a racionalidade sobre a base da irracionalidade. A razão é, pois, um subproduto da ausência de razão, e a sua estrutura, assim como as suas leis, são simplesmente resultado de combinações produizdas por uma instância alheia, privada de conteúdo ético ou estético. Assim o homem se torna um adepto da engrenagem do mundo que ele faz progredir de acordo com os seus fins. E o irracional continua a ser a autêntica potência originária.
A fé ensina exactamente o oposto: o Espírito é a origem criadora de todas as coisas, e por isso elas têm em si uma razão não derivada de si mesmas e que as ultrapassa infinitamente, embora constituindo a sua mais íntima lei. A razão criadora, que dota as coisas de uma racionalidade objectiva, de uma lógica oculta e de uma ordem intrínseca, é ao mesmo tempo razão moral e Amor.(...)
Perante a actual crise da razão, é bom que volte a brilhar claramente esta natureza essencialmente razoável da fé. A fé salva a razão, até porque a abraça em toda a sua amplitude e profundidade e a protege contra as tentativas para a reduzir àquilo que pode ser verificado experimentalmente. O mistério não se apresenta como inimigo da razão; pelo contrário, salva e defende a íntima racionalidade do ser e do homem.

Cardeal Ratzinger, A Igreja e a Nova Europa
[Silva Pereira]

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