quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Peneireiro


Esta ave, desconfio que os meus leitores não a conhecem. Talvez a confundam com o milhafre ou milhano, se olharem apenas a roupa. Como ela voa alto, maior perigo de confusão. É ave de rapina e veste uma camisola pardacenta. Nas aldeias sertanejas disputa as capoeiras com o milhano. Não que as assalte como a raposa matreira. Mas acontece que a galinha se arrisca pelo vale abaixo, pelos matos, onde a bicheza é copiosa.
E logo vos direi como caça o peneireiro. O milhafre, ao ver a galinha, despenha-se em linha recta, arpoa e some-se nas nuvens. O peneireiro, ou por guloso, ou por desconfiado, usa estratégia diferente. Deve ter lido os livros de caça do rei D. Duarte e de outros reis e monteiros e aplica as teorias que já vêm de Assurbanípal.
O peneireiro ergue-se a pino sobre brenhas e pinhais. Quase se imobiliza com um jeito trémulo de asas e daí lhe vem o nome. Fica a peneirar uma farinha que não se vê e vem a ser a sua manha de salteador com todos os preparativos. Ali fica a sacudir as asas, a travar o voo. Está a sondar os matagais, a ver onde os coelhos penduram as flanelas, onde a fuinha mexerica, onde os passarinhos rasteiros têm o ninho. E escolhe a presa consoante o apetite e o capricho. Feita a escolha, desaba como um raio e a vítima nem tempo tem de soltar o ai dos infelizes. Não ameaça, não amedronta, parece mesmo que anda de gorra com os geógrafos de teodolito a fazer o levantamento das terras. Os bichos curiosos de o verem parado em pleno ar põem-se a espreitar. É o que ele quer. Parece mesmo dizer lá de cima: - venham ver esta prova de saltimbanco, venham que eu já vos dou o arroz!
O resultado destas artes é que anda sempre bem almoçado. Se a galinha se arrisca pelo vale adiante, o maroto não peneira muito os ares. Escolhe o pintainho mais gordote e leva-o no bico com amofinamento da galinha que olha os vastos céus inacessíveis.
Digam-me agora se não há homens com psicologia de peneireiros! Andamos todos, uns mais que os outros, atarefados na brenha social. Erguemos, de quando em vez, os olhos ao céu e lá vemos um peneireiro a escolher a vítima. Peneira os ares tão docemente, parece tão inofensivo que a vítima até lhe entra no jogo, até o louva e celebra. Às vezes por sobre a vida individual de cada um de nós ouvimos o ruflar do peneireiro, do explorador, do manhoso de maus fígados, escondido em jeitos de acrobata para nos divertir antes da guinada mortal. Do milhafre todos se acautelam. E a não se conhecer o bandido, as culpas são sempre para o milhano.
O peneireiro só quer observar, divertir os tristes. Nos adjuntos humanos há uma categoria de peneireiro de uma esperteza fugidiça ao olho dos psicólogos. São os que querem que outros tirem as castanhas do lume. Tendes aí um júri, vá por exemplo, reunido para deliberação. O peneireiro ergue voo e fica a planear sobre os alvitres. – A si que lhe parece? – Eu, diz o peneireiro, parece-me que nem sim nem não, antes pelo contrário! Vêem-no? Está a planar. Surge um parecer bem escorado em razões, bem raciocinado, ao qual se não pode escapar. O peneireiro desaba em vertical, arpoa o parecer e fá-lo dele. Os jornais da tarde noticiam que foi ele que teve a ideia!
No Congresso de Viena de 1815, o peneireiro era Talleyrand, não obstante a perna manca ou talvez por isso. E desde então, por sobre as sessões conjuntas de ministros, por sobre os areópagos internacionais, por sobre os céus que recobrem a O.N.U., plana sempre um peneireiro a ver qual é o frango mais desamparado.
É claro que o peneireiro está sentado entre as casacas pretas, cá em baixo, mas o seu espírito paira lá em cima e peneira razões e alvitres à espera do momento oportuno. A psicologia do peneireiro infiltrou-se nos políticos de segundas intenções, que têm mãos de Esaú e voz de Jacob; e querer compreender a política de hoje sem conhecer o peneireiro é querer remover o Himalaia com o palito dos dentes.
Por conselho caseiro dizemos que é bom vistoriar os céus de tempos a tempos. Não pedimos dinheiro pelo conselho, mas se uma chumbada prostrar o peneireiro, cozam-no com arroz e ponham lá mais um garfo na mesa. Não falto.

João Maia, O Livro dos Animais
SP

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