segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Homossexualidade e adopção

Yves Klein, Antropometria

O neologismo “parentalidade” – funcionalista e gerador de confusão – tem por ofício disfarçar as implicações, necessariamente sexuadas, ligadas a este termo. Enquanto “parental” pode ser entendido numa pseudoneutralidade, “pais” significa “pai” e “mãe”, implicando necessariamente um homem e uma mulher, a menos que o sentido das palavras da língua venha a diluir-se totalmente. Mesmo que se tenha em conta a importância das mediações simbólicas e racionais, a fundamentação corporal da paternidade num corpo masculino e da maternidade num corpo feminino é um dado irredutível e estruturante.
Ouvimos, por vezes, dizer que se a criança tem necessidade de duas (ou várias) referências identificadoras diferenciadas, estas podem ser exteriores ao núcleo familiar. Sem dúvida; mas tomar por secundário o facto de esses dois modelos serem, ou não, os seres pelos quais a criança está em relação com a sua origem, é uma abordagem bastante superficial. Que situações diferentes, na sequência dos percalços da vida, aconteçam e devam ser acompanhadas é uma coisa; que esta privação seja instituída, à escala colectiva e a priori, para milhares de crianças, é outra, e é moralmente inaceitável.
À ideologia “homoparental” preside uma lógica de dissociação entre parentalidade e paternidade, portanto, mas também entre sexualidade e filiação, entre casal e procriação e até entre procriação e filiação(...). É preciso ver que a cada um dessas dissociações corresponde uma descontinuidade na história da criança. No caso da adopção, à separação entre pais naturais e pais adoptivos – o que já é uma dificuldade – vem juntar-se o facto de o casal dos segundos não ser análogo ao casal dos primeiros. No entanto, esta analogia tem um valor preciso para o filho: os pais adoptivos são incarnados, são carnais. Eles são, carnalmente, pai e mãe. E é importante que o sejam. Na falta deles, à descontinuidade da adopção vem juntar-se, para o filho, a da distorção das referências parentais.

Xavier Lacroix, A Confusão dos Géneros
SP

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Destruição da palavra


- Como vai o dicionário? – perguntou Winston, levantando a voz para se fazer ouvir.
- Devagar – respondeu Syme. – Estou nos adjectivos. É fascinante.
O rosto iluminara-se-lhe imediatamente com a menção da Novilíngua. Empurrou a marmita para o lado, apanhou com as mãos delicadas o cubo de queijo e o pedaço de pão, e inclinou-se sobre a mesa para poder falar sem gritar.
- A 11ª edição será definitiva – disse ele. – Estamos a dar à língua a sua forma final – a forma que terá quando mais ninguém falar outra coisa. Quando tivermos terminado, pessoas como tu terão de aprendê-la de novo. Tenho a impressão de que imaginas que o nosso trabalho consiste principalmente em inventar novas palavras. Nada disso! Estamos é a destruir palavras – às dezenas, às centenas, todos os dias. Estamos a reduzir a língua à expressão mais simples. A 11ª edição não conterá uma única palavra que possa tornar-se obsoleta antes de 2050.
Mordeu vorazmente o pão e engoliu dois bocados. Depois continuou a falar, com uma espécie de paixão pedante. O rosto magro e moreno animara-se, os olhos haviam perdido a expressão de chacota e tinham-se tornado quase sonhadores.
- É lindo destruir palavras. Naturalmente a maior parte é nos verbos e adjectivos, mas há centenas de substantivos que podem perfeitamente ser eliminados. Não apenas os sinónimos; os antónimos também. Afinal de contas, que justificação há para a existência de uma palavra que é apenas o contrário de outra? Cada palavra contém em si o contrário. “Bom”, por exemplo. Se temos a palavra “bom” para que precisamos de “mau”? “Inbom” faz o mesmo efeito – e melhor, porque é exactamente oposta, enquanto que mau não é. Ou ainda, se queres uma palavra mais incisiva para dizer “bom”, para que dispor de toda uma série de vagas e inúteis palavras como “excelente”, “esplêndido”, etc. e tal? “Plusbom” corresponde à necessidade, ou “dupliplusbom”, se queres alguma coisa ainda mais forte. Naturalmente já usamos essas formas, mas na versão final da Novilíngua não haverá outras. No fim, todo o conceito de bondade e maldade será descrito por seis palavras – ou melhor, uma única. Não vês que beleza, Winston? Naturalmente foi ideia do Grande Irmão – acrescentou à guisa de conclusão.
Uma ténue ansiedade perpassou pelo rosto de Winston à menção do Grande Irmão. Não obstante isso, Syme imediatamente observou nele uma certa falta de entusiasmo.
- Não aprecias realmente a Novilíngua, Winston – disse, quase com tristeza. – Mesmo quando escreves em Novilíngua pensas na antiga. Tenho lido artigos teus no Times. São bons, mas são traduções. No teu coração havias de preferir a Anticlíngua, com toda a sua imprecisão e as suas inúteis gradações de sentido. Não percebes a beleza que é destruir palavras. Sabes que a Novilíngua é o único idioma do Mundo cujo vocabulário se reduz de ano para ano?
Winston naturalmente não sabia. Sorriu, com ar de simpatia (ao que esperava), não confiando nas suas próprias palavras. Syme mordiscou outro fragmento do pão escuro, mastigou-o um pouco e continuou:
- Não vês que todo o objectivo da Novilíngua é estreitar a gama do pensamento? No fim, tornaremos o crimideia literalmente impossível, porque não haverá palavras para o expressar. Todos os conceitos necessários serão expressos exactamente por uma palavra de sentido rigidamente definido, e cada significado subsidiário eliminado, esquecido. Na 11ª edição já não estamos longe disso. Mas o processo continuará ainda muito tempo depois de estarmos mortos. Cada ano menos e menos palavras, e a gama da consciência sempre um pouco menos. Naturalmente, mesmo no nosso tempo, não há motivo nem desculpa para cometer um crimideia. É apenas uma questão de disciplina, contrôle da realidade. Mas no futuro nem sequer será preciso isso. A Revolução completar-se-á quando a língua for perfeita. Novilíngua é Ingsoc e Ingsoc é Novilíngua –acrescentou com uma espécie de satisfação mística. – Nunca te ocorreu, Winston, que por volta do ano 2050, o mais tardar, não viverá um único ser humano capaz de compreender esta nossa palestra?
- Excepto... – começou Winston, em tom de dúvida, mas parou de repente.
Estivera quase a dizer “Excepto os proles”, mas dominou-se sem ter plena certeza de que essa observação fosse ortodoxa. Syme, todavia, adivinhara o que ele quisera dizer.
- Os proles não são seres humanos – disse ele descuidado. – Por volta de 2050, ou talvez mais cedo, todo o verdadeiro conhecimento da Anticlíngua terá desaparecido. A literatura do passado terá sido destruída inteirinha. Chaucer, Shakespeare, Milton, Byron, só existirão em versões da Novilíngua, não apenas tornados em alguma coisa diferente, como transformados em obras contraditórias do que eram. Até a literatura do Partido mudará. Mudarão as palavras de ordem. Como será possível dizer “liberdade é escravidão” se for abolido o conceito de liberdade? Todo o mecanismo do pensamento será diferente. Com efeito, não haverá pensamento como hoje o entendemos. Ortodoxia quer dizer não pensar... não precisar de pensar. Ortodoxia é inconsciência.

George Orwell, 1984

SP

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Amália Rodrigues


Durante o cortejo fúnebre, algumas pessoas entoavam os seus fados, como se, misteriosamente, nelas tivesse encarnado. E até certo ponto era verdade porque nós vamos guardar na alma, por muito tempo, aquela cujo canto era também o nosso canto. Parecia uma solista, mas não era. Naquela garganta cantava um coro de milhões de vozes. Todos nós cantámos com ela, abalados até à raiz do coração. Amália conquistou o nosso amor ou, ao menos, o nosso respeito e admiração; o nosso e o de quantos, pelo mundo fora, a escutaram. Era universal, como universal é toda a grande arte. Transcendia a barreira das línguas, as distâncias culturais. O seu canto soava a puro canto. Quase podíamos prescindir das palavras. Bastava a melodia, o calor vibrante da voz, a sua tremenda força expressiva para a entendermos. Digo tremenda porque verdadeiramente nos fazia tremer de emoção e prazer estético.
Nunca ouvi cantar Amália ao vivo. Nunca a vi senão em fotografia ou na televisão, como a maior parte dos portugueses. E, no entanto, era-nos íntima. Fazia parte de todas as famílias. O seu modo de ser aproximava-a do povo comum. Tinha as suas raízes na província, como quase todos nós. A infância foi difícil, mas desde muito jovem começou a subir aos palcos da glória, como muitos de nós sonhamos. Gostava de dizer que não tinha instrução, que não sabia cantar, que não era culta nem inteligente, que pertencia, enfim, a um povo que lavava no rio, que vendia fruta ou flores ou peixe no mercado, que matava a fome com um punhado de tremoços; um povo que, na sua maioria, não teve oportunidade de estudar e por isso não pôde aceder ao estatuto próprio dos letrados. E, no entanto, sabia responder com prontidão e viveza, umas vezes com humor, outras com subtil e certeiríssima ironia, mesmo aos mais cultos, aos mais poderosos, os quais acabaram, estou em crer que sem hipocrisia ou oportunismo, por ir beijar-lhe a mão.
Deixou a imagem de mulher compassiva e solidária, que se comove com o sofrimento dos outros e acorre às suas necessidades; mulher sofrida que desabafa a dor e a saudade, que enfrenta o destino adverso, as penas do amor e os tormentos da morte; uma mulher que pretende, mais que riqueza ou glória, o afecto de quem a ouve; que canta de rosto erguido, como quem afirma a dignidade do ser humano, mesmo do mais desgraçado; que canta de olhos fechados pela força do sentimento ou intensidade da prece.
O canto de Amália parecia, muitas vezes, senão sempre, uma oração. E era, com certeza. Não foi por acaso que, de acordo com a sua vontade, se ouviu dentro da Basílica da Estrela, um fado seu, na hora da despedida. Quis significar a dimensão religiosa de toda a sua arte. Quis falar com Deus, no momento supremo, com a sua melhor e mais intensa linguagem. Quis aparecer, cantando, na presença de Deus, como que restituindo ao Criador o dom maravilhoso que Ele lhe dera, reconhecendo, num gesto de humildade e suprema lucidez, que a beleza do seu canto era um reflexo da beleza divina. Toda a grande criação artística é uma forma de oração, embora nem sempre os seus autores o saibam. O canto da Amália tinha a sublimidade da grande arte. Era pura manifestação de beleza.
Era uma intérprete genial, sabia como ninguém, tirar de um texto, de uma linha melódica, todas as potencialidades expressivas, num equilíbrio milagroso entre voz, palavra e melodia. Nesse género de canto lírico a que chamamos fado, Amália era, de facto, verdadeiramente genial, como Maria Callas no canto operático, ou Maria João Pires no piano.
Nos seus melhores momentos, atingia a perfeição. Tínhamos a sensação de que aquele fado só podia ser cantado como ela o cantava, com uma segurança interpretativa absoluta. Quando isso acontece, quando sentimos que qualquer outra interpretação deitaria por terra aquela construção milagrosa, é porque a obra atingiu a perfeição. Ninguém como ela sabia dominar a voz nos fortes e nos pianos, nos crescendos e diminuendos de intensidade, nos sons agudos e graves, na voz límpida e quente, que foi aveludando com os anos, nos vibratos lançados no momento exacto. Ninguém como ela sabia inventar, com inigualável bom gosto, aqueles irrepetíveis melismas – as voltinhas, como diz o povo – que lembram o canto árabe ou andaluz. Ninguém como ela sabia prender, por momentos, a voz na garganta para depois a soltar num grito comovente, como se uma angústia obscura sufocasse no peito e, de repente, voasse como um pássaro liberto na amplidão do céu. Ninguém como ela sabia suspender a melodia, por instantes, para depois a retomar no momento preciso em que devia ser retomada.
Amália tinha uma personalidade própria, um estilo inimitável. Foi um “caso”, como dizia José Régio. Tirou o fado das vielas e das tabernas e levou-o para o Olympia de Paris. Com ela, a fadista deixou de ser a mulher derramada do Malhoa e começámos a vê-la como grande senhora, majestosa e trágica, de longos vestidos negros sobre os palcos. Com ela, o fado ganhou a dignidade e o apreço que verdadeiramente merece.

Ela foi para muitos de nós a mulher com quem gostaríamos de ter namorado ou casado; a mãe ou a amiga que canta a tristeza para nos acalmar ou adormecer e permanece como referência em todas as voltas que a existência dá. Os aplausos que a aclamaram também nos envaideceram a nós porque a sua linguagem é a linguagem que falamos e que tão bem exprime essa teimosa e plangente sensibilidade que há muito tempo nos acompanha. Por isso nos despedimos dela, já lá vão dez anos, com lágrimas e lenços, como se o caixão fosse um andor. Por isso lhe demos alturas de incenso, acreditando que, lá no assento etéreo onde subiu, continua a cantar a nossa canção de exílio diante de Deus e dos seus santos, a maior plateia que um artista pode ter.

Luís da Silva Pereira

domingo, 27 de setembro de 2009

PORTUGAL



Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!

*

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.

Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...

Alexandre O’Neill, Feira Cabisbaixa


SP

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Evolução e Fé Religiosa


Qual foi o impacto inicial da teoria da evolução na religião?

Para se compreender o impacto da teoria da evolução na religião, mais concretamente no cristianismo, é preciso ter em conta que no tempo de Darwin os três primeiros capítulos do Livro do Génesis, onde se narra a criação por Deus, em seis dias, do universo, da Terra, de Adão e Eva e de todas as espécies vivas eram interpretados literalmente. A ideia de que a humanidade actual é o resultado de uma lenta evolução dos mamíferos em geral e dos primatas em particular parecia falsificar o relato bíblico. Hoje, porém, o cristianismo interpreta aqueles capítulos do Génesis em sentido sapiencial ou poético e não científico, o que permite aos cristãos aceitar a teoria da evolução. Há porém alguns cristãos, chamados criacionistas, que não aceitam a teoria da evolução e continuam a interpretar o Livro do Génesis literalmente.


Pode-se defender a teoria da evolução e ao mesmo tempo acreditar na existência de Deus?

NÃO, dizem alguns cientistas não crentes. Para Richard Dawkins, por exemplo, a selecção natural é a única solução para o problema da improbabilidade de certos fenómenos naturais, como a vida. Porquê? Porque a selecção natural é um processo cumulativo de pequenos eventos improváveis, de onde gradualmente se passa dos organismos mais simples, até aos improvavelmente mais complexos, tornando a ideia de um projectista inteligente, Deus, uma ilusão
NÃO, dizem os criacionistas, cristãos fundamentalistas. Embora haja diversas versões do criacionismo, a maior parte dos autores que defendem esta corrente afirmam que a criação de todas as espécies se verificou tal como vem narrado no Livro do Génesis, e que a Terra tem cerca de seis mil anos de existência. Esta posição contradiz os dados científicos, resulta de uma inadequada interpretação da Bíblia e não é aceite pela Igreja Católica nem por muitas das Igrejas Protestantes.
SIM, embora não completamente, afirmam os defensores do desígnio (ou projecto) inteligente. A sua posição é porém muito criticada. Para estes autores, a “complexidade irredutível” em sistemas bioquímicos mostra que não podem ter sido o produto de uma evolução gradual, tal como exige a teoria da evolução de Darwin. Tal desígnio sugere uma realização inteligente por uma entidade igualmente inteligente à qual as religiões chamam Deus. Este desígnio pode observar-se, segundo estes autores, em estruturas biológicas tão complexas, como por exemplo o olho humano, que não poderiam ter surgido por simples selecção natural mas, pelo contrário, têm a sua origem na intervenção de uma entidade inteligente. Esta posição não é aceitável pela Igreja Católica, porque para os católicos Deus é o criador de tudo, não apenas das estruturas biológicas complexas, as quais se podem explicar pelas leis naturais.
SIM, diz o teólogo católico americano John Haught, segundo o qual: «Enquanto [o universo] se adapta a um infinito amor que se dá a si mesmo e promessa de um futuro novo, o cosmos finito submete-se ao que nos parece ser a dramática evolução em direcção a um aumento de complexidade, vida, consciência, liberdade e expansão de beleza. ...A fé num Deus humilde, Deus da promessa e que se dá a Si mesmo, deveria ter-nos preparado para a revolução de Darwin”. O nexo natural, causal e criativo dos eventos é, em si mesmo, a acção criativa de Deus. Os processos de evolução por acaso e selecção natural são inerentemente criativos. Neste quadro, Deus cria ainda, continuamente, "na" e "através" da matéria do mundo, dotada em si mesma de potencialidades evolutivas. Uma imagem desta posição é pensar em Deus como um compositor e a evolução a sua música, caracterizada por uma complexa beleza.
Esta é também a posição oficial da Igreja Católica, manifestada sobretudo pelos Papas João Paulo II e Bento XVI.


(SP)


terça-feira, 15 de setembro de 2009

Religião, Vida Pública e Desenvolvimento

Rafael, S.Paulo pregando em Atenas, 1515


A religião cristã e as outras religiões só podem dar o seu contributo para o desenvolvimento, se Deus encontrar lugar também na esfera pública, nomeadamente nas dimensões cultural, social, económica e particularmente política. A doutrina social da Igreja nasceu para reivindicar este “estatuto de cidadania” da religião cristã. A negação do direito de professar publicamente a própria religião e de fazer com que as verdades da fé moldem a vida pública, acarreta consequências negativas para o verdadeiro desenvolvimento. A exclusão da religião do âmbito público e, na vertente oposta, o fundamentalismo religioso, impedem o encontro entre as pessoas e a sua colaboração para o progresso da humanidade. A vida pública torna-se pobre de motivações, e a política assume um rosto oprimente e agressivo. Os direitos humanos correm o risco de não ser respeitados, ou porque ficam privados do seu fundamento transcendente ou porque não é reconhecida a liberdade pessoal. No laicismo e no fundamentalismo, perde-se a possibilidade de um diálogo fecundo e de uma profícua colaboração entre a razão e a fé religiosa. A razão tem sempre necessidade de ser purificada pela fé; e isto vale também para a razão política, que não se deve crer omnipotente. Por sua vez, a religião precisa sempre de ser purificada pela razão, para mostrar o seu autêntico rosto humano. A ruptura deste diálogo implica um custo muito gravoso para o desenvolvimento da humanidade.

Bento XVI, A Caridade na Verdade (§56)

[SP]

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Evolucionismo/Criacionismo:diferenças e convergências

Mestre Bertram, Criação dos Animais, 1383

Evolucionismo

Segundo o evolucionismo, todas as espécies (incluindo a humana) provêm umas das outras e, remotamente, de um ou poucos seres vivos iniciais. Evolucionismo opõe-se, assim, ao fixismo, segundo o qual cada espécie foi criada separadamente e mantém sempre as suas características fundamentais.
Há vários tipos de teorias evolucionistas. Charles R. Darwin(1809-1882) defendeu a teoria da selecção natural e da sobrevivência do mais forte na luta pela vida. As formas actuais seriam fruto dessa selecção natural.
O naturalista francês Lamarck (1744-1829) também estabeleceu várias leis da evolução.baseadas sobretudo na adaptabilidade dos seres vivos pelo uso e não uso dos órgãos e na hereditariedade dos caracteres adquiridos.
Com o surgir e desenvolvimento da genética molecular, fizeram-se estudos tendentes a indicar que a acumulação, ao longo do tempo, de mutações ocorridas nos vários seres vivos poderia constituir a causa do surgir de novas espécies. Estabeleciam-se, assim, as chamadas árvores filogenéticas ao longo dos tempos geológicos.
Além das alterações que Darwin foi fazendo à sua teoria, surgiram posteriormente várias correntes neo-darwinistas, e a partir das primeiras décadas do séc. XX, a simbiogénese. Segundo esta teoria, a evolução não se processou em forma de árvore que se vai ramificando lentamente, ao longo do tempo, através de alterações do material genético, mas em forma de rede que se estabelece pela transferência de genes de umas espécies para outras, entre as que vivem no mesmo tempo.

Criacionismo

Este termo pode ter mais que uma leitura. Basicamente refere-se à criação dos seres vivos por Deus. No passado, leu-se o Génesis no sentido literal e, portanto, numa visão fixista. Nesse sentido, o criacionismo era anti-evolucionista. Esta posição antiga, de algum modo regressou recentemente com grande vigor, sobretudo a partir dos E.U.A., simultaneamente com o “intelligent design”.
É demasiado claro, porém, que o Génesis não é um livro histórico, mas etiológico. Por isso, na actual posição da Igreja, o criacionismo evolutivo é o mais seguido.
É possível distinguir, em cada ser, entre a sua essência e aquele dinamismo existencial que causa a sua própria evolução, e identificar este último com a acção criadora de Deus.
Em toda a sua pureza, o conceito metafísico de criação exprime-se pela total e radical dependência de Deus por parte de todo o existente. Segundo o teólogo Karl Rahner, a acção criadora de Deus faz então parte do dinamismo existencial de cada ser, ainda que não da sua essência (o que seria panteísmo).
Nesse sentido, podemos dizer que é esse ser que cria, num processo em que causa aquilo que é mais do que a sua própria essência, e portanto se auto-supera a si próprio. Mas porque esse seu dinamismo existencial é acção de Deus, é Deus quem primariamente cria.
Terá sido o próprio símio que evoluiu para o homem total (corpo e alma), porque a acção trascendental de Deus, que impulsionou esse evoluir, faz parte do dinamismo existencial do próprio animal, ainda que sem se confundir com a sua essência.

Convergência entre ambos

Nesta perspectiva, interpretar o surgir da vida em termos de evolução química da matéria não corresponde, de modo nenhum, a enfraquecer ou eliminar a acção criadora de Deus, mas só a purificá-la do ressaibo miraculoso duma intervenção inesperada por parte da matéria, e a torná-la, em toda a linha das suas consequências, verdadeiramente imanente, enquanto presença existencial criadora.
Para fazer valer a imagem genuína de Deus não é necessário nem acertado mitificar a evolução físico-química com um momento de milagre em que as forças naturais desfalecem e, no meio da sua inacção, surja palpável a acção de Deus. Ele situa-se e radica-se no universo de um modo mais profundo, ainda que talvez menos espectacular. É em Deus que vivemos, nos movemos e existimos, e só quando não objectivamos reflexamente esta imanência, exigimos um deus demiurgo que venha visitar miraculosamente a nossa impotência.
É interessante que, quando Edward O. Wilson intenta dissolver o fenómeno religioso nos seus parâmetros sócio-biológicos, menciona a dado passo o tipo de teologia que temos estado a apontar, a que chama “process theology”, e reconhece que ela torna ciência e religião intrinsecamente compatíveis. Mas acrescenta que isto nada tem a ver com a verdadeira religião das danças aborígenes ou com o Concílio de Trento[1].
É evidente que esta teologia tem pouco a ver com crenças aborígenes, nem poderia ser expressa no contexto cultural do Concílio de Trento. Mas pertence hoje a uma teologia altamente respeitada nas Igrejas Cristãs, e que parece corresponder às perspectivas dos Papas. De facto, João Paulo II, numa mensagem em que estimula os teólogos a assimilar as modernas teorias científicas para com elas nos fornecerem (como Tomás de Aquino) novas expressões da doutrina teológica, diz exemplificando: “A perspectiva evolucionista não poderá projectar alguma luz sobre a antropologia teológica, o significado da pessoa humana como imagem de Deus, o problema da Cristologia e até mesmo sobre a evolução doutrinal?”[2]

P. Luís Archer
Prémio Nacional de Bioética 2008.
[SP]


[1] Edward O. Wilson, On Human Nature, Harvard University Press, Cambridge, Mass., U.S.A., 1987, pp.171-172.
[2] João Paulo II, Mensagem ao Director do Observatório Astronómico do Vaticano, 1 de Junho de 1988.

domingo, 6 de setembro de 2009

EDUCAÇÃO:FORMAÇÃO COMPLETA DA PESSOA




Uma solidariedade mais ampla a nível internacional exprime-se, antes de mais nada, continuando a promover, mesmo em condições de crise económica, maior acesso à educação, já que esta é condição essencial para a eficácia da própria cooperação internacional. Com o termo “educação” não se pretende referir apenas a instrução escolar ou a formação para o trabalho – ambas causas importantes de desenvolvimento – mas a formação completa da pessoa. A este propósito, deve-se sublinhar um aspecto do problema: para educar, é preciso saber quem é a pessoa humana, conhecer a sua natureza. A progressiva difusão de uma visão relativista desta coloca sérios problemas à educação, sobretudo à educação moral, prejudicando a sua extensão a nível universal. Cedendo a tal relativismo, ficam todos mais pobres, com consequências negativas também sobre a eficácia da ajuda às populações mais carecidas, que não têm necessidade apenas de meios económicos ou técnicos, mas também de métodos e meios pedagógicos que ajudem as pessoas a chegar à sua plena realização humana.

Bento XVI, A Caridade na Verdade(§61)

(SP)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O ÊXODO MACIÇO DE EUROPEUS PARA PORTUGAL

Refugiados judeus chegam a Santa Apolónia

Desde o ano de 1935 que se verifica o primeiro êxodo de populações alemãs com destino aos Estados Unidos e a alguns países da América do Sul. Temendo os dias de holocausto da política hitleriana, algumas dezenas de famílias, muitas delas de crença judaica, abandonaram o centro da Europa em busca de eldorados de trabalho e de segurança. Gente de recursos na sua grande maioria, eram médicos, professores, banqueiros e cientistas que, atraídos pelos laços do sangue ou da amizade, pretendiam fugir aos horrores de uma guerra iminente. Com a anexação da República da Áustria, desaparecida por completo a esperança da paz, uma nova vaga de refugiados buscou os caminhos do exílio, não sendo de esquecer as centenas de crianças austríacas que, ao tempo, graças ao apoio da Caritas, encontraram lares benfazejos em Portugal.
Mas foi com a invasão a Polónia e a consequente declaração de guerra da França e da Inglaterra, que se produziu um êxodo maior de alemães desafectos ao Reich, assim como de checos, polacos e húngaros que sentiam as suas vidas em grave perigo. Com a chegada a Portugal de grande número de refugiados, a maior parte em condições de extrema penúria, o nosso Ministério dos Estrangeiros viu-se forçado a medidas de emergência para os acolher.(...)
A dramática situação criada à Europa pelas tropas germânicas e soviéticas, levou à aprovação de um novo regulamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dada a iminência de uma chegada maciça de expatriados europeus a Portugal. Assim, foi determinado que os nosso cônsules eram autorizados a conceder vistos gratuitos em duas condições: a) nos passaportes de estrangeiros nacionais de países que usassem de igual prática em passaportes portugueses; b) no passaportes individuais ou colectivos, ou nos documentos comprovativos dos mesmos, de estrangeiros em trânsito pelo território português, quando circunstâncias especiais assim o aconselhassem. O artigo 2º do referido decreto-lei determinava que a concessão e o prazo de validade dos vistos seriam regulados por instruções próprias já transmitidas às nossas autoridades consulares.
Foi ao abrigo desta determinação que vários cidadãos estrangeiros, muitos deles espanhóis, alemães, franceses e outros que viviam em Portugal ou haviam chegado na leva de 1940, tiveram a sorte de obter naturalização portuguesa. Mas o chamado “grande êxodo” não veio a demorar quando da súbita invasão dos Países Baixos, da Bélgica e da França, em Maio de 1940, pelas tropas germânicas. Dezenas de milhar de refugiados não tardaram a chegar à fronteira portuguesa, utilizando os meios possíveis por via aérea ou ferroviária, quando não atravessando a Espanha ao vaivém da sorte. Muitos desses infelizes queriam apenas fazer de Lisboa um porto de embarque para as três Américas, enquanto outros, com menos recursos, tudo fizeram para se fixar no país que gostariam de tomar como adoptivo. Esse número desceu, entretanto, para a média de duas mil entradas mensais, voltando a subir em Janeiro de 1942, com vagas de judeus que se foram instalando com o apoio dos comités judaicos residentes em Portugal.Avaliam-se os dramas humanos que estiveram na origem da fixação de tantos refugiados no nosso país. Na sua grande maioria eram franceses, alemães, polacos e austríacos, quase todos alojados em centros de turismo, como Costa da Caparica, Paço de Arcos, Praia das Maçãs, Curia, Figueira da Foz, Caldas da Rainha e Ericeira. As influências que os estrangeiros exerceram nas formas de pensar e de viver da sociedade portuguesa do tempo revestem-se de especial significado para a história das mentalidades no tempo da Segunda Guerra Mundial. Tenha-se sobretudo em conta que o Governo facilitou a vida dos refugiado em múltiplas formas de protecção, mas sem esquecer que a população teve igualmente um papel relevante no carinho social em que os envolveu.
A história recente tem procurado realçar a acção do Dr. Aristides de Sousa Mendes, cônsul de 1ª classe, e que, em 1940, estava à frente do consulado em Bordéus. Após a entrada dos alemães em Paris, o cônsul passou vistos a uns 30 mil refugiados, não apenas judeus, mas naturais de países então ocupados pelos alemães, o que lhes permitiu entrar legalmente em Portugal. Foi condoído da situação dos foragidos, que somente com essa autorização podiam deixar a França, que o nosso cônsul em Bordéus agiu na grave emergência. A decisão do Dr. Aristides de Sousa Mendes contrariava, porém, as instruções vindas do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que haviam regulado, pela circular de 14 de Outubro do ano anterior, as condições em que o visto consular podia ser emitido. O seu gesto, por mais benemerente que fosse, infringia regras estabelecidas, o que teve por consequência que o cônsul fosse colocado na situação de disponibilidade, por conveniência de serviço.
Sujeito a processo disciplinar que o afastou da carreira diplomática, o Dr. Sousa Mendes seria, no nosso tempo, objecto de grandes homenagens, mormente das comunidades judaicas. Não nos foi possível examinar o processo que levou à sua aposentação compulsiva, pelo que se torna difícil emitir um juízo seguro acerca do seu afastamento. Para muitos críticos, seria apenas uma vingança pessoal do Doutor Oliveira Salazar, mas sem darem qualquer prova de tal aversão. Tratou-se sobretudo, ao nível do Ministério dos Estrangeiros, de um caso de não acatamento, por parte do Dr. Aristides de Sousa Mendes, das instruções recebidas. Pode realçar-se em seu abono que o nosso cônsul em Bordéus colocou a generosidade do coração acima das directivas oficiais que se lhe impunha cumprir.
Em defesa do Chefe do Governo, um dos seus biógrafos teceu o seguinte juízo: “Salazar nenhum destes refugiados entregou aos países de onde eram provenientes, pelo que foi assim um salvador ‘passivo’ desses 35.000 portadores do visto que Sousa Mendes assinou e a quem permitiu a fuga!”. Não reconhecer que o Presidente do Conselho facilitou a entrada dessas vítimas da conflagração constitui uma forma de miopia política contrária à realidade dos factos. Portugal tornou-se assim um verdadeiro asilo dos que se aproximavam das suas fronteiras e não viram negada a pretensão de um asilo para as suas dores e sofrimentos. Quem se recorda ainda da protecção oficial que o Governo concedeu aos foragidos pode dar testemunho de que o regime português salvou então a vida a milhares de europeus. A comunidade judaica que residia em Portugal, com realce para o Doutor Mosés Amzalak, jamais negou ao Presidente do Conselho essa homenagem.

Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal[1935-1941], pp.393-396.

SP

domingo, 30 de agosto de 2009

A Igreja de Roma e a Guerra



No Verão de 1939, a Europa percorreu o último trecho do caminho que a levou a precipitar-se no abismo da guerra. Um abismo que, apenas vinte anos após a primeira catástrofe bélica mundial, se abriu com uma série de horrores inimagináveis. Do desmembramento da Polónia, depois do pacto, com muita frequência esquecido, entre a Alemanha nazista e a Rússia soviética, teve de facto início o incêndio que fez arder grande parte do velho continente, a bacia mediterrânea e a imensa área do Pacífico; com o monstruoso extermínio do povo judeu, destruições sem precedentes de civis e de muitas cidades do velho continente, até ao epílogo nuclear, carregado de novos pesadelos que, com a destruição de Hiroshima e Nagasaki, pôs fim ao conflito desencadeado pelo Japão e, deste modo, aos seis anos da guerra mais sangrenta que a terra viu.
A lição da primeira guerra mundial de nada serviu. Aliás, dela surgiu uma sucessão de injustiças e, sobretudo, a afirmação dos totalitarismos soviético, fascista, nazista, que levaram a Europa e grande parte do mundo a sofrer males indizíveis. Face à guerra, a Igreja de Roma não abandonou aquelas fronteiras da paz que fadigosamente tinha iniciado a presidiar no início do século XIX e, sobretudo, a partir do último trinténio do século, quando a perda do poder temporal tinha de facto favorecido a expansão da sua influência internacional. E se Pio X, nos seus últimos dias de vida, se tinha quase oferecido como vítima sacrifical, sentindo aproximar-se a "grande guerra", Bento XV empenhou-se contra a insensata tragédia europeia que, incompreendido e insultado pelas partes contrapostas, definiu como "massacre inútil"; mobilizando, de resto, uma "diplomacia da assistência" que, silenciosa e eficaz, teria voltado a caracterizar a atitude da Santa Sé também na segunda guerra mundial.
Durante os respectivos encargos diplomáticos, no coração da Europa em chamas, os futuros Pio XI e Pio XII tinham sido testemunhas directas do surgir dos totalitarismos, causa dos males que se preparavam. E, tendo ambos chegado à guia da Santa Sé, no decorrer dos anos 30 viram com lucidez o encaminhar-se inexorável para a guerra, que procuraram contrastar com a diplomacia, a política concordatária, a firmeza sobre a doutrina católica, numa consonância substancial não enfraquecida por personalidades e temperamentos entre si muito diversos. Não foi, portanto, por acaso que a escolha do conclave, rapidíssima, se orientou para o secretário de Estado de Pio XI. Imediatamente, Pio XII teve que enfrentar uma situação que se precipitava: "Nada se perde com a paz, tudo pode ser perdido com a guerra" foi o inútil apelo extremo, a cuja redacção lançou mão o substituto Montini, estreito colaborador do Papa também na tenaz obra de socorro depressa iniciada: no Vaticano, em Roma, na Itália e em muitos outros países onde, ao lado de muitos católicos, os representantes pontifícios, como Roncalli, em Istambul, se prodigalizaram de todos os modos para socorrer os perseguidos, sem distinções. Pio XII e quantos lhe iriam suceder na sede romana com os nomes de João XXIII e Paulo VI foram assim, com o enfurecer do conflito, quer defensores das razões humanas e da justiça, quer testemunhas da caridade de Cristo, com uma pregação de paz que o Papa Pacelli não interrompeu durante a guerra e nos anos seguintes, apoiando a opção da democracia, rejeitando a atribuição de uma culpa colectiva ao povo alemão, contrastando o totalitarismo soviético que impôs regimes ditatoriais a muitos países e semeou novos males, e apoiando sem incertezas a construção fadigosa de um projecto unitário para a "velha Europa, que foi obra da fé e do génio cristão" e que, contudo, não tinha sido capaz de ouvir a radiomensagem pontifícia transmitida na tarde de 24 de Agosto de 1939.
Se de muitas formas os cristãos souberam dar contribuições importantes para a reconstrução e a reconciliação, a Igreja de Roma fechou simbolicamente a segunda guerra mundial com as eleições papais de Karol Wojtyla que, em 1989, cinquenta anos após o seu início, lhe dedicou uma carta apostólica, e de Joseph Ratzinger, precisamente a sessenta anos da conclusão do conflito que os futuros João Paulo II e Bento XVI sofreram em primeira pessoa, filhos de Nações então contrapostas.
Sob o ponto de vista histórico, a dúplice escolha do colégio dos cardeais demonstrou a inconsistência de muitos prognósticos baseados em velhas convicções de carácter político, segundo as quais as eleições de 1978 e, sobretudo, de 2005 teriam sido impossíveis. Em conclusão, a geopolítica da Igreja é diversa. E isto porque, assumindo o passado, olha para o homem e para o futuro com os olhos fixos numa promessa que não será desiludida.


Giovanni Maria Vian, L’Osservatore Romano


(SP)

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Testamento Vital II

Hieronimus Bosch,1475-80, Extracção da Pedra da Loucura

O projecto de lei

O projecto de lei, celeremente aprovado na generalidade, intitula-se “Direitos dos doentes à informação e ao consentimento informado”. Mas, pese embora a esta restritiva designação, trata ainda de outros temas de grande relevância ética, que são a criação legal da figura do procurador de cuidados de saúde (Art.º 16), a instituição das declarações antecipadas de vontade (Art.º 14 e 15) e, finalmente, o acesso do doente ao processo clínico (Art.º 20). Se este último aspecto pode ser relacionado com a informação, não se vislumbra qualquer nexo lógico entre este último, os testamentos vitais e a figura do provedor de cuidados de saúde. Relembremos que o consentimento pressupõe informação e proposta de actuação, por parte do médico; proposta essa a que o doente informado dá ou não o seu acordo. Já no testamento vital é inexistente a proposta médica, e a intervenção pertence totalmente à iniciativa do doente. Ou seja, num caso existe um momento alto do diálogo intersubjectivo que é a relação médico-doente; no outro, há apenas o doente, que expressa as suas indicações para uma eventual situação futura. Convém, por isso, analisar separadamente estes temas.

1. Os artigos 1º a 13º dizem respeito ao consentimento informado e não contêm nada que se não encontre descrito como eticamente correcto e aconselhável. Pode todavia observar-se que uma excessiva regulamentação e a preocupação de tudo legislar são potencialmente nocivas para o bem que se deseja promover. O consentimento informado não sai beneficiado por um espartilho jurídico que ameaça sufocar a sua nobreza humana e ética; mais, receia-se que, a fim de cumprir a lei, se burocratize e desumanize o procedimento, transformando o consentimento informado num mero documento legalmente útil, um formulário que o doente terá que assinar antes de ser objecto de qualquer cuidado de saúde. Ora, isto é o que se deve evitar a todo o custo.

2. Quanto ao testamento vital, o Projecto é inovador, ao estabelecer o direito do doente “a determinar quais os cuidados de saúde que deseja ou não receber no futuro, no caso…de se encontrar incapaz”. Trata-se de um documento escrito, revogável, considerado “fundamental”, mas cuja eficácia vinculativa é fortemente restringida pela existência de uma série de circunstâncias, entre as quais avultam o grande conhecimento da doença, da sua evolução, dos processos terapêuticos que se pretende recusar ou aceitar, etc. Refere-se ainda o Projecto à data do documento como factor a ter influência na sua eficácia, mas não se indica um prazo de validade. Conclui-se que estas diversas circunstâncias permitem avaliar “o grau de convicção com que o declarante manifestou a sua vontade”, abstrusa redacção que põe em causa a seriedade do documento e encarrega um terceiro (quem? O médico? Um jurista?) de avaliar da “convicção” do declarante.
Se o Art.º 14º levanta fortes restrições ao carácter vinculativo do testamento vital, o 15º representa uma porta escancarada para a anulação desta declaração, quando determina que o médico “nunca respeita a declaração antecipada quando seja contrária à lei…, quando determina uma intervenção contrária às normas técnicas da profissão” ou quando esteja evidentemente desactualizada. Em face destas reservas e limitações, pode dizer-se que nenhuma declaração antecipada tem probabilidades de ser eficaz, se o médico a interpretar como estando ferida por alguma ou algumas destas restrições; ou seja, em última análise, será o médico a decidir, invertendo-se assim o objectivo em mente do legislador.
3. O procurador de cuidados de saúde é uma figura enigmática, já que o Projecto nada diz sobre as suas características, condicionamentos e âmbito de competências, embora se refira (no Art.º 18) às “decisões” do procurador. Isto configurará um imenso poder atribuído a uma pessoa escolhida de entre o círculo de amigos ou familiares do declarante, mas que na realidade só deveria ser um curador do enfermo incapaz, decidindo no seu melhor interesse e no conhecimento da sua postura e opções. Porém, se o seu poder decisório for ilimitado, poderá optar por soluções que lesem o interesse do doente, por motivações várias (interesse económico, convicções religiosas ou ideológicas próprias, estado depressivo, etc.). Aqui não se apresentam circunstâncias restritivas, como se fez em relação ao testamento vital; significa isto que o procurador terá mais margem de manobra e poder decisório do que o próprio doente. Em relação a ambos poderá o médico declarar-se objector de consciência, o que está correcto, desde que tal objecção tenha carácter casuístico, já que haverá certamente decisões do doente ou do procurador que farão todo o sentido e que nenhum médico responsável e competente poderá rejeitar.

4. Finalmente, o acesso ao processo clínico (com excepção das anotações subjectivas feitas pelo profissional) é um direito do doente e não merece reparos substantivos, embora levante legítimas dúvidas quanto à aparente intenção de excluir o médico de um processo em que é legítimo participante; mas esse não é tema do que me deva ocupar, neste contexto

Observações conclusivas

Este Projecto é, como vimos, heterogéneo na sua constituição. No que concerne ao consentimento informado, nada acrescenta de verdadeiramente inovador em relação às normas deontológicas consagradas, frente às claras normas constantes do Código Penal, essas sim acompanhadas do enunciado das penas a cominar aos infractores (aspecto ausente deste Projecto). Parece pois inócua e dispensável esta tábua do políptico configurado pelo Projecto.
No que à declaração antecipada de vontade (ou testamento vital) diz respeito, temos de facto inovação. Perante as limitações que são inerentes ao próprio conceito (e às suas ambiguidades) e às fortes restrições previstas ao seu carácter vinculativo, são legítimas as dúvidas quanto ao seu real alcance e exequibilidade. Acontece ainda que se antevê um pronunciado aumento de conflitualidade entre paciente (e/ou família) e profissional de saúde, sempre que o testamento vital contenha indicações prescritivas ou, mais vezes, proscritivas de técnicas ou atitudes terapêuticas que sejam, na opinião médica, desajustadas, erradas ou lesivas da integridade ou até da vida do paciente; ou, pelo contrário, úteis e adequadas. Imaginemos só que o testamento vital interdita o recurso à reanimação e que o médico, perante a situação clínica de paragem respiratória, considera obrigatório o recurso à reanimação, com francas possibilidades de recuperação (integral ou parcial) do doente. Vai o clínico assistir de braços cruzados à morte de um doente que podia salvar, por lhe ter sido exibido um documento velho de anos? Se obedecer ao seu código e reanimar o doente, arrisca-se a ser duramente sancionado? Se assistir inerme à sua morte pode igualmente ser condenado por omissão de auxílio a doente em situação aguda…Esses conflitos serão ainda mais graves quando exista o procurador de cuidados de saúde (cujas decisões podem não ser conformes aos verdadeiros interesses do doente), já que nessas condições teremos oposição entre duas pessoas vivas e sãs, o profissional de saúde e o procurador. A objecção de consciência prevista no texto não poderá resolver o pleito, pois o médico lavará as mãos quanto ao problema do doente, ficando a resolução a cargo de terceiros que serão chamados a intervir, sem conhecimento da situação e do seu enquadramento.
São estes os fundamentos para considerar inoportuna e eventualmente nociva a iniciativa legislativa ora tomada. Acresce que dificilmente se poderá defender a necessidade e a urgência de legislar nesta matéria, no fim de um ciclo parlamentar, sem qualquer audição prévia dos mais directamente interessados (Ordens profissionais, associações de doentes, sindicatos, juristas, etc.) e sem debate público de uma questão que a todos diz respeito. Mais grave ainda é a total omissão de um pedido de parecer ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, que a própria lei estatui como obrigatório. Afirmei já que a aprovação desta lei constitui um erro político e um descaminho ético: por não ter sido precedida de audição e debate; e por não servir os interesses do doente, tornando mais difícil e potencialmente conflituosa a relação médico-doente, que se desejaria fosse o encontro de uma competência compassiva com uma confiança crítica. (…)
Não duvido das excelentes intenções dos proponentes, mas ponho directamente em causa a relevância e a urgência desta iniciativa. É de esperar que o Projecto não passe o crivo da discussão na especialidade e assim se evite mais uma lei inútil, geradora de conflitualidade, aberta a interpretações diversas ou até opostas, que embrulha no invólucro inócuo do consentimento informado os polémicos temas das declarações avançadas de vontade e da procuradoria de cuidados de saúde, com o fatal surgimento da questão da eutanásia passiva. Trata-se, afinal, de um cavalo de Tróia jurídico.

Walter Osswald, “ ‘Testamento Vital – Perspectiva Médica’”, Brotéria 168(2009) 432-436.

SP

Testamento Vital I

Domenico di Bartoli,1441-44, Cuidar dos Doentes

Consentimento informado

O reconhecimento dos direitos do doente, a análise e revisão da doutrina hipocrática, a crescente importância atribuída à autonomia da pessoa, também no campo da saúde e no da relação médico-doente, convergiram para a definição do conceito do consentimento informado e sua aceitação como imprescindível pré-condição para qualquer acto médico. Todas as organizações médicas, a nível mundial e nacional, subscrevem esta afirmação e propugnam pelo cabal respeito por esta peça fundamental na relação do profissional de saúde com o paciente. Qualquer intervenção, com fim diagnóstico ou terapêutico, exige a prévia explicação do procedimento e a obtenção do assentimento, concordância, autorização ou consentimento, a cargo da pessoa que é o sujeito, são ou doente, dos cuidados a prestar. O acto médico tem por óbvia motivação a intenção de beneficiar (“fazer bem ao”) o doente, mas este não pode sujeitar-se passivamente ao que lhe é proposto: tem-se aqui como ideal a conjugação e articulação da beneficência do prestador de cuidados com a autonomia daquele que os recebe. Claro que nesta relação de complementaridade podem facilmente surgir tensões ou até conflitos, quando uma das polaridades pressupostas pela relação se erige em força absoluta, ignorando ou subestimando a outra, na ânsia de um exercício do poder médico autoritário, na atitude muitas vezes designada por paternalista; e, por outro lado, é consensual não ser aceitável que o doente exerça a sua vontade de modo irresponsável, irreflectido ou caprichoso, convertendo o profissional de saúde num funcionário tecnicamente competente para a execução das ordens do paciente. O que se pretende não é mais do que associar o doente ao processo de tratamento, transformando-o de um sujeito passivo das resoluções de outrem num colaborador activo, responsável e capaz de tomar decisões.
O consentimento informado é hoje considerado como peça fundamental na relação médico-doente e encontra-se respaldado nos Códigos Penais de quase todos os países; entre nós, o Código Penal (artigos 150, 156 e 157) classifica de abusiva e ilegítima qualquer intervenção médica sobre quem não tenha dado o consentimento ou assentimento, depois de informado sobre as circunstâncias da intervenção proposta e em plena liberdade; e são pesadas as penas que sancionam o desrespeito por estes processos legais.

“Testamento vital”

Não havendo uma escolha terminológica unívoca, designaremos deste modo o documento também conhecido por declaração antecipada de vontade, por motivo da brevidade e da popularidade daquela designação, tão imprópria quanto esta. Trata-se de um documento em que a pessoa, antecipando uma situação clínica em que não possa exprimir a sua vontade (por estar inconsciente, demente ou incapaz por outro motivo), declara qual ou quais os tratamentos ou as técnicas que não deseja que lhe sejam aplicados. Afirmam os seus paladinos que assim se respeita cabalmente a autonomia da pessoa doente: incapaz de se pronunciar por ter perdido faculdades, faz-se ouvir através de uma declaração anteriormente exarada, com consequências a prazo mais ou menos longo. Este “testamento vital”, obrigatório nos Estados Unidos, não tem recolhido aplauso nem acolhimento no sistema jurídico da maior parte dos países. Para tal atitude negativa têm sido invocados os seguintes argumentos:
1. A pessoa que, em plena saúde ou estado inicial de doença progressiva, declara rejeitar determinadas medidas consideradas “heróicas” (tais como reanimação cardio-respiratória, diálise renal, quimioterapia citostática, etc.), por as entender como indignificantes ou lesivas da sua integridade, não pode ter uma noção clara de qual o seu real peso ou custo psicológico nem de qual será a sua vontade e desejos na situação que apenas antecipa, mas não experiencia.

2. A valia legal do testamento vital implicaria a total sujeição do médico ao paciente e obrigaria o profissional a assegurar-se da não existência de uma oposição consignada em eventual testamento vital antes de iniciar qualquer manobra, mesmo se urgente, num doente inconsciente ou incapaz – e a actuar já não segundo as normas médicas, mas de acordo com o prescrito pelo doente.

3. O testamento vital pode dar origem a sérios conflitos, se nele se exarar uma disposição que ponha em causa bens indisponíveis ou os bons costumes, a que expressamente se refere o Código Penal, tais como a vida ou a integridade física do doente. Por exemplo, se no testamento o declarante proibir o recurso à reanimação, o doente acometido de paragem cardio-respiratória morrerá, embora fosse perfeitamente recuperável. Neste caso, um bem indisponível, a vida, seria sacrificada, e o médico poderia ser considerado como homicida por negligência. Por outras palavras, o testamento vital, pode abrir uma porta à prática da eutanásia (neste caso, passiva, por a morte resultar de omissão de um acto indispensável à manutenção da vida; mas a distinção entre eutanásia passiva e activa não tem, como se sabe, qualquer relevância ética).

(cont.)

Walter Osswald,“ ‘Testamento vital’. Perspectiva médica”, Brotéria 168(2009) 429-432.


SP

terça-feira, 14 de julho de 2009

O Milagre Possível


Compadre meu Quelemém é um homem fora de projetos. O senhor vá lá, na Jijujã. Vai agora, mês de junho. A estrela-d’alva sai às três horas, madrugada boa gelada. É tempo da cana. Senhor vê, no escuro, um quebra-peito – é ele mesmo, já risonho e suado, engenhando o seu moer. O senhor bebe uma cuia de garapa e dá a ele lembranças minhas. Homem de mansa lei, coração tão branco e grosso de bom, que mesmo pessoa muito alegre ou muito triste gosta de poder conversar com ele.
Todo assim, o que minha vocação pedia era um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar. Senhor, imagina? Gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando. Mas diverso do que se vê, ora cá ora ali lá. Como deu uma moça, no Barreiro-Novo, essa desistiu um dia de comer e só bebendo por dia três gotas de água de pia benta, em redor dela começaram milagres. Mas o delegado-regional chegou, trouxe os praças, determinou o desbando do povo, baldearam a moça para o hospício de doidos, na capital, diz-se que lá ele foi cativa de comer, por armagem de sonda. Tinham o direito? Estava certo? Meio modo, acho foi bom. Aquilo não era o que em minha crença eu prezava. Porque, num estalo de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava. Se tinha um grande nojo. Eu sei: nojo é invenção, do Que-Não-Há, para estorvar que se tenha dó. E aquela gente gritava, exigiam saúde expedita, rezavam alto, discutiam uns com outros, desesperavam de fé sem virtude – requeriam era sarar, não desejavam Céu nenhum. Vendo assaz, se espantava da seriedade do mundo para caber o que não se quer. Será acerto que os aleijões e feiezas estejam bem convenientemente repartidos, nos recantos dos lugares. Senão, se perdia qualquer coragem. O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto de misérias e enfermidades. Guerra diverte – o demo acha.
Mire veja: um casal, no Rio do Borá, daqui longe, só porque marido e mulher eram primos carnais, os quatro meninos deles vieram nascendo com a pior transformação que há: sem braços e sem pernas, só os tocos... Arre, nem posso figurar minha idéia nisso! Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale de Araçuaí, discorreu me dizendo que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços. Dor não doi até em criancinhas e bichos, e nos doidos – não doi sem precisar de se ter razão nem conhecimento? E as pessoas não nascem sempre? Ah, medo tenho não é de ver morte, mas de ver nascimento. Medo, mistério. O senhor não vê? O que não é Deus, é estado do demônio. Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver – a gente sabendo que ele não existe, aí é que ele toma conta de tudo. O inferno é um sem-fim que nem não se pode ver. Mas a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo. Se eu estou falando às flautas, o senhor me corte. Meu modo é este. Nasci para não ter homem igual em meus gostos.


João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

SP

sábado, 4 de julho de 2009

Bíblia e Violência


Na história de Israel, a partir da emergência de uma autocompreensão da Nação como sociedade-alternativa verificou-se igualmente uma transformação ao nível da própria imagem de Deus. Verificou-se, antes de mais, da afirmação de um Deus único, o qual, por isso mesmo, se contrapõe ao panteão dos deuses em que fundavam a sua legitimidade os sistemas sociais das cidades-estado de Canaã. Necessariamente, este Deus começou por ser um deus-guerreiro: Javé, senhor dos exércitos. Só depois da experiência do exílio é que Israel começou a compreender que o caminho que conduz à sociedade justa passa também pela perseguição e pelo sofrimento; ou seja, só então é que as projecções guerreiras do Deus de Israel começaram a ser postas em causa. Tornava-se então possível que, a partir daí, e pelo menos em breves momentos profeticamente privilegiados, o rosto do verdadeiro Deus começasse a vir ao de cima – assim expressamente, de forma paradigmática, na figura do Servo de Javé, que encontramos no quarto poema do Servo Sofredor.(...)
A imagem de um Deus próximo dos perseguidos começa a manifestar-se apenas em associação com a experiência daqueles a quem os Salmos designam ora por “justos perseguidos” ora por “sofredores inocentes”. Com estes, porém, não devemos identificar apenas um ou outro caso excepcional. A esta classe de homens pertence todo aquele que, qual bode expiatório, se descobre vítima de perseguição e até mesmo de expulsão. Quando a um ser humano transformado em bode expiatório é dada a compreensão de ser apenas por puro acaso que ele, e precisamente mais ninguém, se encontra na posição de ser portador da culpa que recai sobre todo o grupo humano a que pertence, e de que desta ou de outra forma cada um dos membros do respectivo grupo se tornou corresponsável pelo caos existente na respectiva sociedade, ele transforma-se simultaneamente na figura do homem justo perseguido ou no sofredor inocente no sentido mais estrito destas expressões. Entre os seres humanos, o bode expiatório representa sempre aquele que é perseguido em favor de um mecanismo violento de pacificação social. Mas na medida em que a própria vítima cai na conta deste mecanismo e a Deus levanta a sua voz de protesto, o que se dá é, nem mais nem menos, a possibilidade de um novo conhecimento de Deus.
Por outras palavras, quando, por exemplo, nos Salmos, um clamor se levanta por parte dos inocentes ou daqueles que simplesmente se sabem perdoados por Deus e a este fazem saber o seu sentir, o que está em causa é já a aurora de um mundo novo. Ainda que, pelo menos em certa medida, este Deus por quem se clama continue ainda a recorrer a processos de morte na implantação da justiça, a grande novidade é que, a partir destes momentos especiais, Deus se revela claramente não afectado pela projecção sacrificial dos vitimadores. Desta forma, vai-se aproximando o momento em que o anseio de vingança se começa a transmutar em acto de pura confiança em relação ao Deus que, por fim, se revelará ser das vítimas e não dos algozes. Quando isto acontece, dá-se o fim da era de Deus como projecção do homem. No rosto do homem perseguido manifesta-se a luz do Deus verdadeiro.(...)
Baseando-nos no contributo de René Girard, a presente reflexão leva-nos antes de mais à conclusão de que, de forma alguma, nos devemos envergonhar quer do Antigo Testamento quer da imagem de Deus que ele nos dá. Ou seja, não precisamos de definir qualquer novo cânone bíblico em que praticamente se arrume o Antigo Testamento. Pelo contrário, o que se afirma é precisamente que a Bíblia na sua totalidade, ou seja, aquilo a que René Girard chama “revelação judaico-cristã” não visa senão libertar-nos da opressão da violência, dando realização aos nossos sonhos humanos mais profundos.(...)

Dado que no conjunto da Sagrada Escritura o Antigo Testamento representa, pelo menos, de uma ou outra forma, as sociedades do mundo, de modo algum nos deve admirar o facto de o mesmo revelar a sua profunda afectação pela violência, mesmo no que diz respeito à imagem de Deus. Todas as suas aportações no que se refere à imagem de Deus exigem, por isso, um esforço de relativização. A partir das afirmações do Novo Testamento podemos olhar para o Antigo e reconhecer que muitas das coisas que aí se dizem acerca de Deus devem ser simplesmente relegadas para o campo da história no que se refere ao processo mediante o qual a humanidade, desde o início, se encontra a caminho da imagem de um Deus não contaminado pela violência. Num contexto profundamente marcado por uma visão evolutiva das coisas, podemos também falar de uma sociedade em processo de libertação em relação à violência e em transição para a não-violência.(...)
É sobretudo por estas razões, portanto, que a parte da Bíblia a que damos o nome de Antigo Testamento constitui caminho importante no que diz respeito ao desmascaramento da violência. Justamente na medida em que nos dispomos a percorrer o mesmo caminho que nele se faz e, ao mesmo tempo, não nos envergonhamos da descoberta que fazemos de estar do lado dos perseguidores e violentos do mundo, o resultado será não apenas um desvelamento do nosso próprio pendor para a violência, o qual sempre gostaríamos de poder dissimular, mas também a transformação da própria imagem que temos de Deus, sobretudo quando o envolvemos em actos ou atitudes de violência.(...)
É sobre as vítimas não-violentas que a fúria do mundo alastra até à exaustão. Mas Deus surge, no fim, como vencedor, pois dele nos fala a Bíblia como triunfador sobre a morte. Só que o triunfo do Deus do amor não se separa do Deus que é vítima do terror. Assim, toda a tentativa de ler o Novo sem o Antigo Testamento não é mais do que o resultado de uma estratégia, ainda que inconsciente, de encobrimento da violência em todas as suas formas.

Norbert Lohfink, “Deus e a Violência: o Antigo Testamento à Luz de René Girard”, Revista Portuguesa de Filosofia 56(2000), 37-52
SP

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O BAPTISTA




Sendo imperador romano
o torpe César Tibério,
ao décimo quinto ano
do seu tirânico império;

Pilatos, seu velho amigo,
então regendo a Judeia,
e Herodes, filho do antigo,
reinando na Galileia;

houve um homem no deserto,
que os povos chamavam Mestre,
de lã de cabra coberto,
vivendo de mel silvestre,

que pregava aos penitentes
jejuns, pureza, oração,
baptizando a Plebe e as gentes,
em pé, no rio Jordão.

Ora, este homem, cuja vida
fascinava a Plebe inquieta,
era o precursor Baptista,
- era o último profeta.

Era primo do Messias,
e era João o seu nome.
Tinha o dom das profecias,
faces cavadas de fome.

E pregava assim às gentes:
- “Monstros! filhos da Mentira!
Ó geração de serpentes,
Por que é que fugis da Ira?

“Em breve vereis chegar
esse de quem eu – ingratos!
nem mereço desatar
o atilho de seus sapatos.

“De que vos serve e vos medra
dos Justos ser geração?
Deus pode até duma pedra
levantar filhos de Abraão!

Em breve - poços imundos!
vereis surgir, sobre a eira,
quem traz na dextra a joeira
com que ele joeira os mundos.”


- “Mestre! O que farei, pois, bem?”
gritava-lhe o legionário.
Mas ele: “pratica o bem!
Vive só do teu salário!”

- “Rabi! que farei?” – com susto,
diz, de rojo, o Publicano.
- “Não sejas vil, desumano!
Cobra tu o que for justo!”

- “Qual a lei que mais aprovas,
Rabi?” – diz-lhe o Escriba, em suma.
- “Tens duas túnicas novas?...
Vai - e dá de esmola uma.”

Assim pregava. Anciãos,
Escribas, povo aos magotes,
Vinham vê-lo, erguendo as mãos.
- Pasmavam os Sacerdotes.

Baptizavam-se, contritos,
mulheres, crianças e velhos.
Vinham beijar-lhe os aflitos
as sandálias, de joelhos.

- Mas enquanto aos pés choravam
os povos, como uns pupilos,
pelas estrelas erravam
os seus olhos tranquilos.

Gomes Leal, História de Jesus para as criancinhas lerem.


SP

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Santo António


De maneira, meu Santo, que deixais Portugal e vos embarcais para África, porque dizeis que ides buscar o martírio? Antes por isso mesmo vós não deveis sair da vossa Pátria. Não tendes vós já encerrado no peito aquele grande tesouro de sabedoria e eloquência com que depois haveis de esclarecer e assombrar o mundo, e agora a vossa modéstia e humildade encobre e dissimula, e quase contra o conselho deste mesmo Evangelho tem escondido debaixo do meio alqueire: Neque enim accendunt lucernam, et ponunt eam sub modio? Escusado é logo ir buscar o martírio incerto, por mar, em terras estranhas, se o tendes mais breve e mais seguro na mesma onde nascestes. Amanheçam em Coimbra os resplendores dessa Teologia, que depois há-de ter a primeira cadeira na segunda Religião de que tendes tomado o hábito; passai com os ecos dessa fama a Lisbo e começai logo a levar após vós a Corte com a eloquência mais que humana dessa língua imortal, e eu vos prometo (não tanto que ela falar, senão depois que for falada) que não faltem naturais vossos que vos façam mártir. Não vos asseguro rodas de navalhas nem bois de metal, porque lá não se martiriza com tanto engenho. Mas se vos contentais com martírio mais aparelhado, e mais vulgar, de seres logo um S. Sebastião, não o duvideis. Todos os raios que de si despedir a vossa luz, se hão-de converter em setas que se empreguem em vós. O vosso nome há-de ser o aplauso de todas as vozes, e o vosso corpo o alvo de todas as setas. Não vos há-de valer serdes filho de S. Francisco, uma vez que mostrardes que sois geração de Gigante: Stirpem Enac vidimus tibi.[...].
Mas como Deus não queria de António o seu martírio, a nova providência de uma furiosa tempestade o derrotou da Pátria, para onde tornava, e o levou a tomar porto em Itália. E porquê, ou para quê? Porque Deus lhe tinha mandado que luzisse a sua luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus. E para a sua luz luzir diante dos homens, era necessário que o mesmo Deus o levasse a terra onde houvesse homens, diante dos quais se pudesse luzir. Oh terra verdadeiramente bendita, Pátria da verdade, asilo da razão, Metrópole da Justiça, que não debalde te escolheu Deus para colocar em ti o seu eterno sólio![...]
Já agora, meu Santo, pode luzir a vossa luz diante dos homens: Sic luceat lux vestra coram hominibus; porque já estais em terra de homens, diante dos quais se pode luzir. Tanto vos era necessária a ausência de uns, como a presença dos outros. Já os mesmos Sumos Pontífices vos chamam Arca do Testamento, já as vossas vozes são ouvidas como oráculos, já as vossas razões e sentenças são recebidas e veneradas como Divinas. E não porque vós hoje sejais outro do que dantes éreis, nem outros os documentos da vossa doutrina, mas porque tanto vai de lugar a lugar, e de homens a homens, Coram hominibus.
Esta felicidade de achar S. António homens diante dos quais luzisse a sua luz, como o Senhor lhe mandava, foi na minha opinião uma das maiores graças que o mesmo Senhor lhe concedeu, porque sendo muito poucos no mundo os homens que podem luzir, aqueles diante dos quais se possa luzir ainda são muito menos.

António Vieira, Sermão de Santo António, em Roma na Igreja dos Portugueses.


SP

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dia de Camões


Nesse seu mundo interior de desterro e de caos, o amor, quase sempre vivido à distância, ora geograficamente marcada no espaço, ora, sobretudo, medida e alongada pelo desdém, pela falta de correspondência ou até pelo esquecimento, interioriza-se; e o cânone poético que até então lhe servira para o cantar, altera-se profundamente: a celebração dos efeitos da beleza corpórea dá lugar à exaltação do amor suscitado por uma mulher que, vista à maneira dos neoplatonistas, lhe aparece como inefável “raio da divina formosura”. Esse será o caminho que lhe permitirá vencer as contingências do mundo e da vida, dolorosamente marcadas pelo fugaz engano do tempo passado e pelo amargo desengano do presente, através de uma ascese que o levará ao reencontro com a sua primeira essência divina. Feito este percurso, a confusão há-de transformar-se em harmonia, as falaciosas aparências do mundo visível na segura transparência do mundo inteligível, o pecado em graça, o efémero em eterno, a terrena fealdade de Babilónia na serena beleza da Jerusalém Celeste.
Mas Camões (por si e pelo homem que ele sente metonimicamente representar!) sabe que as suas forças não chegam para empreender essa ascese, preso como está às imperfeições do amor humano e à sua débil condição de pecador. É então que, entoando a sua palinódia de arrependimento, procura, sequioso, a fonte da graça no poder salvífico da Paixão de Cristo, consciente como está de que, pela fragilidade dessa sua condição, não reencontrará sem ela, na “terra da glória”, a essência divina da sua condição humana. Por isso e para isso, terá de trocar a frauta simbólica com que entoara os “cantares d’amor profano” pela lira dourada com que vai cantar “versos d’amor divino”.
Insatisfeito ou perturbado com os males do tempo presente, que a sua experiência de vida em cada dia dolorosamente lhe fazia sentir, Camões procurava superá-los no plano do transcendente e do intemporal, graças à sua extraordinária sensibilidade, à sua cultura e à sua capacidade de criação, pela qual a escrita poética se transformava num canto de desabafo, ainda que para ele não encontrasse destinatário adequado, pela singularidade desse mesmo canto ou pelo isolamento espiritual do seu emissor.
É nesta perspectiva que Os Lusíadas, apesar das características próprias do género épico, se integram perfeitamente no macrotexto da obra de Camões, visto que transpõem para o colectivo problemas semelhantes àqueles que o Poeta sentia no seu foro individual.
Ao empreender a elaboração da sua epopeia, conhecia já Camões, por experiência própria, a grave crise moral, social e política que afectava profundamente o corpo e a alma da Nação Portuguesa. Respondendo às expectativas que a consciência nacional viera desenvolvendo ao longo de mais de um século e que a teoria poética do Renascimento arvorara em requisito indispensável para a equiparação das literaturas modernas ao nível de qualidade das antigas, Camões decide celebrar na tuba canora e belicosa da epopeia “as armas e os barões assinalados” que, durante séculos, haviam construído a colectividade portuguesa; ao mesmo tempo, porém, não podia fechar os olhos à desoladora realidade que em cada dia lhe mostrava a pátria “metida / No gosto da cobiça e na rudeza / De uma austera, apagada e vil tristeza”. De novo se lhe deparava um penoso dissídio entre as glórias do passado do seu povo que, por imperativos de orgulho nacional e por necessidade de afirmação artística, desejava cantar, e os evidentes sinais de decadência de um presente onde as alturas do ideal haviam dado lugar cada vez mais amplo e fácil às baixezas do comportamento cívico dos indivíduos e da sociedade que formavam, também ela lançada no caos pelos graves pecados em toda a parte verificados contra o amor. Como conciliar o ideal com a realidade e os imperativos estéticos da poesia com a humana mesquinhez da vida? Aderindo ao preceito horaciano que fazia da beleza poética um meio de pedagogia (aut prodesse volunt aut delectare poetae!), Camões vai fazer do canto épico das glórias portuguesas uma lição de verdade cívica para os seus compatriotas de todos os tempos, tentando assim superar a tristeza colectiva do tempo que lhe estava presente.

Aníbal Pinto de Castro, Camões, Poeta pelo Mundo em Pedaços Repartido


LSP

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Eros, Philia, Agape


Ao amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas, de certa forma, se impõe ao ser humano, a Grécia antiga deu o nome de eros. Diga-se, desde já, que o Antigo Testamento grego só usa duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo testamento nunca a usa: das três palavras gregas relacionadas com o amor – eros, philia (amor de amizade) e agape – os escritores neo-testamentários privilegiam a última, que, na linguagem grega, era quase posta de lado. Quanto ao amor de amizade (philia), é retomado, com um significado mais profundo, no Evangelho de São João, para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota, sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor. Na crítica ao cristianismo que se foi desenvolvendo com radicalismo crescente a partir do iluminismo, esta novidade foi avaliada de forma absolutamente negativa. Segundo Friedrich Nietzsche, o cristianismo teria dado a beber veneno a eros que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício. Este filósofo alemão exprimia assim, uma sensação muito generalizada: com os seus mandamentos e proibições, a Igreja não torna amarga, porventura, a coisa mais bela da vida? Porventura, não assinala ela proibições precisamente onde a alegria preparada para nós pelo Criador, nos oferece uma felicidade que nos faz pressentir algo do Divino?
Mas será mesmo assim? O cristianismo destruiu verdadeiramente eros? Vejamos o mundo pré-cristão. Os gregos – de forma análoga, aliás, a outras culturas, viram em eros sobretudo o inebriamento, a subjugação da razão por parte duma “loucura divina” que arranca o homem das limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina, faz-lhe experimentar a mais alta beatitude. A esta forma de religião, que contrasta como uma fortíssima tentação com a fé no único Deus, o Antigo Testamento opôs-se com a maior firmeza, combatendo-a como perversão da religiosidade. Ao fazê-lo, porém, não rejeitou de modo algum eros enquanto tal, mas declarou guerra à sua subversão devastadora, porque a falsa divinização de eros, como aí se verifica, priva-o da sua dignidade, desumaniza-o. De facto, no templo, as prostitutas que devem dar o inebriamento do Divino, não são tratadas como seres humanos e pessoas, mas servem apenas como instrumentos para suscitar a “loucura divina”. Na realidade, não são deusas, mas pessoas humanas de quem se abusa. Por isso, o eros inebriante e descontrolado não é subida, “êxtase”, até ao Divino, mas queda, degradação do ser humano. Fica assim claro que eros necessita de disciplina, de purificação, para dar ao homem não o prazer de um instante, mas uma certa amostra do vértice da existência, daquela beatitude para que tende todo o nosso ser
Dois dados resultam claramente desta rápida visão sobre a concepção de eros na história e na actualidade. O primeiro é que entre o amor e o Divino existe alguma relação: o amor promete infinito, eternidade – uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência. E o segundo é que o caminho para tal meta não consiste em deixar-se simplesmente subjugar pelo instinto. São necessárias purificações e amadurecimentos, que passam também pela estrada da renúncia. Isto não é rejeição de eros, não é o seu “envenenamento”, mas a cura em ordem à sua verdadeira grandeza.

Bento XVI, Deus é Amor, 3-5
[Silva Pereira]

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O encontro com Jesus

O texto da homilia hoje apresentado como um comentário ao Evangelho incluiu uma afirmação que bem merece ser sublinhada: "A fé cristã, como sabemos, nasce, não da aceitação de uma doutrina, mas do encontro com uma pessoa, com Cristo morto e ressuscitado". O "como sabemos" referido é, talvez, uma generosidade retórica porque, de facto, abundantes são os que, "não sabendo", julgam que a fé cristã nasce da aceitação de uma doutrina. Volte-se, pois, a sublinhar: a fé cristã nasce do encontro - sempre renovado - com Jesus Cristo que morreu e ressuscitou.

EJML

terça-feira, 31 de março de 2009

Edward Green e o Papa




Edward Green, o maior perito em Sida da Universidade de Harvard, afirma que existe uma relação entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida. Deste modo, o cientista confirma as palavras do Papa Bento XVI, no avião que o levou aos Camarões, nas quais afirmou que a postura da Igreja é que o problema do Sida “não se pode resolver só com a distribuição de preservativos; pelo contrário, corre-se o risco de aumentar o problema”.
Numa entrevista à National Review Online, Edward Green, que não se declara católico nem contrário ao preservativo, afirma: “O Papa tem razão. Os nossos melhores estudos mostram que há uma relação consistente entre maior disponibilidade de preservativos e maior taxa de contágios de Sida”. De igual modo, o cientista, director do Projecto de Investigação de Prevenção do Sida de Harvard, constatou que “as evidências que temos apoiam os seus (do Papa) comentários. Não podemos associar maior uso de preservativos com menor taxa de Sida”.
O perito alerta para a causa deste fenómeno, o conhecido “comportamento desinibido”: “Quando se usa um meio técnico, como o preservativo, para reduzir um risco, frequentemente perdem-se os benefícios porque as pessoas correm maiores riscos do que quando não usavam o meio técnico”.
Edward Green é médico antropólogo com mais de 30 anos de experiência em países em via de desenvolvimento. A sua experiência inclui o Sida e doenças sexualmente transmissíveis, planificação familiar, cuidados primários de saúde materna e saúde infantil, e programas de cancro. Publicou cinco livros e é autor de mais de 250 estudos e pareceres técnicos. Vai publicar brevemente Sida e Ideologia, onde denuncia como a indústria recebe milhões de dólares a título de promoção do uso do preservativo, medicamentos e tratamentos para o Sida, e onde afirma que a solução está na mudança de comportamentos.
O Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o VIH/SIDA (ONUSIDA) admitiu, no passado mês de Janeiro, ter inflacionado o número de infectados no mundo, depois de Edward Green, Daniel Halperin e James Chin terem apresentado dados científicos. Os analistas confirmaram que esta estratégia beneficiou a indústria do Sida que pede constantemente mais fundos. James Chin afirma que, apesar das correcções, os números continuam a ser elevados, havendo 25 milhões de enfermos, enquanto a ONUSIDA defende que há 33 milhões. Em África, o diagnóstico do Sida realiza-se através dos sintomas–enfraquecimento das defesas do organismo, doenças oportunistas, etc. Este tipo de diagnóstico é completamente impreciso. Numerosos peritos e cientistas denunciaram que se diagnostica como Sida o que é simplesmente fome. É uma estratégia manipuladora para mudar o nome dos problemas. Faz-se passar por Sida o que é fome, num terceiro mundo vítima do capitalismo selvagem. Tal estratégia gera milhões de subsídios públicos que embaratecem os medicamentos e beneficiam os grandes grupos farmacêuticos. O modelo de luta contra o Sida em África, centra-se, na perspectiva do ocidente, no envio de medicamentos e na distribuição de preservativos, em detrimento de uma educação sexual integral e melhores condições sanitárias e alimentares da população.
Edward Green opina que o paradigma da luta contra o Sida continua a ser o do Uganda que, nos anos 80, iniciou uma campanha que fomenta a monogamia, tentando modificar os comportamentos sexuais a um nível mais profundo.
Segundo a OMS, o Uganda tem a descida mais espectacular de infectados. Passou de 1.100.000 em 2001, para 940.000 em 2007. Mas se analisarmos a percentagem dos últimos 17 anos, passa de quase 14% para 5,4%. O Uganda tem numeroso grupo de cristãos, e não baseou a sua estratégia no preservativo, mas no restabelecimento da família tradicional africana. O Papa acentuou que a monogamia era a melhor resposta contra o Sida em África, o mesmo que constata Green ao afirmar que “as nossas investigações mostram que a redução do número de parceiros sexuais é a mais importante mudança de comportamento associada à redução das taxas de contágio do Sida”.
Ao mesmo tempo, a ONUSIDA reconheceu, em Março deste ano, que o “o início mais tardio da vida sexual e a fidelidade entre os parceiros” são parte das acções preventivas para evitar o contágio do HIV. Os métodos reconhecidos como mais fiáveis para prevenir o Sida são os divulgados pela OMS, chamados “ABC”(Abstinence, Being faithful, using Condoms – Abstinência, Fidelidade, Preservativo)

(Foto e resumo livre de um texto apresentado por http://www.forumlibertas.com/)

Luís Silva Pereira